Dois anos, oito meses e 28 noites, de Salman Rushdie
Por Luisgé
Martín
Salman Rushdie
foi marcado há anos com um destino que obscureceu publicamente sua grandeza
literária; suas últimas obras, depois disso, não voltaram nunca à mesma altura
de Os versos satânicos e, também, Os filhos da meia-noite. De modo que o
escritor tem se convertido mais num mártir ou numa personagem icônica e não num
escritor respeitado. Este novo livro poderia ajudar a corrigir esse desvio de
caminho, o que faria Salman Rushdie um dos maiores nomes vivos da literatura de nosso tempo.
Dois anos, oito meses e 28 noites são exatamente
mil e uma noites; esse é o modelo que, com
um olhar irônico, ele emprega na construção desse livro: um romance cheio
de histórias triviais, marcadas pela fantasia delirante, e de indignação imaginativa
sobre a natureza humana. Salman Rushdie quis ser a Sherazade de nosso século,
mas o empenho não parece ser grande o suficiente. Isso, não serve em nada para
desmerecer a riqueza da obra ora publicada.
O título
conta a história da Era da Estranheza, a tirania dos djins e a Guerra dos
Mundos. O narrador, de um futuro muito distante, relata o que ocorreu nessas mil
e uma noites fundamentais. O mundo humano e o mundo das fadas entram em grande
conflito. Começam a produzir-se fenômenos insólitos: o jardineiro Geronimo,
cuja esposa havia sido fulminada por um raio numa tempestade terrível, começa a
flutuar sobre o solo. Logo aparece um bebê que é capaz de deixar marcas nos
corruptos ou um desenhista de quadrinhos que descobre em si mesmo poderes
sobrenaturais. Todos eles são descendentes de uma dinastia fundada há muitos
séculos por uma djínia – Dúnia, do Reino das Fadas – e um filósofo
racionalista. Depois desses fenômenos paranormais, que protagonizam a Era da
Estranheza, os djins tentam dominar a Terra. Finalmente se produz uma guerra em que os dois
mundos se enfrentam: os dos seres mágicos e os dos humanos. Vencem os humanos capitaneados
pela fada Dúnia.
Não quero
chamar ninguém de errado: mas Dois anos,
oito meses e 28 noites não é, como tem repetido a crítica, um livro de
literatura fantástica. Podem lê-lo – e devem os amantes de O senhor dos Anéis, de A
guerra dos tronos ou de qualquer das sagas semelhantes. Mas podem e devem
lê-lo também os que se sentem aborrecidos com esse tipo de literatura. O livro
de Rushdie fala sobre nós, sobre o mundo no qual vivemos, sobre as turbulências
da história, sobre os dilemas éticos e sobre a condição humana eterna e perdurável.
Há alguns
anos esteve na moda falar sobre a totalidade do romance (uma espécie de Romance
Total, um hipergênero narrativo que não se conforma em abordar um só aspecto da
realidade mas que quer abarcá-la como um todo: Dom Quixote, Guerra e paz,
Cem anos de solidão ou A guerra do fim do mundo). Dois anos, oito meses e 28 noites tem
essa mesma vontade. Por suas páginas desfilam o integrismo islâmico, a
sociedade do consumo, o feminismo, a homossexualidade, as novas formas de comunicação,
a nostalgia ou o aristotelismo. Os céus e a promiscuidade. A violência, as
crenças e a organização política. Tudo. Um universo sem limites, nem centro.
O livro é também
um romance-luva. A um voltairiano como eu, por exemplo, chama-lhe a atenção suas
opiniões (é um romance cheio de características simbólicas a Voltaire); mas
para um crente religioso, pela via contrária, a obra dará sustento para seguir
confiando no valor de sua fé (atentos a esse final brilhante e imprevisto, um
canto à fragilidade humana e à melancolia). Isto é, cada leitor encontrará um
caminho distinto a seguir, mas nenhum deles será falso nem banal.
Neste livro
cabe tudo, mas há dois assuntos que são centrais e que Rushdie alinhava com
maestria ao longo de suas páginas. O primeiro é um dos temas essenciais do
autor: a luta entre a fé a razão, entre o dogmatismo e a tolerância. O escritor
se atreve a pressagiar a morte dos deuses, a antecipar uma época em que o medo
foi vencido e os templos se converteram em hotéis, museus para exposições,
cassinos ou em shoppings.
O segundo é
um dos temas eternos: o poder da ficção, dos sonhos, da magia. “somos a
criatura que conta histórias a si mesma para entender que espécie de criatura
ela é” – diz numa passagem memorável. “essas histórias se tornam o que sabemos,
o que compreendemos e o que somos, ou talvez devêssemos dizer, o que nos tornamos
ou podemos, talvez, ser”.
Salman
Rushdie demonstra em Dois anos, oito
meses e 28 noites pelo menos três coisas. Primeira: que para ser moderno não
há necessidade de escrever em forma de tuítes, que a modernidade é um estado de
inteligência. Segunda: que o humor é uma das melhores e mais imperecíveis armas
literárias. E a terceira: que como crianças, queremos que nos contem mil e uma
vezes a mesma história. Mas que nos contem sempre assim, com palavras de mago.
* Este texto é a tradução livre de “Salman Sherezade”, publicado aqui, no jornal El País.
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