A prosa de Ana Cristina Cesar
Toda vez que
um leitor encontra a poesia de Ana Cristina Cesar reunida na primorosa edição que,
no mesmo rastro do livro com a obra poética de Paulo Leminski galga espaços em
estantes diversas Brasil afora, é de saltar a busca pela resposta sobre como
seria ter entre nós em atividade uma poeta cujo talento se revela ainda na
criatividade de quando criança e se aperfeiçoa naquele tempo em que para muitos
não é mais que o de experimentação – afinal, mesmo que não haja um tempo para a
poesia, é verdade que a maturidade é, sem dúvidas, quando podem os deuses
soprar o seu melhor ao poeta. A título de curiosidade, sobretudo para aqueles
que não têm a edição de Poética, Ana
C., como gostava de ser chamada, e nome pelo qual podemos identificar como
o de sua persona poética, publicou
pela primeira vez quando tinha só sete anos no jornal Tribuna da imprensa; e amigos íntimos da poeta, como o também poeta
Armando Freitas Filho, lembra reiteradas vezes que muito nova ditava coisas
para que a mãe registrasse.
O passo de
desistência de Ana Cristina Cesar desse universo que possivelmente poderia
ter-lhe sido o mesmo de quando esteve viva (isto é, o do não-reconhecimento nos
meios mais intelectualizados – presença quase-contornada não fosse o fato de
muitos ainda acusarem-na de que esse espaço foi galgado graças a situação
trágica com que a poeta findou a vida) não é, ainda assim, um empecilho para que imaginemos sua vida até a idade mais avançada. A intensidade com que escreveu sua obra demonstra que seria alguém entre os de relevante importância entre os intelectuais brasileiros.
O que custa acreditar é na imagem da poeta enquanto tal. Agora, sempre pareceu que ela tinha uma certeza muito absoluta de que o já-feito poderia sempre
servir de resposta aos detratores, haja vista que a diversidade de leitores de
sua obra e dos lugares alcançados é, ao contrário das acusações, a confirmação pela sua obra e não por um dado curioso de sua biografia de que produziu algo de relevante para a literatura brasileira.
Agora, a Ana
Cristina Cesar nem sempre lhe pareceu que a poesia fosse seu único meio de
expressão, tampouco aquele que lhe daria o sustento – por mais que soubesse
fazer parte junto com outros nomes de sua época e do mesmo movimento literário
que ajudou a dar forma na literatura brasileira. Tanto que investiu numa
carreira acadêmica. Possivelmente influenciada pela figura do pai – jornalista
e sociólogo dos responsáveis pela fundação da editora ecumênica Paz e Terra –, por esse apego à criação literária manifestado desde pequena e pelas forças do destino a partir das decisões que tomou desde muito cedo.
Nesse âmbito
dos estudos parece que demonstrou ser também dotada de uma consciência avant-garde, tanto por essas decisões (por exemplo, na década de 1970, preferiu deixar o curso
clássico no Colégio Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia para estudar
inglês fora do Brasil, na Richmond School for Girls em Londres num programa de
intercâmbio e, pouco tempo depois, em regresso ao Brasil, vai para a curso de Letras
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), quanto pelos nomes que
escolheu estudar, muitos ainda quase desconhecidos no Brasil – como é o
caso de Katherine Mansfield, sobre quem escreveu seu trabalho de conclusão de
um mestrado em estudos da tradução.
Esses anos
acadêmicos foram-lhe os mais rentáveis dada a convivência com outras figuras de
mente tão ou quanto irrequieta como a de Ana Cristina: Cacaso, Heloísa Buarque
de Hollanda, Armando Freitas Filho, são alguns desses nomes. Enquanto escrevia poesia,
fazia faculdade, trabalhava como professora de língua inglesa em escolas e
depois de concluir o curso superior colabora intensamente com jornais mais
tradicionais como o Opinião, Folha de São Paulo e Jornal do Brasil – o que de certa forma
coloca em xeque a tese de que tenha sido uma poeta marginal porque não possuía
uma ligação com os grandes meios dominantes quando o assunto é escrita. Dedica-se
ainda à tradução e, possivelmente, interessada na área, é quando resolve tornar o ofício
em campo de estudo para o mestrado no qual estuda o conto "Bliss", de Mansfield; durante esse período esteve na Universidade de Essex, novamente na Inglaterra.
A fertilidade da e
criação para Ana Cristina Cesar se dá pela aparição de seus livros (dos poucos que publicou em vida). Nesse ínterim publica A teus pés e Luvas de pelica, um de cada gênero que mais praticou nesses anos.
Outra grande parte das
produções dessa época, sobretudo as que diferem da face de poeta, foi revista e apresentada numa edição que, agora reeditada, segue a
mesma linha editorial de Poética; Crítica e tradução reúne ainda trabalhos
do mesmo gênero indicado pelo título escritos uma década antes dessa vivência
mais intensa com os outros meandros da criação. Não é somente um trabalho de
reaproximação da memória da poeta com seu público leitor, cada vez mais amplo;
é uma maneira de melhor compreender sobre seus interesses de leitura e quais
obras ou autores melhor influenciaram numa visão individual da existência e
cujas marcas estão evidenciadas no seu trabalho como poeta.
Por exemplo,
desde ao trabalho de pesquisa sobre o cinema brasileiro em torno da literatura
à aproximação com a chamada literatura maldita e a escrita por mulheres –
citáveis: Sylvia Plath e Emily Dickinson, de quem traduziu poemas, ou mesmo
Katherine Mansfield – dão uma dimensão sobre sua condição de não ajustada aos
chamados grupos dominantes, seja na literatura seja nas artes em geral, o que,
oferece, agora sim, uma possibilidade de melhor compreensão sobre o epíteto de
marginal com que sempre tem sido designada.
No que se
refere ao seu trabalho poético não é difícil assinalar o exercício de recriação
oferecido pela poeta em situações em que reescreve sentenças desses autores
lidos e cujas leituras foram apresentadas noutras circunstâncias que não o do
ambiente poético. No instante em que revela as influências revela também os
procedimentos de sua escrita poética – escrita que se define por essa natureza,
antropofágica, no sentido proposto pelo movimento modernista de 1922. Isto é,
os trabalhos reunidos em Crítica e
tradução são uma fonte rica para se descobrir os possíveis usos e
metabolismos da poeta num exercício cuja compreensão participa da ideia de que o
trabalho escritural não está afastado da contínua relação que o criador mantém
com o lido, o vivido e o imaginado.
Já quando o
leitor volta a atenção para o exercício de tradução, percebe que Ana Cristina
não se assume noutro lugar que não o semelhante ao do seu trabalho – ou seja,
também, tem pelo trabalho de traduzir o de recriar, fornecendo, quase sempre,
novos sentidos para o que traduz. Isso porque tem a notável compreensão de que
os contextos não apenas são pano de fundo sob a escrita e sim elementos
cooperativos e participativos na relação do leitor alheio ao texto original com
o texto traduzido.
Por tudo
isso, essa não uma antologia acessível só aos leitores que queiram visitar
outras faces da múltipla Ana Cristina; é também uma mina através da qual é
possível perscrutar o que não é possível olhar a olho nu quando diante apenas
da leitura livre de sua poesia.
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Crítica e Tradução
Ana Cristina Cesar
Companhia das Letras, 2016
536 p.
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