A definição do amor, de Jorge Reis-Sá
Por Pedro
Fernandes
Jorge
Reis-Sá visita um tema que não é novo na literatura (aliás qual é esse, se,
desde sempre, a literatura é variação dos mesmos tons). O tema em questão é o
da ausência do outro que se ama. Da literatura portuguesa recente é possível
citar de passagem pelo menos três romances que reconstroem, cada um à sua
maneira, sobre: António Lobo Antunes fez reiteradas vezes e com maestria em
obras como Sôbolos rios que vão, José
Luís Peixoto fez em Morreste-me, e
Inês Pedrosa, em Fazes-me falta. Das
três, a última parece ser a que mais se aproxima A definição do amor.
Fazes-me falta é construído como um jogo
entre dois narradores – um ponto de vista masculino e outro feminino – que se
conversam pela ausência, visto que ela está morta, sobre um amor possivelmente
nunca realizado. No romance de Jorge Reis-Sá, o ponto de vista é só o do homem
que, às voltas com a mulher num leito de hospital condenada à morte, reflete
sobre a ausência dela na sua vida e até quando esse amor, à primeira vista
insuperável, é capaz de resistir à provação do acaso. Susana foi/é-lhe o grande
amor, a mãe dos filhos – um menino ainda muito novo e uma possível menina com
doze semanas ainda na barriga. Enquanto em Inês Pedrosa o sublime do amor
reveste-se em sua totalidade porque nunca foi realizado, aqui, em A definição do amor, essa ideia é construída
por outro prisma, que é o do limite de amar e o que outro faria se a condição
fosse contrária a que se apresenta.
Também como
no romance da escritora portuguesa, A
definição... se compõe de breves relatos em tom diarístico; a escrita de
Jorge Reis-Sá, entretanto, reveste-se do mesmo interesse empregado para a
estruturação da narrativa – o de encontrar um tom que ao que parece não terá
ainda se desenvolvido totalmente, se pensarmos em obras do mesmo gênero, como Todos os dias e O dom. Se deste último fica a impressão de que tomou o tema
emprestado da obra de José Saramago e sua alegoria de uma cegueira branca para
transformar num tom fantástico e igualmente alegórico uma cidade onde todos são
tornados em contas de bijuteria, num claro exercício de compreensão sobre a
objetificação do homem, neste romance ora lido, permanece um escritor preso
entre a influência da narrativa do próprio escritor Prêmio Nobel – pela maneira
como constrói parte dos diálogos e do relato – e da narrativa de um António
Lobo Antunes – pelo trabalho de construção fragmentada do narrado, sua
descontinuidade e a mistura de diálogos.
Sobre isso,
é preciso dizer que o escritor é melhor quando não está nem sobre a sombra de
um, muito menos do outro; isto é, quando Jorge demonstra ser Jorge e não outro
Saramago ou outro Lobo Antunes ou um novo escritor pela combinação dos dois.
Esse Jorge é o da narrativa simples, sem subterfúgios estilísticos que não o de
representar o fluxo de uma consciência perturbada pela possibilidade da perda
da figura onde depositou grande parte da sua própria existência; é o Jorge
interessado mais no relato e na reflexão de cunho, por vezes, filosófico,
poético e existencial, as três marcas de que se reveste A definição do amor; é o Jorge, por fim, que não se preocupa com
determinadas obviedades do tom escritural – como quando substitui o riscado do
texto que sinaliza um titubeio do narrador (e outra fraqueza da narrativa, tal
como um escritor que escreve em caixa alta para sinalizar o grito de uma
personagem, por exemplo) pela expressão escritural do próprio titubeio.
A reflexão
sugerida por A definição do amor foge
do sentido objetivo que este título sugere; não no mau sentido, mas porque
encontra outros meandros pelos quais ficam provados a impossibilidade do
sugerido, isto é, se pode refletir eternamente sobre o tema (e grande parte
literatura é toda isso), mas não há esse conceito acabado porque a ideia de
amor se constrói na extensa diversidade com que as experiências da vida, a dois
ou não, são manifestadas. Nesse sentido, o romance parece sugerir (pelo próprio
tom dramática encarnado) que, não é possível saber do amor, se a vida, ela
mesma uma grande incógnita, não nos provocar a testá-lo e num limite em que a
própria existência se manifeste num exílio capaz de fazer romper a estabilidade
entre nós e a quem dizemos amar.
Os
questionamentos de Francisco, se Susana, uma vez fosse ele e não ela a atravessar
o coma, faria o mesmo que ele faz por ela, se ela conseguiria enfrentar toda a
angústia da possível perda com a mesma parcimônia e lentidão da natureza da
recuperação possível, são de uma brutal força que provoca o leitor a também refletir
pelo “e se” fosse algo que se passasse consigo. Neste sentido, estamos ante uma
narrativa de sugestões, cujas decisões cada vez mais dependentes do narrador
que lida com a situação, cobram-lhe, sempre uma tomada de postura ante a vida –
esta condição que parece ter sido dela e não dele, reanimando outra evidência
bastante comum, a de que os homens são sempre criaturas dependentes da mulher
ou expondo-os como figuras que em grande parte são, movidas pelo individualismo
e pela mesquinharia, construção cultural imanente do lugar centro de todas as coisas.
Ante um acaso
que coloca em risco a vida, quando nada tinha para ser da maneira escolhida
pelo acaso e sim da maneira planejada pela capacidade de sonhar do homem, a
obra ainda questiona sobre até quando e onde está ao nosso alcance o controle
sobre nossa existência ou será tudo um produto de um destino, quase sempre
maquiavélico e cruel. É aqui que entra em debate um espírito que cobra, pela
incredulidade ante o divino, os valores que o definem, ao mesmo tempo que uma
atitude sublinhada pelos desígnios da razão humana. O embate entre a fé em algo
que não está ao alcance do próprio homem – sem quaisquer efeitos místicos mas
de cunho filosófico – e a descrença é uma das direções que colocam em relevo o
melhor da narrativa de Reis-Sá.
A definição do amor é, assim, um romance
mais sobre a perda e os seus reflexos na vida dos que perdem que sobre o amor,
que no fim, é mero fio alinhavando a trama; este aqui se revela como relação, o vínculo que une uma a outra
pessoa. Poderia ser uma declaração de amor de alguém transtornado, ou melhor,
assombrado pelo fantasma da perda, mas quando questiona sobre os limites do
amor, torna-se uma reflexão sobre até qual ponto vai a fé de alguém na
possibilidade de existência do outro para si. Isto é, Jorge Reis-Sá desloca o
tema daquela condição do sublime e do platônico para compreendê-lo como matéria
pulsante entre existências, de modo que chega a subverter aquilo que possa haver
de sagrado quando coloca a angústia ante a impassibilidade do fim ou do retorno
à normalidade com o fluxo dos jogos de futebol e o humor da personagem entre a
alegria da vitória e a raiva da derrota.
Outra linha que sustenta esse tema na obra é não o amor carnal assumido entre homem e mulher. Mas, a construção do amor do indivíduo por si, pelo seu semelhante e por aqueles que direta ou indiretamente dependem dele. Na medida em que se esvai a vida de Susana, o amor da vida de Francisco, aparecem outras maneiras de amar (ou possivelmente aquela mais coerente porque dá ao sujeito outro sentido para existir além da perda): o amor que precisa ser levantado palmo a palmo pela filha que nasce enquanto morre a mãe; o amor pelo filho mais velho; e pelo cão que sempre foi o xodó de Susana. Isto é, mais que uma definição do amor, o coerente seria pensar então nas formas diversas de como este se constitui.
Sobram, entre
um mês e o outro que são capítulos do romance, histórias soltas de outras personagens
cuja única ligação que mantém com a trama principal parece a unidade temática que
enforma a obra. E se cada uma pode ser interpretada como uma condição para uma
definição do amor é novamente o tom descrente e trágico a dominar as situações:
o homem que abandona o sacerdócio por uma mulher cujo o interesse por ele é
desfeito; o padre que se entrega aos prazeres da pedofilia numa redoma de sexo
com vários garotos; são alguns dos exemplos. Além das formas de amar, a única história – e esta cruza as
reflexões diarísticas do narrador – que parece revelar, por assim dizer uma
expressão positiva do amor é do casal de velhinhos que guarda segredo sobre a
relação porque são amantes, mesmo com toda vizinha sabedora dos dois. Estaria o
amor para se manter condicionado ao proibido ou a impossibilidade da plena realização? Ou seria o amor em sua inteireza apenas aquele que não tocado pelo desejo da posse? É
visitar essa obra de Jorge Reis-Sá para buscar não uma resposta mas uma reflexão.
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