O desvelar da existência em Beleza americana
Beleza americana me faz
pensar nas obras de Clarice Lispector que terminam com a morte da personagem
central em seu momento de maior graça existencial. Tal momento é como que o
desvelar de uma verdade absoluta a qual revela ao ser que a tem o caminho para
uma vida mais autêntica. Lester, personagem central do universo dirigido por
Sam Mendes, passou a vida preso a um padrão familiar e por isso se revela como
a prova viva de que o modelo de família tradicional é falho quando se torna
algo sem sentido, mantido apenas para causar sentimento de pertencimento ao
ciclo social tido como normal. Quando isso ocorre, há a negação de que outros
modelos familiares podem, também, ser fonte de felicidade, como se houvesse um
código – e na verdade muitos de nós pensam que ele exista de verdade – que
impeça que haja amor além das fronteiras impostas por nossa linguagem.
Lester e sua
esposa, porém, estão ocupados demais com sua própria tragédia para tentar
anulas outras formas de felicidade, ao contrário do vizinho militar, que passa
o tempo todo monitorando as atitudes do filho para impedir possíveis surtos de
homossexualidade, sem reparar no profundo estrago existencial e psicológico que
causa ao garoto e à mãe do mesmo, que demonstra uma apatia ao longo filme que
mais parece com profunda demência, uma loucura que remete a romances russos que
mostram a realidade como algo insustentável demais para não ser ignorada, mesmo
que inconscientemente.
Carolyn e Lester
sofrem por terem degenerado em uma dupla que faz de tudo para se suportar,
enquanto contemplam os antigos sonhos de amor mortos pelo passar do tempo. Como
o casal protagonista de Foi apenas um sonho (também de Mendes), os dois são a face viva do desespero e procuram
de todas as formas romper com a bolha na qual estão imersos. Todavia, a cada
cena dos dois juntos percebemos que já não há forças nem mesmo para disfarçar
perante os outros e si mesmos que não há mais amor, nem mesmo afeição, entre os
dois, exceto o ódio. Ambos servem de espelho um ao outro a exibir como as duas
existências fracassaram em seus projetos individuais e coletivos, o que torna a
comunicação entre ambos impossível ou muito dificultosa.
É na
clandestinidade amorosa que acharão a chance de fugir de seu ciclo amorosa que
acharão a chance de fugir de seu ciclo vicioso de conflitos e ódio, cada um
projetando no novo ser amado o que sente faltar em si. Carolyn vê no famoso
corretor imobiliário por quem se apaixona o sucesso profissional que ela tanto
persegue e não alcança mesmo já sendo uma mulher de meia idade. Já Lester vê na
jovem Angela a chance de rejuvenescer e de recuperar o vigor perdido ao longo
da vida, o que de certa forma ele consegue.
Nesse momento, os
dramas existenciais que moldam a família vêm à tona, mesclando-se a outras
questões importantes para o entendimento de nossa sociedade e seus problemas de
ordem moral e social. A pedofilia de Lester se mostra mais como uma perversão
social – o macho fracassado em busca de redenção – do que uma patologia em si,
mostrando como a conquista do sexo oposto se liga no ser do homem heterossexual
a minuciosas questões do ego, que em certos contextos podem desencadear gestos
absurdos e violentos. Ao mesmo tempo, o vizinho de Lester usa de um profundo
fascismo homofóbico para impedir que o filho use drogas ou se torne homossexual.
Nesse sentido, Frank Ritts é a voz totalitária dentro do universo fragmentado
de Beleza Americana, tentando abafar
os problemas existentes por meio do cerceamento da liberdade alheia, o que leva
a esposa à loucura, o filho ao tráfico de drogas e ele próprio a um assassinato
com o intuito de abafar a dolorosa verdade – para ele – de que o que
considerava inimigo reside dentro de si. Assim como todo sistema totalitário,
Frank se mostra um sujeito que usa a força para parar o fluxo do pensamento e o
desenrolar da história. Desse modo, por trás da solidez do discurso há um
profundo desequilíbrio que se revela em todos os momentos em que Frank enxerga
do outro viva e nua.
A realidade de Beleza americana é cheia de cores, mas
sem vida e sem cheiro, como a flor que simboliza o nome do filme. Tal realidade
é repleta de artificialidade. Jane e Ricky – filha e filho de Lester e Frank,
respectivamente – são os elementos de profundidade, de amor sincero e romântico
dentro do ambiente melancólico do filme. Todavia, ainda são jovens e o tempo
sempre gera o risco de que caiam na artificialidade dos pais no futuro. Ainda
assim, são elementos de resistência dentro de uma série de condutas
existenciais inautênticas. O casal de homens que pouco aparece no longa representa
melhor a felicidade genuína que rompe barreiras sociais impostas. A escassez de
aparições deste casal se deve ao fato de que o desejo do filme é focar nos
núcleos familiares instáveis depois que as palavras já não bastam para garantir
a ilusão de certeza e precisão.
Por mais
asqueroso que o processo de Lester se mostre a priori, o enredo do filme o
converte em algo profundamente tocante, belo e poético. O homem magistralmente
interpretado por Kevin Spacey rompe uma série de empecilhos presentes em sua
vida – a começar o emprego odiado – e deixa o ar patético e abobalhado do começo de Beleza americana assumindo uma postura autônoma e corajosa. Porém,
é no momento em que vai realizar o desejo por ele perseguido de forma obcecada
– o corpo de Angela – que Lester possui a clara visão do quanto o patético de
sua existência o dominou a ponto de ver em uma criança um obscuro objeto de
desejo.
Curioso que mesmo
Angela sendo tão jovem já se mostra também como uma vítima da artificialidade
da realidade cotidiana. Bela, fumante e motorista, a jovem loira fala a sua
amiga Jane o quanto gosta de se envolver sexualmente com homens mais velhos e o
quanto isso mexe com sua vaidade. No fim do filme, o nervosismo diante de uma
situação concreta com um homem mais velho leva sua capa a cair e ela serve de
fator revelador para Lester se libertar das mentiras contadas a si mesmo. É aí
que Lester percebe a beleza de sua vida até então ignorada e o amor nutrido por
Jane e Carolyn. O monólogo final do filme é um poema de amor a uma vida cuja
beleza muitas vezes percebemos apenas nos momentos em que a mesma se encontra
no risco de um sumiço repentino, quando a vemos por inteiro regida por uma
ordem diferente que não a do tempo.
A morte é a
culminância de todos os desvelares do filme de Sam Mendes. Beleza americana se mostra ao mesmo tempo um interessante panorama
social do fracassado sonho americano – que permeia muito dos discursos
reacionários os quais se dizem em defesa da moral e dos bons costumes. Mas mais
do que isso, esse belo longa-metragem se mostra como um belo painel das
condutas existenciais inautênticas que permeiam muito de nossas vidas. Assim,
ele também pode ser visto como um belo convite provocador para que nós rompamos
nossas próprias ilusões pessoais, as quais limitando nossas vidas em modelos
pré-formados só nos tiram o prazer de existir fazendo da morte um melancólico
momento de redenção a nos salvar de nós mesmos.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
Comentários