Vida vaza: uma paideia da resistência
Por Márcio
de Lima Dantas
A poeta Regina Azevedo em cena do curta Vida vaza. |
O curta Vida
vaza está estruturado na cor azul, que predomina nas indumentárias dos atores,
nas águas do mar, nas tomadas dos pequenos planos. A cor azul representa as estruturas
presentes no Imaginário. Tudo que se apresenta com essa cor e suas tonalidades
se reveste de um ethos de infinito, no qual o indigitado real concreto vem a
demandar as fronteiras da comarca do Imaginário. O azul lança sua irradiação
para contraditar as cores representantes do status quo.
O azul é a
vereda que conduz ao devaneio e à fantasia, lugares no qual repousa a morada da
“louca da casa” (Gilbert Durand). Em suma, o azul ocupa, na geografia mental,
as locas da irrealidade, onde pulsam as vontades e os discursos antípodas ao
estabelecido, ao que nos obrigam a ser; pela linguagem, a dizer; ao que nos
fazem querer parecer algo que não somos. Enfim, o azul se opõe ao ocre e ao
vermelho, cor da terra, do cenário do cotidiano, da carne, da realidade, a qual
somos compelidos a dar soluções ao que não pedimos, ao que fizeram de nós como
construção de um sujeito lançado ao mundo, tampouco, esse empírico, nem sempre
nos diz respeito. Pradaria onde o embate entre ser e parecer medem forças. E
para que se vença, inexoravelmente a vitória de quem busca se contrapor ao
sistema do ocidente cristão e tecnocrata, jamais poderia deixar de ser uma
vitória de Pirro.
De toda
maneira, pedra também se trinca. Quer por movimentos naturais geomorfológicos,
de acomodação de paisagens, ou através de engenhos inventados pelo homem, como
procediam os Incas, quando construíam suas cidades de bruta pedra. Se no
Imaginário repousam arquétipos dinâmicos
- não estou falando de imaginação, fronteiriça da memória -, há que
fazer esforços não apenas para conhecer sua sintaxe, mas, sobretudo, em um
esforço intelectual, compreender e partir para a ação, para questionar, para
negar, para não-ser, para resistir, refutando um empírico fascista que nos
compele, como dizia Roland Barthes (Leçon), “obrigando a dizer”.
No
Imaginário há toda uma sorte de constelações que refogem à gramática normativa,
proclamando uma outra forma de ser e sentir, de representar o mundo, seus
objetos e retóricas. Há enxames de poemas em estado de enérgia, carecendo ser dínames.
Palavras que buscam uma forma, e, por meio da palavra feito estética, vir a ser
uma crítica do real vivido. Literatura como crítica do real, como sabemos.
Nunca “sorriso da sociedade”. Há flores míticas detentoras de outras narrativas,
de outras maneiras de organizar a vida, provando que o que nos fizeram conhecer
pode ser entendido como maya (ilusão). Pura quimera para os desavisados ou
acomodados, que se contentam com a geleia geral.
Não façamos
dramas. Há que se comprazer com a brisa marítima que assoma da janela,
alertando das possibilidades práticas da Gaia ciência (alegre saber). Há que
atestar a frágil grandeza do humano, que pode colecionar na manga um naipe de
cartas, outorgando ao empírico que Apolo traz todos os dias, com seus cavalos
de fogo, o dionisíaco plasmado em poesia como forma de conhecimento, como
reflexão sobre a vida, como um singular representando parte do coletivo, vindo
a crismar o número do espírito da época. E assim (re)conhecido, torna-se menos
duro se contrapor às ondas reacionárias que assolam certas épocas da História,
como agora sucede.
Não parece
ser à toa que sintomaticamente no cartaz do filme VIDA VAZA o esboço da figura
humana seja o centro no qual a cor ocre está acima. A cor azul, embaixo. Não
era para ser exatamente o contrário? Na medida em que o ocre representa a terra
e o azul o céu, numa hipócrita boda de harmonia? Não, não era, de jeito
qualidade. Ora, a inversão quis colocar em evidência uma outra possibilidade de
vivenciar o real: o azul com sua pulsátil força de transformar as coisas.
***
Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
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