Aquarius, de Kleber Mendonça Filho
Por Pedro Fernandes
Uma aguda crônica social sobre um
país em complexo acirramento das relações de poder. Assim resumiria numa linha
o filme de Kleber Mendonça Filho. Uma narrativa, portanto, que aprofunda a
investigação do cineasta sobre esse tema nascido em O som ao redor, seu primeiro longa-metragem e trabalho sempre
lembrado pela maneira como se distancia de algumas persistências do cinema
brasileiro para inaugurar outros vieses sempre possíveis à sétima arte.
É o dia-a-dia de Clara, uma
jornalista viúva, filha de uma família que com a cara e a coragem construiu
algum nome na cidade do Recife, e obstinada em preservar o lugar onde vive, na
orla de Boa Viagem, região de alta especulação imobiliária. Quais peripécias essa
personagem terá de passar na condição de perseguida pelo poder do capital ou se
conseguirá fazer levar adiante sua necessidade de não deixar o Aquarius não
interessa aqui – só ao espectador, que não deve deixar de ver este filme. Interessa,
isso sim, a maneira como o diretor põe o dedo na ferida sobre uma sorte diversa
de discrepâncias nascidas primeiro de uma sorte também diversa de vícios do
Brasil-colônia e desde então perpetrados na sociedade com o mesmo tom de que as
coisas são porque são.
Aquarius, se não tem o
poder de desconstruir algumas dessas mentalidades – nem é esse seu propósito e
qualquer arte ambicione esse resultado fracassará –, se mostra como instrumento
propiciador de uma reflexão pela via contrária do comodismo. Isto é, as coisas
não são porque são, são porque uma pequena parcela impõe determinados modos de
vida e outra, a grande maioria, recebe passivamente como natural. Clara, com
sua impulsividade é a típica figura que encarna a postura de alguém que não se
submete e prefere, custe o que custar, servir de cupim que corrói a madeira
desse sistema, para recuperar aqui uma das imagens singulares finalizadoras do
filme.
Clara é quem nos diz que só há
sentido para a vida quando o vivente tem por que lutar, sobretudo se a bandeira
que escolhe é aquela que prioriza o lado mais fraco e não está manchada pelos
vícios comuns: seja o apadrinhamento e as relações de domínio das oligarquias,
a falta de respeito e o desprezo para com o outro, a ganância pelo dinheiro e
pelo poder a qualquer custo. Não bastasse isso, essa voz de oposição recorre a
uma das qualidades dos atuais donos do poder (assim pelo menos se sentem), a
união familiar em torno de suas obsessões, embora, neste caso, é o lema “o povo
unido jamais será vencido” o amálgama de tais relações.
No interior das divisões
profundas que dão forma ao Brasil, Aquarius
é um dos poucos filmes cuja narrativa registra o pequeno cismo causado pelo
levante das classes submissas. Não tece nenhuma constatção
enganosa, tampouco compreende que
as divisões de classe se restrijam a dois grandes blocos:
as do poder e as do que o almejam. Num país em que sua identidade é naturalmente
fragmentada e multifacetada – falar sobre essas relações por dois desses
fragmentos – é reduzir o debate sobre a formação do país.
O Brasil não é
possível de compreensão apenas tomando uma divisão em duas partes, tal como
aponta Clara ao explicar para uma carioca, futura namorada do sobrinho, a
divisão entre o Pina e Brasília Teimosa, para se referir a distância entre a
elite e a periferia do Recife ou a câmera que aponta o corte na tela numa única
imagem entre um edifício e a zona do subúrbio. Mesmo que viéssemos a constatar
apenas duas grandes classes sociais, é preciso compreendê-las como um jogo
dialético de forças, tal como os trânsitos da periferia na elite ou desta no
subúrbio, ou mesmo o trânsito de maneiras de pensar.
Mas a imagem do corte na tela citada no parágrafo acima
responde por outro tema que não o do enfrentamento o de classes
no Brasil. É a contínua ameaça de tomada de lugares e esmagamento dos menores –
uma repetição contínua praticada no país desde a colonização portuguesa, a que
confiscou um patrimônio em nome de grupo minoritário e fez o possível para
dizimar aqueles que consideravam de raça inferior, incivilizados e sem alma, o
Brasil de índios e a África de negros.
Notem a morte do jovem filho da
empregada doméstica de Clara num acidente de trânsito cujos responsáveis nem
então nem depois foram responsabilizados pelo que causaram. O país da
impunidade ou da justiça bruta para uns e outros não ou o país tomado por
aqueles que nunca fizeram por merecer para estarem no poder mas mesmo assim
impõem um discurso de meritocracia, o país onde uma justiça é cega porque é paga para não ver e está mancomunada com os poderes dominantes. Se não bastasse, porque isso só já é o
suficiente para afundar uma nau de loucos, repete-se nos dias atuais a
combinação venenosa e explosiva dos idos dias de Cabral: a religião, a política
e o capital numa relação de profunda alienação e imposição dos
interesses unilaterais. Se então, toda uma cultura foi dizimada, agora, é um
modo de ser e estar no mundo que é cada vez mais rechaçado: o de ser livre e o
do apego à memória dos que nos antecederam, para citar duas das diversas questões suscitadas por Aquarius.
Este tema, o do apagamento da memória, é dominante nesse filme; os vínculos de afetividade
pelo lugar e o zelo pela presença dos
antepassados que nunca nos deixam de ser peças de sentido para os vivos, bem
como as relações pessoais, são cada vez mais tomados necessidade imposta pelo
capital pelo falseamento das atitudes como se a vida fosse reduzida a um emoji,
se os mortos fossem restos sobre os quais nada vale preservar ou as relações
pessoais estivessem sempre marcadas pela interposição da tecnologia.
Logo, a ideia de ser livre pressupõe que as decisões individuais devam sempre ser respeitadas e não tomadas por alguém de fora, pior ainda se esse alguém for tomado pela única e simples conveniência de impor um desejo cuja base está alinhada com esse poder do capital travestido da forma de necessária modernização, um fluxo que de tempos em tempos atinge ao Brasil sempre pela lógica de tonar o país com a cara do que é civilizatório porque nos país ditos avançados é de uma maneira e não a maneira do que somos.
É possível ainda ver muitas outras coisas porque este é um trabalho naturalmente rico de elementos visuais produtores de sentidos; mais uma vez restringi-me a comentar sobre a narrativa filmográfica e os temas que esta suscita. Mas, mesmo os temas não estão fechados nessas observações aqui apresentadas. Outras visões sobre o filme com mais vagar é capaz de corroborar com que a sua própria superfície já não deixa mentir: é uma obra-prima do nosso cinema contemporâneo.
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