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Mostrando postagens de setembro, 2016

O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer

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Por Pedro Fernandes Em 2012, Victor Heringer marcou sua estreia no romance com o pé direito: Glória recebeu, no ano seguinte, o Prêmio Jabuti. O que chama atenção nessa narrativa é o tom, em contínuo crescimento, de um narrador cuja marca é o improviso, o uso dos bordões – ocasião em que propositalmente enxerta à linguagem escrita outras maneiras de uso da língua – e o caráter irônico com que constrói seu relato, a começar pelo título, que sugere uma coisa e cumpre outra. Nesse O amor dos homens avulsos o escritor confirma duas coisas: a promessa que deixou aos leitores na boa realização do primeiro romance e sua capacidade de se reinventar, sem perder o fôlego da boa largada. Para um escritor cujo interesse parece se distanciar do mero protocolo de contar uma história para ser o de alguém capaz de inovar os protocolos da narração bem como os lugares da literatura brasileira isso é fundamental. A narrativa de O amor dos homens avulsos é um grande rel

Aquarius, de Kleber Mendonça Filho

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Por Pedro Fernandes Uma aguda crônica social sobre um país em complexo acirramento das relações de poder. Assim resumiria numa linha o filme de Kleber Mendonça Filho. Uma narrativa, portanto, que aprofunda a investigação do cineasta sobre esse tema nascido em O som ao redor , seu primeiro longa-metragem e trabalho sempre lembrado pela maneira como se distancia de algumas persistências do cinema brasileiro para inaugurar outros vieses sempre possíveis à sétima arte. É o dia-a-dia de Clara, uma jornalista viúva, filha de uma família que com a cara e a coragem construiu algum nome na cidade do Recife, e obstinada em preservar o lugar onde vive, na orla de Boa Viagem, região de alta especulação imobiliária. Quais peripécias essa personagem terá de passar na condição de perseguida pelo poder do capital ou se conseguirá fazer levar adiante sua necessidade de não deixar o Aquarius não interessa aqui – só ao espectador, que não deve deixar de ver este filme. Interessa, isso sim,

“Amo como mulher e te amo porque és mulher”: a paixão epistolar de Virginia Woolf

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Foi o cunhado de Virginia Woolf, Clive Bell, quem avisou que uma aristocrata bem conhecida de toda Londres por suas faladas aventuras homossexuais, Vita Sackville-West, também escritora, havia posto os olhos nela e queria conhecê-la, e sobre ela se organizou um discurso exagerado. “Vita é uma lésbica declarada, tens cuidado”, teria alertado Clive, a quem a mordaz Virginia respondeu, “Pois como esnobe que sou, não saberei resistir”. Apesar dos displicentes comentários iniciais da romancista, parece que o encontro surtiu o efeito desejado por Vita: despertar o interesse, primeiro, e depois, o desejo da grande Virginia Woolf. Em algum ponto intermediário do encontro fez presente o amor, cujo testemunho ficou registrado por escrito em muitas cartas trocadas pelas duas protagonistas. Virginia Woolf não tinha nenhum problema em se expor numa relação homossexual. Havia sido criada num ambiente de absoluta liberdade – ao seu redor eram comuns tanto os escarcéus extraconjugais como

Flannery O'Connor se molha

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Por Patricio Pron “Sou dessas pessoas que antes morreriam por sua religião que tomar um banho por ela”, escreveu Flannery O’Connor a uma amiga: não falava de um banho qualquer, mas da imersão nas águas da Cave Spring Lourdes, a que os enfermos de todo mundo atribuem propriedades curativas desde quando, segundo a lenda, a Virgem apareceu ali a uma jovem em 1858. O’Connor tinha trinta e três anos no momento de realizar sua viagem; apesar de jovem, já era considerada uma das escritoras estadunidenses mais importantes de sua época graças principalmente a dois livros: o romance Sangue sábio , publicado em 1952, e os contos de Um homem bom é difícil de encontrar (1955). O primeiro é a história de Hazel Motes, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que, depois de perder a fé em detrimento da experiência, a recupera fundando uma seita, a Igreja Sem Cristo. Os outros textos estão povoados por assassinos piedosos, falsos pastores, aleijados, idiotas, vendedores de bíblias, ceg

Poesia não-completa de Wisława Szymborska

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Em sua “Carta quase-íntima sobre a poesia”, Czesław Miłosz escreveu: “se a descrição de uma superfície da grama torna-se problemática, é possível haver ainda lugar para um panorama que inclua pessoas, animais, manhãs e crepúsculos?” Estranhamente, Miłosz nos adverte que sua terminologia é metafórica, embora não esclareça sobre o que corresponde a metáfora – se à superfície da grama ou se às pessoas. Em todo caso, a sua pergunta poderia ser respondida de modo afirmativa com a obra de Wisława Szymborska. Em cada um dos seus poemas, sem exceção, se vislumbra o panorama, desde o menor fragmento até esse “vasto mundo”, que, de novo segundo Miłosz, já não servem às chamadas vanguardas poéticas, cheias de visões intelectuais mas carentes, muitas vezes, de “coração e de vísceras”. É costume da alta estética ou ética dos poetas, de alguns poetas, a desaprovação da poesia de corte mais intimista ou subjetivista, como se ela existisse à margem de seus praticantes ou como se exis

Boletim Letras 360º #185

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Ursula K. Le Guin. A escritora estadunidense entra para o seleto grupo dos que ainda em vida tiveram sua obra incluída em The Library of America Durante esta semana, foram essas as notícias que recolhemos em nossa página no Facebook, casa que chegou aos 45 mil amigos (isso é já uma cidade artístico-literária!). Até o final de setembro, publicaremos nossa próxima promoção em dupla celebração: aos amigos que nos chegam e ao início da passagem dos 10 anos do blog Letras. Segunda-feira, 19/09 >>> Brasil: Depois de sabermos da chegada de O homem sem doença , eis outras novidades sobre o holandês Arnon Grunberg A editora Rádio Londres torna um dos nomes mais conhecidos da literatura holandesa contemporânea mais acessível aos brasileiros. Adquiriu os direitos de outros dois livros do escritor: O refugiado  (2003) e Moedervlekken  (Marca de nascença), lançado na Holanda em maio deste ano. São livros que saem até o final de 2017. Terça-feira, 20/09 >>&g

O dia em que Flávia me mostrou que trinta linhas é pouco demais

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Por Rafael Kafka Em algum dia da semana passada, lembrei-me de Flávia dando aula. Eu a conheci em um contexto de sala, mais especificamente no estágio de minha primeira graduação e desde então nutro profundo sentimento de amizade por ela, mesmo tendo visto-a tão poucas vezes em minha vida. Sempre me questionei acerca de tamanho carinho e penso que a lembrança ocorrida em uma aula que eu dava explicou-me, como uma rara epifania, as causas de tão profunda afeição. Percebo nos anos todos em que dou aulas em escolas uma profunda dificuldade de meus alunos de escreverem mais do que o limite mínimo de linhas em provas de redação. Se tal limite é quinze é bem provável que todas as redações sigam o padrão desse número de linhas, com raras exceções que o ultrapassam. Atingir quinze linhas para muitos de meus estudantes é como vencer uma árdua maratona a cujo final eles chegam com os últimos suspiros de sua alma cansada. Se procurar entender o que se passa com eles e explica e

Cobra Norato, uma passagem para o imaginário popular brasileiro

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Desde sua primeira edição, em 1931, que o poema Cobra Norato , de Raul Bopp é lido como uma das melhores expressões da literatura brasileira modernista. Entretanto, é preciso que o leitor saiba que essa compreensão está para o nível do tema e não da forma poética. Embora o poeta tenha se aproveitado antropofagicamente de várias versões de uma lenda oral indígena e feito uso do verso livre, sua ideia, diferentemente de outros textos desse período, não se constrói por expressões c omo a metapoesia, a paródia, o poema-piada ou o uso da linguagem oral.  Mesmo assim, não pela épo c a em que foi publi c ado – pós-semana de 1922 e quando o seu autor já havia se tornado um dos importantes divulgadores do Modernismo, à frente da Revista de Antropofagia – mas por in c orporar-se nesse período de altos c ontrastes, naquela linha definida por tantos críticos, a de lamento pela perda da tradição ou apagamento da tradição, c ausada em parte, diga-se, pelo próprio vento do espírito moderni

O caso Meursault, de Kamel Daoud

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Por Pedro Fernandes “Um francês mata um árabe deitado em uma praia deserta. São duas horas da tarde no verão de 1942. Cinco tiros, seguidos de um processo. O assassino é condenado à morte por ter enterrado mal sua mãe e ter falado sobre com demasiada indiferença. Tecnicamente, a morte se deve ao sol ou ao puro ócio. A pedido de um cafetão chamado Raymond que está contrariado com uma puta, o seu herói escreve uma carta ameaçadora, o caso se degenera e depois parece se resolver com um assassinato. O árabe é morto porque o assassino acha que ele quer vingar a prostituta, ou talvez porque ele se atreve, indolentemente, a fazer a sesta” – assim o narrador de O caso Meursault resume a obra mais conhecida de Albert Camus, O estrangeiro . É este romance, o ponto de partida para a narrativa de um livro cujo tratamento é o de preencher os silêncios ou reanimar os rumores em torno do acontecimento-chave para a obra que o antecede. A narrativa proposta por Kamel Daoud, n