James Joyce e Virginia Woolf como leitores

Por Martín Schifino



Os grandes escritores leem de outra maneira? Expressão suas intuições, toda vez, em textos diferentes aos produzidos pela crítica que não é criadora sozinha? Se alguém já fez essas perguntas, deve possuir parte das respostas. Mas deverão faltar definições, e um bom começo será encontrar com T. S. Eliot quando destaca a especificidade do crítico “cuja obra pode caracterizar-se como algo derivado de sua obra poética”. Sem dúvida, uma diferença essencial sobressai nessa “derivação”. Como nota o ensaísta e romancista ocasional James Wood, “o escritor-crítico, o poeta-crítico, se encontra em proximidade competitiva com os escritores sobre os quais fala”.

A crítica, em duas palavras, forma parte de uma discussão contínua com os pares. Pode ser por isso o momento de expressar afinidades. E constitui uma oportunidade ideal para revisar a tradição. No seu limite, o escritor-crítico é como a assessoria de imprensa que imaginava Orwell em 1984: ler o passado para apontar uma posição atual. Flaubert, segundo contam por aí os Goucourt, exaltava as frases de percursores que soavam como Flaubert; e não por acaso os ensaios de Eliot exaltavam poetas ingleses do século XVII e cânones franceses e italianos que se confundiam na poesia do próprio Eliot. Mas o escritor-crítico também participa de uma época determinada, e nesse sentido contribui para o que poderia chamar-se um clima de opinião, que transcende interesses pessoais e se funde com o da história.

Algumas publicações mostram como James Joyce e Virginia Woolf leram os escritores que influenciaram, inspiraram ou diretamente lhe fatigaram. Há que destacar pelo menos dois livros que abundam de inteligência, ou nas palavras de Wood, “o corpus mais importante da crítica inglesa do século XX”: são Horas numa biblioteca, de Virginia Woolf e os ensaios e resenhas de James Joyce reunidos em Escritos críticos e afins, em que se pode ler como autobiografia intelectual em fragmentos. São ensaios escolares, conferências, cartas e trabalhos que Joyce escreveu para obter o título de professor de inglês na Itália.

Diferentemente de Woolf, Joyce exerceu pouco o ofício regular de crítico, ainda assim buscou um ganha-pão em jornais, primeiro em Dublin e depois em Trieste. As resenhas breves que publicou no Daily Express de sua cidade natal aos vinte e poucos anos mostram-no quase sempre informado, por vozes dado à provocação e dono de uma atitude bastante típica da sua idade: zomba da ingenuidade um mau livro sobre Shakespeare, desqualifica um discípulo de William James, trata com adjetivos leves as novelas populares de Alfred Mason. Joyce coloca um pouco mais de empenho ao comentar um livro sobre seu admirado Vico ou ao repensar um romance sentimental como certo mérito estilístico, mas ainda sente que nenhum desses assuntos lhe toca bem de perto, e é evidente que já então situava as resenhas por debaixo de suas habilidades como ficcionista.

Nesse sentido, a mais reveladora é a última resenha que escreveu para o Daily Express, em que parodia os lugares comuns do resenhista e dá via livre ao sarcasmo: “a encadernação do livro é tão feia como razoavelmente se poderia esperar”. Conta-se que por isso o diretor do jornal o demitiu. Mas custa acreditar que tenha sido uma perda para Joyce. Em troca, a posteridade havia saído perdendo se The Fortnightly Review de Londres não houvesse encomendado a um Joyce de dezoito anos um estudo sobre a peça mais recente de Ibsen, Quando despertamos de entre os mortos. Joyce não só escreveu uma detalhada recensão da versão francesa, mas analisa a obra completa do dramaturgo norueguês e finda relacionando-a com os “estudos psicológicos” de Thomas Hardy e Turguêniev. Há alguma saída de tom involuntariamente cômica, como a dizer que Ibsen dá “provas de seu extraordinário conhecimento das mulheres”, algo que o resenhista adolescente não podia confirmar. Mas sua perspicácia crítica nunca deixa em dúvida. O próprio Ibsen lhe enviou uma carta de agradecimento; Joyce, naturalmente, lhe respondeu em norueguês.

A voracidade intelectual de Joyce o conduz ao multilinguismo e é interessante descobrir nestes escritos um louvor acadêmico intitulado “O estudo das línguas”. Mas se o norueguês lhe permite ler melhor Ibsen, o que mais lhe cativa não é sua “norueguesa” mas a ressonância de sua aldeia no mundo. Como diz sobre Quanto despertamos de entre os mortos: “O tema é, num sentido, muito limitado, e noutro, muito vasto”. Sabíamos por Ulysses que a Joyce encantava buscar o espaço infinito dentro de uma casca de noz; descobrimos o gérmen disso noutro ensaio, também da juventude, “Drama e vida”: “A sociedade humana é a encarnação de leis imutáveis que os caprichos e circunstâncias de homens e mulheres encobrem e descobrem [...] O drama tem a ver em primeiro instante com as leis subjacentes, em toda sua desnudez e divina severidade, e só em segundo lugar com os agentes heterogêneos que as confirmam”. Dito com menos abstrações, os agentes heterogêneos bem podem ser Ulisses na peregrinação pelo Mediterrâneo ou Bloom deambulando por Dublin; as emoções se equivalem.

Se necessitássemos mais provas, encontraríamos noutros textos incluídos nessa antologia, como os que louvam os escritores ingleses Defoe e Dickens. Numa conferência de 1912, ditada depois de finalizar os contos hiper-realistas de Dubliness, Joyce elogia ao primeiro por não copiar nada dos modelos estrangeiros, como haviam feito os escritores ingleses até então. Como se explica isso no grande cosmopolita? Simples: a Joyce lhe irrita o não-autêntico, o falso, a palavreado vazio sem um ponto de ancoragem na realidade imediata. Em Defoe, ao contrário disso, vê um estilo natural, “sem melindres de nenhuma sorte”, e um escritor que “dois séculos antes de Górki ou Dostoiévski, trouxe para a literatura europeia a pequena gente do povo, o órfão, o batedor de carteiras, o cafetão, a prostituta, a bruxa, o náufrago”. Mas Joyce tira disso uma conclusão característica: “sob a capa rude de suas personagens” encontramos “um instinto e uma profecia”, isto é, um arquétipo.

No ensaio sobre Dickens, também de 1912, Joyce invoca a mesma força: “A vida de Londres é o alento de suas fossas nasais: [Dickens] a sentiu como nenhum escritor antes ou depois sentiu. As cores, os ruídos familiares, os odores característicos da grande metrópole se unem em sua obra como uma potente sinfonia onde humor e angústia, vida e morte, esperança e desesperança, estão inextricavelmente entrelaçados”. Deixemos de lado a grandiloquência: Joyce escreveu o anterior para um comitê de examinadores e tinha que demonstrar ninharias com o urso correto do paralelismo. O importante da frase é que relaciona com mais objetividade que um telégrafo as cidades de Londres e Dublin. Quem se não Joyce sentiu as cores, os ruídos familiares, os odores característicos de sua metrópole? E a lição de Dickens, como a de Defoe ou Ibsen, contém um paradoxo: no específico resenha o universal.

O paradoxo próprio de Joyce é que o universalismo de sua visão frequentemente abre mão de particularidades irredutíveis a nível estilístico. Muito antes de um romance para criptógrafos como Finnegans Wake, seus hábitos retóricos privilegiam o pedantismo, a opacidade, os hieróglifos pessoais; como seu discípulo Beckett, Joyce se regozija no hermetismo gratuito. Melhor dizer “O nolano” Giordano Bruno (natural de Nola); melhor deixar uma sentença em latim que traduzi-la. É uma maneira, sem dúvida, de pavonear a própria autoridade. Mas em alguns escritos, isso se traduz equivalentemente por um solilóquio pronunciado de costas para o público.

Inclusive em sua vida privada Joyce parece haver sido um tagarela, segundo se lê em dois testemunhos recolhidos por Arthur Power em Conversações com James Joyce. Sempre fascinante de ler, o livro exige que se leve como um grão de sal. Power, um pintor e crítico irlandês exilado em Paris, não visitava Joyce com um ditafone ligado, e os diários que escrevia depois de seus encontros são tão confiáveis como qualquer memória de curto prazo. Mas Power escrevia com agudeza, conhecimento de causa e bom olho para a anedota; indiretamente, nos permite ouvir Joyce falando da Irlanda, Ibsen ou Dostoiévski. E às vezes captura a personalidade: “Um de seus recursos mais característicos – acerta – era sua constante negativa em dar uma opinião direta sobre nada nem ninguém”.



Ninguém poderia acusar Virginia Woolf de adotar uma atitude semelhante ao escrever ensaios. Sem se descuidar de atenuantes, disse uma e outra vez o que pensa, e suas opiniões cobram quase sistematicamente o brilho da pertinência. Horas numa biblioteca mostra a escritora em seu labor de resenhista, uma ocupação que começou em 1905 e que correu durante quase toda sua vida em paralelo com a escrita de ficção. Quase todos os textos desta coletânea foram escritos obedecendo prazos, mas as pressões redundavam numa relação sempre dinâmica com a literatura. Woolf é essa rara espécie de crítico que transita entre um argumento e um diálogo, onde o interlocutor implícito pode ser o autor de determinado livro, a tradição ou a opinião pública. Alheia ao monologismo do púlpito, possui uma voz essencialmente polifônica.

Isso não quer dizer que careça de timbre próprio: um dos prazeres de ler suas críticas é ver como as conjecturas iniciais vão se tornando em convicções. De maneira mais explícita que Joyce, Woolf reage contra a geração antecedente enquanto desenvolve sua própria ficção. A lacuna de Horas... é não incluir seus grandes ensaios-manifestos “Ficção moderna” e “O senhor Bennet e a senhora Brown” (N.T. o primeiro incluído em O valor do riso, ed. brasileira com ensaios de Woolf) – mas encontramos argumentos parecidos em várias resenhas independentes. Ao considerar Elizabeth Gaskell, por exemplo, Woolf menciona “a irritação que nos suscitam os métodos dos romancistas de meados da era vitoriana”, e critica que “não dizem nada por não sabiam dizer”; sua própria geração aspira “não dizer nada que não tenha que estar”. Daí Woolf censurar-se quanto ao “materialismo” de escritores como Arnold Bennett ou John Galsworthy, quem no seu entendimento se perdem descrevendo carruagens, móveis ou vestidos, como se assim pudessem circunscrever a complexidade da vida. Para Woolf, essa complexidade devia ser buscada na substância não palpável da consciência.

Se essa visão se concretiza suntuosamente em romances como As ondas e Ao farol, as resenhas nos falam de seu cotidiano mais trivial. Woolf, é evidente, aprendeu muito lendo os grandes russos, que então começam a ser traduzidos em grande escala para o inglês. Em especial, se maravilhou ante as primícias de Dostoiévski, a quem chama de “grandiosíssimo gênio” e a quem louva numa crítica de 1917, “o reverso do método que à força adota a maioria dos nossos romancistas”; em vez de “aparências externas”, Dostoiévski aproxima-se do “tumulto do pensamento que se ventila”, e eis aí um exemplo digno de ser seguido. Tchekhov tampouco a deixou indiferente. Woolf simpatiza com suas histórias inconclusas, com os fragmentos que parecem “haver sido montados quase por puro acaso” e nos que espreita a promessa de uma revelação.

Em geral, Woolf lê, como Joyce, com plena consciência de sua tradição, assim como em posse de uma literatura e uma língua que remontam até aos isabelinos; mas também pressentem que uma tradição se acaba sem afluentes frescos, e assim buscam a diferença nos autores de outros lugares. Os russos são em parte para Woolf o que Ibsen era para Joyce – uma via de escape ao comum. Mas ela não só vê neles a solução de um problema abstrato como a renovação da literatura nacional, mas fagulhas muito concretas de “vida”, uma palavra que em seu vocabulário crítico de aproxima de “sensibilidade”. E é a vida o que encontra nos diários póstumos de Katherine Mansfield, uma escritora tchekhoviana com quem havia tido complicadas relações de inveja e que depois de sua morte oferece “o espetáculo de uma terrível sensibilidade”.

Mansfield, E. M. Forster, Lytton Strachey, Joseph Conrad, D. H. Lawrence... O arco crítico de Woolf parece abarcar todo o âmbito do modernismo. Mas a omissão significativa é Joyce, de quem não só falou em diários ou cartas sem pronunciar-se nunca sobre sua obra em público. Também deixou passar o que qualquer um julgaria uma oportunidade de ouro em 1919, quando intermediário levou o manuscrito de Ulysses a The Hogarth Press, a editora que Woolf dirigia com seu marido: embora o livro tenha sido reprovado por sua extensão, à editora em potencial a obra não lhe fez falta nem antes nem depois. Joyce, entretanto, sempre guardou distância com Bloomsbury, e em vão se buscará seja em seus Escritos críticos ou em suas conversas com Power o nome de Virginia Woolf. Como se explica que os dois maiores artífices de seu tempo em língua inglesa tenham feito tão pouco caso um do outro? Mas talvez o melhor seja não pedir explicações: os escritores leem exatamente o que devem para chegar a ser quem são.

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* Este texto é uma tradução livre para "Joyce y Woolf como lectores". Os títulos e as passagens das obras são do original em espanhol.

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