A graça imortal de David Foster Wallace
Por Rodrigo Fresán
Um fantasma
percorre a América do Norte (e o resto dos continentes) e esse fantasma é o de
David Foster Wallace. E seu cada vez mais vital espectro (seu corpo nascido em
1962, sua alma aparecida em 2008, previu rapidamente o suicídio) reaparece trazendo
nas mãos as sagradas escrituras do romance pelo qual é melhor lembrado e,
talvez, pior compreendido e apressadamente imortalizado.
Graça infinita, publicado em 1996, aqui
e agora, figurando em toda em toda e qualquer lista sobre as jovens marcas do
fim e começo do milênio literário (ao lado de American Psycho, de Bret Easton Ellis, quem considera Wallace um farsante
hipervalorizado). Graça infinita não cai
de moda porque é uma moda em si mesma. Um desses livros – como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram
Shandy, Moby Dick, O homem sem qualidades, Ulysses ou Em busca do tempo perdido – que
permanecem, mesmo sem sequer ser aberto, nas mesas de cabeceira ou nas listas
de promessas a não se cumprir para as leituras de ano novo. Um totem / fetiche
que se divide entre adoradores, entre os que tecem juras de amor por ele ou o
maldizem, entre os que o consideram um inventivo grande romance estadunidense
ou nada mais, e nada menos, que a invenção de outro romance grande made in USA.
Já desde seu
título o próprio Wallace antecipou a dúvida e o mal-entendido: sai desse
momento em que Hamlet sustém a caveira do bufão Yorick e evoca sua “inteligência
interminável” mas, ao mesmo tempo, insinua a possibilidade de que tudo seja como
uma dessas piadas que seguem e seguem sem alcançar jamais o arremate de seu
desfecho. E se sabem os audaciosos e convertidos que até ali chegaram: mais de
mil páginas e numerosas notas depois, Graça
infinita finda sem acabar de um todo, como no ar azul desse céu com nuvens
brancas que ilustrava sua primeira edição.
Por isso
mesmo, a lenda continua e o lendário não detém sua marcha. Vinte anos depois é
reeditado nos Estados Unidos uma edição comemorativa assinalando suas duas
primeiras décadas como clássico; edição com prefácio do escritor e cronista Tom
Bisell. A única coisa estranha nessas celebrações é que nenhum colega maior ou menor esteticamente mais
próximo a Wallace como Thomas Pynchon, Don DeLillo, William H. Gass, Joshua Cohen,
William T. Vollmann, Blake Butler, entre outros, se animem, apoiem ou mesmo
sejam convidados a honrar o monstro, sucedendo a primeira ressurreição de há dez
anos. Então, agora parece que há só o Wallace retocando erratas com introdução de Dave
Eggers, discípulo feliz, quem propõe o livro como dardo / branco perfeito à
hora do eterno duelo do difícil contra o fácil.
Primeira edição de Graça infinita. |
O que mudou
neste tempo? É claro que a estatura mítica de Wallace, quem segundo Javier Calvo,
tradutor de Graça infinita para o
espanhol, é hoje percebido como "um Kurt Cobain da literatura, epítome da agonia
da criação, congelado em sua roupagem dos anos noventa, não se apagou". O que acontece como nestes casos
(de Sylvia Plath a Roberto Bolaño) é que sua obra inteira passa a ser lida com base
em sua biografia. Assim, agora, os depressivos tenistas, homens de família e
revolucionários presos num filme mortal em Graça
infinita com reflexos distorcidos mas fieis – embora sem cair em tiques e
taras da autoficção tão em voga – têm seu melhor lugar, embora quando publicada a obra esta já havia se convertido quase num
produto de sucesso, potenciado pela pena infinita de seu precoce auto-eject. Isto é, há um olho de cronista social que ao olhar para sociedade como olha recria-a para os de seu tempo e os filhos de seu tempo.
Gesto
finito, último e mortal, consequência em parte, talvez, do fracasso assumido de
não encontrar a volta a essa outra “coisa grande” que acabou ficando por concluir
– O rei pálido. Desde então, Wallace
tem habitado memoirs de amigos como
Jonathan Franzen e de ex-namoradas como Mary Karr; tem sido o transparente inspirador de
personagens embaçadas em romances como Liberdade
(de Franzen) ou A trama nupcial (de
Jeffrey Eugenides); protagonista de um recente bipic; recopilado póstumo em modo de entrevista ou em peças soltas;
sujeito a ser dissecado cada vez mais por numerosos volumes acadêmicos que vão da
análise de seus motivos sintáticos e religiosos a questões tratadas pelo chamado pós-modernismo; sujeito de uma biografia que o
desmistifica e ao mesmo tempo o engrandece; matéria radioativa a figurar em
isolados e numerosos guias de leitura; e até desconstruído e voltado a construção
numa versão de Lego a cargo de – detalhe muito wallaceano – um menino de 11
anos que talvez nem exista, quem sabe.
Que
desfrutem se, por fim, se atrevem ao seu descobrimento ou redescobrimento. E, certamente,
inevitavelmente voltaremos a falar sobre tudo isso em dez anos, quando não
haveremos deixado de falar – e, oxalá, de ler a obra de Wallace.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão de "El chiste inmortal de Foster Wallace cumple 20 años" publicado no jornal El País.
Comentários
Enfim, penso que Graça Infinita é um grande livro, que salta entre sub e superestimações. Sua grande qualidade, eu diria, está na habilidade do autor em unir vanguardismo com aqueles músculos hollywoodianos que prendem nossa atenção.
Sobre a biografia de Wallace, decerto estimula novos leitores que, ao descobrir do suicídio aos 46 e todo o Tormento do Artista, veem uma espécie de aura na obra. Mas confesso que li Graça Infinita tentando ser imparcial, relativizando a biografia do autor etc. Foi um empreendimento extremamente recompensador. Sugiro que qualquer leitor voraz o leia.
DFW é um autor que precisa ser mais lido e menos comentado...