Uma temporada no escuro, de Karl Ove Knausgård
Por Pedro
Fernandes
Entre as
possibilidades que possam explicar a razão porque essa série de livros de Karl
Ove Knausgård ataca os leitores e os faz, submissos, enfrentar – sem parar um
instante a leitura e quando para ficar preso ao torvelinho de situações que
poderão se desenvolver em passagens seguintes ou até o desfecho de “Minha luta”
– está um mal do qual padecem todos os humanos: essa curiosidade em saber sobre
a vida alheia. Talvez não seja isso um ponto que tenha feito o escritor
mergulhar nos mais de quarenta anos de sua existência para contá-la em livro;
mas, é uma justificativa que responde não apenas por fenômenos editoriais em
torno de romances desse gênero, também para aqueles cuja memória narrada é de
um ser meramente ficcional. Logo, não se trata de uma curiosidade em torno do
homem Karl Ove Knausgård, nem porque o narrado aqui pode e confunde-se com o
experienciado pelo próprio escritor, mas porque as situações recobradas, de uma
maneira ou de outra, nos identifica, seja porque vivemos os mesmos medos,
sentimentos e angústias, seja porque gostaríamos que nossa vida tivesse transcorrido
da maneira como o narrador nos conta, ainda que o contado seja mero conjunto de situações
desprovidas de grandes forças, porque, afinal, estamos ante ações de um homem comum, não de um herói.
Em Uma temporada no escuro não há quaisquer
aprofundamentos na vida de Karl Ove, no sentido de uma esperada continuidade de
uma linha cujo princípio tivesse sido criado pelo nascimento até aos dias
atuais do escritor. Como puro exercício de memória, o sujeito que escreve, mais
se emaranha no extenso labirinto de recordações que parecem nunca sair daquela
fase que dizem ser a de nossa formação enquanto adultos. Caberia pensar que na
idade adulta, sobretudo hoje com os modos de vida tão achatados pela mesmidade
das formas devido ao acentuamento da chamada globalização, somos de certa
maneira os mesmos e o que interessa revelar nas situações de revisitação sobre
o vivido é justamente aquilo que nos constitui individuais, isto é, distintos
um do outro? Não esta a posição que sempre nos oferece as narrativas
autobiográficas e que nos oferece Karl Ove Knausgård quando se coloca em relação aos
outros de sua época? Não é ele sempre o sujeito metido consigo mesmo, o sujeito
que mesmo envolvido com os outros, sempre se coloca numa condição ora inferior
– como quando examina, por exemplo, que todos os outros garotos de sua idade já
tiveram a primeira vez no sexo e ele não – ou superior – quando se vê um rapaz
de dezesseis anos escrevendo resenhas sobre discos para os jornais de sua cidade?
Como a possibilidade exposta acima, essas são perguntas para que o leitor, ao
mergulhar nesse oceano de recordações, não deixe de fazê-las e tentar encontrar
ele próprio a melhor resposta.
Agora, para
uma pergunta, gostava de oferecer uma resposta, que também não é definitiva,
mas poder servir de via para acesso a esse reencontro com a vida de Karl Ove: é
sobre o porquê esse momento se apresenta como “Uma temporada no escuro”.
Sabe-se que o ponto de partida para os acontecimentos desse romance nasce no
momento em que nossa personagem com dezoito anos vai viver numa inóspita região
do norte da Noruega para trabalhar como professor numa escola pública. Entre as
idas e vindas com a nova morada, o deslumbramento em viver com seus próprios
meios, sem as intervenções do pai – a figura sobre a qual o narrador oferece um
pouco mais de sua face e de sua tenebrosa sombra nessa narrativa – ou de quaisquer outras figuras
interessadas no controle de suas ações, mas o que se assiste é um desavisado
retorno ao passado para contar suas experiências tão logo ocorre a separação
dos pais e ele começa a ensaiar a possibilidade do que é ser livre.
Ao contrário
do que o tema sugere, e como já deve suspeitar o leitor mais atento, estes, se
são, a princípio, os anos mais incríveis da nossa personagem, são também
aqueles em que ela experimenta alguns precipícios: o envolvimento com a bebida
e a descoberta de novas mentiras do pai e também seu mergulho no mundo do álcool; o
distanciamento da escola, por acreditar que a vida seria feita tão só daquilo
que ela se fazia no presente, visto não se vê metido em responsabilidades
maiores; e, claro, a decisão de retirar-se do seu próprio mundo experimentando construir
suas responsabilidades de adulto, quando vai viver só e trabalhar para se manter,
acreditando que desse isolamento poderia, enfim, escrever o livro que lhe
traria os louros como escritor.
Sim, não nos afastamos nunca dessa condição do
sujeito-escritor e de sua relação com o universo literário, como já vimos nos
três volumes anteriores ao Uma
temporada... Ainda que aqui mais se esclareça até onde foi a paixão
desbragada de Karl Ove pela música e a maneira como rompeu com uma das
barreiras mais caras para a vida adulta, o pleno exercício de sua sexualidade e
do sexo, resolvendo com a dúvida de qual sua condição entre as possibilidades
ansiadas pelo corpo em relação ao sexo primeiro e, compreendendo, com muitos
erros, os medos em volta da intimidade com as mulheres, segundo. Essa diversidade
de momentos transitórios – neste romance o leitor sente-se como se numa
verdadeira montanha-russa de sentimentos e emoções – aparece enfeixada com essa
sugestiva metáfora não revelada pelo título. Se tomarmos nossa personagem como
uma construção heroica de si própria logo concordaremos que esses instantes,
repletos de escuridão, são os de uma peregrinação para uma possível saída à superfície não como o mesmo e sim como um outro; que é, a resiliência, essa capacidade
de ir e vir no nada fácil jogo da vida a via pela qual os sujeitos existem. Resta saber se a experiên cia como escritor será esse saída necessária como sugere a certa altura a própria mãe de Karl Ove. É preciso ler a obra para encontrar essa resposta.
Desse
itinerário pelo universo adolescente – marcado, conforme recorda a própria
personagem, entre o desejo pelo sexo, bebidas e festas, sendo o primeiro deles
o que mais prevalece seja na quantidade de pau duro ou gozadas ao longo da narrativa
– é preciso sublinhar um detalhe: o quanto se imprime no DNA das
responsabilidades do macho seu pleno exercício da macheza. Essa constatação não
é aqui inventada com base nas repetições de cenas que envolve a excitação e o
gozo mas na maneira como o discurso do narrador reveste-se da condição sociocultural
de que ao homem compete exercer sua virilidade através da criação de
possibilidades e, claro, o mais importante, sua realização, do sexo. Ainda
que as situações nada mais sejam que produções oferecidas pela efervescência
do corpo e, logo, não nos seja conveniente tratar abertamente sobre machismo
nessa obra. Ou até podemos, mas buscando compreender, se formos observar o discurso
do narrador, como esse tema é escorregadio e não se explica meramente pelos
aparatos da compreensão sociocultural. Sobretudo quando somos confrontados com
os tons de romantismo e de idealizações pelos quais todo jovem constrói em
relação ao sexo. Agora, há outras nuances para se pensar sobre: a violência do
pai contra os filhos e a violência contra a mulher são alguns dos pontos, por
exemplo.
Mas, não é
apenas de farras, aventuras sexuais e bebedeiras que se faz a adolescência desse macho em construção;
há outras reflexões costuradas por este romance que são imprescindíveis não
deixar passar em branco: o instante de libertação e independência das mulheres
e as dificuldades enfrentadas por elas nesse novo cenário que não lhe exime das
responsabilidades recém-integradas ao seu modo de vida e as cobranças em que
sejam perfeitas na pluralidade de papéis; a efervescência cultural de uma época
também de transições, sobretudo da música, que serpenteia toda a obra – entre a
produção do disco para a da fita K7, entre o sucesso de um álbum e sua inserção
no rádio, da música com um dote artístico e a música feita para o consumo das
massas; sobre as posições políticas dos noruegueses entre um estado de direita
e um de esquerda; as leituras, as influências sobre o jovem escritor e o processo de lida com a escrita; sobre a variabilidade do corpo ante a passagem do tempo.
Este último talvez seja o tema mais profundo e que melhor define uma narrativa dessa natureza e por isso
adquire certo tom metanarrativo quando aparece no romance. Ou não é o trabalho
de reconstrução da memória uma tentativa, desde Santo Agostinho, de apreensão
do tempo pela escrita? Isto é, até onde a escrita não é um elemento tornado –
ainda que incapaz – em propriedade possível de apreensão de algo invisível e
que nos escapa? Algo que, incapaz de ser compreendido em sua essência foi
tornado em dimensões matemáticas, como a previsão do tempo tal como reflete a certa
altura um dos tios de Karl Ove leitor de Heidegger. É nessa situação, quando o
olhar do narrador é confrontado com a doença da avó por parte de mãe e a decrepitude
das coisas no sítio onde ela vive com o companheiro e o filho leitor de
filosofia, que a narrativa oferece-nos uma resposta sobre a atividade
detalhista assumida na maneira de contar o vivido e sobre o desfecho ao qual esse exercício está
condenado porque o tempo, invisível, é implacável, afinal ele é na decrepitude
das coisas que ele melhor se revela.
E, em ponto
de conclusão, é necessário voltar a uma observação já construída da leitura das
outras obras de Karl Ove Knausgård mas que ganha outra compreensão a partir de Uma temporada no escuro: a maneira como
o escritor norueguês constrói pela palavra as sensações de modo que elas passem
do papel para o leitor na plenitude de sua força. Sobre isso, é possível citar
a ocasião pós-bebedeira, quando na saída com os professores colegas de trabalho
para uma festa numa cidade vizinha. O que narrador quer aqui é produzir no leitor
toda a sorte de agruras sofridas pela perda de memória e logo a incapacidade de
saber se ultrapassou as barreiras do conveniente e do comum, de quando se está sóbrio.
E produz; ninguém sai inteiro depois de atravessar essas descrições e a constatação
de alguns dos lapsos de memória. Da mesma maneira que todos são capazes de sentir
com a personagem as lágrimas nos olhos quando rechaçado pelo pai ou pelos avós
paternos; ou ainda toda sorte de sentimentos, sobretudo os mais íntimos, em sua relação com o outro. Sem falar, é claro, no grau de empatia que o leitor desenvolve para com
as ações do narrador.
Nesse ínterim, a maneira encontrada pela escrita se mostra
em duas frentes, as duas marcadas pelo estilo direto de narrar: ora, é a recriação
da cena com a descrição e os diálogos por extenso, isto é, marcados com a sinalética
usual para as narrativas dialogadas, ora é a recriação sem essa preocupação em
parecer organizado com o que diz e com que dizem as personagens. Para um leitor
de José Saramago e admirador confesso desse último estilo, fica difícil não
dizer que essa maneira não apenas reafirma a intromissão entre os planos de
dentro e de fora do texto – como se fossem uma só coisa – como melhor traduz
essa ânsia de dizer tudo, sem que nada escape. No caso de Karl Ove Knausgård,
sua ansiedade não está em toda parte, mas só em algumas situações – aquelas em
que verifica não ser dotadas de grande grau de relevância para as memórias? Talvez.
Isso é apenas uma das maneiras estruturais encontradas pela escrita a fim de
não de se desvencilhar por um instante sequer sobre esse interesse de produzir no leitor a extensa rede de sensações
vividas e revividas pelo escritor. Isso nos reconduz a um antigo problema e talvez ainda o
principal ao se contar uma história: é preciso fazer com que o narrado pareça
realidade. Ou melhor com que ele seja realidade; mesmo que este narrado seja uma transcriação da realidade, como é o caso
em Karl Ove Knausgård. Enfim, é sempre uma condição renovadora e recompensadora
encontrar-se com obras com tanta força como esta.
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