Rosa dos ventos, de Manuel da Fonseca (Parte II)
Por Pedro Belo Clara
Considerando tudo o que expusemos na publicação anterior, se
recordarmos os preceitos básicos da obra em consideração depressa concluiremos que
somente no terceiro capítulo deste livro, “O vagabundo e outros motivos
alentejanos”, o traço mais brilhante de Manuel da Fonseca, visto ser aquele que
mais fiel se revela ao seu celebrado estilo e tema, se fará notar. É claro que
as temáticas decifradas nos poemas anteriores também constituem uma parte do
seu singular universo literário; mas sublinhamos isto que dizemos apenas por
nesse momento específico se identificar o conteúdo central da sua produção
literária. Trata-se, portanto, do solo donde irromperam as árvores que dariam
os seus sumarentos frutos em diversos romances e contos de assinalável sucesso.
Será, assim, inevitável o mergulho do leitor nas paisagens e vidas de
um Alentejo profundo, bem como a oportunidade de demorar o olhar nos rostos de
personagens que, para quem conhece minimamente a obra de Fonseca, não serão
mais estranhos que o rosto do próprio vizinho. Pois nomes como Maria Campaniça
ou Rosa Charneca, tão castiços quanto peculiares, povoam certamente o
imaginário do leitor versado nas temáticas de Manuel da Fonseca. Embora um dos
poemas mais célebres do capítulo não invoque nenhuma delas em particular, antes
o herói anónimo que talvez noutras mãos seria ridicularizado ou até alvo de
desprezo. Contudo, na obra de Fonseca, a dita figura ganha uma dimensão
prodigiosa: o vagabundo, claro está, esse pobre diabo que tem «o céu como tecto
/ e o vento como lençóis», a quem até negam «a última de todas as mulheres».
Mas no âmago dessa tortuosa liberdade refulge uma estrela deveras singular. Vejamos:
E quando notaram que eu parecia um homem,
pois tinha
ouvidos para ouvir
e olhos para ver,
em todas as estradas do mundo
me gritaram:
– Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!
São palavras que encontram, diga-se, o devido complemento no poema
seguinte, “Sol do Mendigo”, tão fulgente quanto o revérbero cru das coisas
claras: «Olhai o vagabundo que nada tem / e leva o Sol na algibeira!». Eis,
então, a arte suprema, a derradeira transcendência rumo a uma vida plena. O
curioso, e quase paradoxal, embora se o caríssimo leitor olhar atentamente verá
que o não é, reside no lugar, ou melhor, na figura onde habita tamanha semente.
Mas não serão os excluídos os mais capazes de apreender uma nova vivência? Como
oferecer a quem já se afoga na vida amorfa a hipótese de salvação? A ideia,
aliás, já havia sido exposta aquando da abordagem a poemas anteriores: o Homem
clama por liberdade, mas na hora derradeira foge como animal acossado, desejoso
por morrer no conforto da sua cela.
A isto se acrescentará, é certo, os retratos daquelas personagens que
habitam outros romances e contos, também elas aqui merecedoras de atenção por
parte do homem que vestia o hábito de poeta. A Maria Campaniça, como antes
revelámos, de «lindos olhos» mas de «rosto macerado / de andar na ceifa e na
monda», mulher com jeito «de mágoa e abandono», como tantas outras entregues à
ruralidade de uma existência agreste. E a Rosa Charneca, claro, alvo de
tamanhas atenções por parte dos moços casadouros, e não só, ainda sorridente na
sua graça humilde e sempre tentadora: «À noite / em que feira do Alentejo, /
por ti, os malteses¹ abrem as navalhas?...».
Mas não se dará por finalizado o exercício retratual, pois fragmentos
de muitas outras histórias ainda poderão aqui ser encontrados. Como aqueles que
são oferecidos por “Nocturno”, um poema de pendor narrativo com grande teor
descritivo, e que praticamente conduz o seu leitor àquelas altas noites de
prosa à porta dos cafés ou em pleno adro, que era, como Fonseca tão bem o
descreveu, o “centro do mundo”. Eis que Jacinto Baleizão contava a seus ouvintes
como era o mar, eles que, entre cerros e cabeços, nunca o haviam visto. Neste
tom, é-nos de súbito apresentada a triste realidade de Zé Cardo: «Há tanta fome
na casa dele… / Toda a noite quatro meninas tossindo / que nem deixam dormir os
vizinhos».
Também em “Canção” assistimos ao triste fado de uma família após um ano
de más colheitas: «Num ano de grande fome, / minha família acabou-se». Não
obstante a já de si dura realidade de quem dependia da terra para sobreviver
(«Eu tinha uma boa enxada / donde tirava o sustento»), ainda havia que lidar
com a probabilidade de uma época menos prolífera colocar, num abrir e fechar de
olhos, um pesado fim à tão precária alegria de uma família tipicamente
alentejana. Deixemos os derradeiros versos retumbar no silêncio da sua crua
beleza:
Minha mulher foi prà monda,
lá para o Alto Alentejo.
E a minha filha abalou
com uma mulher que ri
e anda de feira em feira
armando aquela barraca
onde se bebe e se ama.
E numa manhã de Inverno,
não pude mais e parti
– pelas estradas do acaso
com a manta de maltês!...
Ficamos também a perceber que, afinal, o retrato é feito pela boca do
pai de Rosa Charneca, agora entregue a uma vida capaz de manter a própria mãe
confinada ao isolamento da casa («Agora que tua mãe voltou / nem sai à rua de
vergonha…). Feita a soma dos infortunados sucedidos, eis por resultado mais um
chefe de família que por força dos fados se fez “maltês”.
E será precisamente com uma canção a eles dedicada que este capítulo se
encerrará. A mesma, pejada de um sentimento de abandono e resignação, oferece
um acurado retrato daqueles homens que tudo largavam em busca de algum
sustento: «Bati à porta / porque sou um deserdado». Sempre recebidos de
«espingarda na mão», acabam, caso a sorte lhes sorrisse, por encontrar nalgum
celeiro, o «palácio de maltês» por excelência, lugar de merecido repouso e um
caldo quente para forrar o estômago. Por paga, a «melhor história / da minha
vida sem rumo» seria partilhada. Depois, há que recuperar forças para mais um
dia vivido do soldo da estrada:
Despedi-me até mais ver
que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer
ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Pensamos estar já
claro que, embora muito provavelmente todas as personagens e suas tristes
histórias tenham sido inspiradas em factos não só reais como do próprio
conhecimento do autor, atravessando a sua infância e adolescência, cada figura
que Fonseca elege e retrata com acurado primor não é mais que uma
personagem-tipo, uma máscara literária que muitos outros rostos de um passado
não muito distante poderiam utilizar com a mais digna das propriedades. Os
relatos de Fonseca, assim, eternizam uma das épocas mais sombrias, não só
daquela região, ainda hoje entregue ao esquecimento do seu duro sol e das secas
planícies, como também do país que o viu nascer.
O capítulo que de
seguida se apresenta, respeitando o habitual suceder das páginas, denomina-se
“Poemas da infância” e, ao contrário do que se poderá julgar, não encerra
poemas escritos durante esse período de vida, antes a evocação de determinados
momentos que à época se revelaram marcantes para o autor. É claro que se abrirá
espaço ao relato das primeiras aventuras amorosas e à consequente tentação do
enorme mistério que brotava do sexo oposto – o «mistério dos seios nascendo
debaixo das blusas» (“Segundo”). São, naturalmente, poemas na sua globalidade
imersos na suava aura de um amor pueril, mas igualmente um marcador importante
no florescer da vida de um determinado ser. Afinal, para trás deixa-se a infância
por troca com todo um novo e sedutor universo de promessas ainda não
compreendidas na sua totalidade. Então o “jogo” passa a ser outro, totalmente diferente
daqueles até aí experienciados:
Decerto
foi numa noite dessas
que eu pus os dedos sobre o peito
e senti os teus seios nascerem debaixo das minhas mãos!
Nunca mais jogámos o jogo das cinco pedrinhas!...
Esta parte
específica da obra encontra-se arrumada de modo, digamos, crescente, isto é,
seguindo uma ordem de acontecimentos que respeita a própria ordem natural da
vida. Assim, se em “Primeiro” somos confrontados com um poema admiravelmente
simples, evocando o glorioso deslumbre das descobertas de aparência frugal,
personificado, no caso, num banal pedaço de vidro donde «chispavam as sete
cores do arco-íris», rapidamente a ordem apresentada escala outros patamares: o
contacto com o sexo oposto, a inevitável atracção, o tortuoso desejo, a doce
entrega. E em “Quinto”, o último poema deste breve capítulo, já nos deparamos
com um caso mais amadurecido, mesmo que a maravilha da descoberta faça ainda a
sua estrela cintilar. O autor refere-se a uma rapariga mais velha, de negros
cabelos, que está para casar. Ainda assim… «teimas em demorar o beijo que te
dou / quando vou visitar-te». Eis a natural procura, portanto, dos rapazes
ainda em estado de despertar por raparigas mais velhas e com um certo grau de
experiência na lide superior ao deles, as sempre tão necessárias guias de quem
começa ainda a definir o seu modo de amar: «Tu que sabes o que há de
maravilhoso / nesse encosto de peitos e de bocas».
A obra não termina,
como é óbvio, sem que antes nos demoremos pelos últimos capítulos do livro,
encerrando cada um apenas três poemas. Com maior pendor narrativo, aos mesmos foi
meramente concedido o nome de “Poemas”, com indicação da sua divisão em duas
partes. Na primeira, encontra-se um poema a que na anterior parte desta
discussão fizemos referência, “Os olhos do poeta”, mas na segunda
deparar-nos-emos com trabalhos de ritmo ainda mais intenso e significância mais
profunda. Polvilhados, aqui e ali, com certas reminiscência de Cesário Verde
(«as ruas mortas como paisagem de cemitérios», “Ruas da cidade”), atingem o
clímax mais fervoroso no último poema da obra, “Domingo”, mais longo e
fortemente narrativo (ao bom estilo de Ruy Belo), onde o sujeito poético,
perante o fluxo de vida que no momento o invade, faz «tenção de todas as coisas
mais belas / que um homem pode fazer na vida». Doce ilusão.
O poeta vai abdicando um pouco do seu papel de “contador de histórias”,
melhor definido naqueles que encontrámos páginas atrás, para assumir
abertamente o de observador. E será a partir desse palanque que elaborará a sua
crítica, que exporá o seu estado de espírito. São poemas donde transparece a
necessidade da esperança por contraste com a inutilidade de uma vida tão
amordaçada e cinzenta, virtude essa, apesar da sua força vital, fatalmente
condenada aos desgostos da desilusão. Não se desenquadra muito daquela espécie
de existencialismo com inclinações naturalistas identificada nas primeiras
leituras da obra, onde a figura do ser se vê oprimida num tempo e espaço que
não lhe proporcionam oportunidade de expansão e consequente afirmação plena das
suas potencialidades. E quem diz das “suas” também se refere às “dos outros”,
como as da «costureirinha mais honesta» que em tempos namorou – agora moça de
virgindade vendida, apenas porque ao domingo as casas de penhor «estão fechadas».
Não se surpreende, pois, que haja «mais amargura nisto / que em toda a História
das Guerras».
Todos estes excertos pertencem ao poema antes frisado, sem dúvida o
melhor exemplo do que se afirma, sublinhada que está a ilusão dos tempos da
puerícia agora morta nas margens dos primeiros passos da vida adulta e do
contacto com essa realidade amorfa e sem perspectivas futuras. Um poema,
portanto, que impressiona pela rudeza do seu traçado, levantando um enorme
espaço de reflexão sobre o género de vivência que desejaremos legar às gerações
vindouras.
Talvez se possa associar à obra de Manuel da Fonseca um certo simplismo
de processos e de vocábulos, uma certa descomplicação na construção das
abordagens ou até uma monotonia temática, pois bem se sabe que o autor nunca
primou por grandes envolvimentos narrativos ou profundas implicações
filosóficas. Acima de tudo, a frugalidade de um retrato limpo e acurado. Por
isso, a riqueza humana do seu legado, ainda que forjado sob tais parâmetros, é
algo que de boamente não se poderá renegar. Antes pelo contrário: perdurará
como o corolário de um tempo passado, jamais esquecido; e daí assumindo-se
sempre como um destacado aviso para que tais vivências não se permitam nas sociedades
futuras. Mais do que o conselho, sobrou o exemplo – claro e puro.
(…)
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então, todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casa de penhores…
(…)
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta.
Notas:
1 Os malteses seriam aqueles homens que, durante décadas, percorriam as terras alentejanas com mantas às costas, batendo aos portões das quintas, herdades ou montes (“fazendas”, em português do Brasil) em busca de trabalho e abrigo. A figura ganha na obra de Fonseca contornos quase míticos, pois assumem-se os arautos da liberdade vagabunda, sem posses a proteger ou família para alimentar, embora na realidade muito rapidamente à sua desgraça se rotularam aptidões de roubo e matança. Sobre eles, inevitavelmente, pousavam os mais agudos olhares de desconfiança.
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