Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch
Pouco depois
do acidente nuclear de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch sente-se preparada
para escrever um novo livro acerca desta catástrofe. “Dei-me conta de que meus
pais, eu e toda a gente ao meu redor habitávamos num mundo diferente”. Os pais
da escritora viviam na região bielorrussa de Mariz, nas margens do rio Prípiat,
a cem quilômetros ao noroeste de Tchernóbil. Multiplicam-se os casos de câncer
infantil, grande parte estão ainda enterrados em povoados inteiros evacuados,
tudo ainda com suas casas e terras de plantio. É então que aparecem medos até
então desconhecidos: sentar-se na grama ou comer uma maçã, ações das mais
sensíveis e cotidianas, colocam um dilema insólito: “Pode haver algo mais
espantoso? Inaugurou-se uma nova história ecológica da humanidade. Ante isto, o
aspecto nacional recua: já não importa se sou bielorrussa ou russa, mas que sou
representante de uma espécie biológica que pode ser extinta como se extinguiram
os dinossauros”.
Quando se escreve sobre o acidente de Tchernóbil, seja em artigos para os jornais ou acadêmicos, seja ensaios, ainda recorre às coordenadas espaço-temporais: “O 26 de abril de 1986, o reator n.4 modelo RMBK-1000, da plataforma nuclear V. I. Lenin de Tchernóbil explodiu a 01:23:58 a.m., liberando na atmosfera...” Para captar a magnitude de um acontecimento que ultrapassa a imaginação e o entendimento humanos, busca-se refúgio no dado, no frio elemento empírico desprovido de emoção. Quando se produz um acidente de grandes proporções, os indivíduos ficam abismados pelo feito traumático e entra em jogo sua capacidade para suportar ou integrar as ideias e emoções implicadas naquela experiência; Aleksiévitch centra sua atenção nesta parte e aflora da consciência não o dado mas a memória.
Uma semana depois do acidente, enquanto o Kremlin se esforçava em minimizar os danos diante da opinião pública e manejava a situação com um estilo próprio da velha escola que contradizia os princípios da glasnost (transparência da informação) recém-anunciada por Gorbatchov, La Sampa publicava um artigo de Primo Levi. Para o italiano, químico de formação, nesses dias de caos informativo era importante sublinhar que a radiação não entendia de bloqueios, guerra fria, ideologia, idade ou classe social: “A poluição nuclear ri-se de nossas fronteiras, viaja pelo ar e pela água, infiltra-se na cadeia de alimentação; o iodo radioativo pode cair do céu em forma de chuva a milhares de quilômetros de sua origem, alojar-se nas tireoides e atacar nossa saúde. A radiação que emitem os produtos resultantes da fissão pode alterar o legado genético de homens, animais e plantas de todo o planeta, e deixar danos às futuras gerações. Um acidente nuclear se propaga como uma praga; não é um assunto interno que afere exclusivamente a um único país”.
Na “Ilha Tchernóbil”, a nova entidade criada da base da nuvem radioativa às portas da Europa, segue vivendo num estado de exceção permanente. De limites confusos e contraditórios, é um ângulo cego do saber e constitui o paradigma do medo ao desconhecido. Na zona zero parece haver parado o tempo, enquanto a linguagem abstrata dos números flutua de acordo com a fonte consultada. Para o Organismo Internacional de Energia Atômica, o principal problema não é contaminação, mas o trauma devido as mudanças forçadas, a perda de uma forma de vida da noite para o dia. Entretanto, os cientistas se maravilham com a regeneração e a diversidade biológica que detectam na zona de exclusão: o maior impacto sobre seu ecossistema não foi o acidente, mas o fim da atividade humana, que tornou o território num tipo pré-histórico. Seu ecossistema é um laboratório na escala real sine die. Por ele passeiam cavalos de Przewalski, lobos brancos e linces. Por outro lado, a população humana afetada, leiga em Física, enfrenta-se por sua vez com um inimigo invisível chamado radiação ionizante e a linguagem sem comoção é indiferente da ciência.
Não podemos esperar que um cientista cite um poema, dizia o escritor russo Varlam Chalámov porque um e outro pertencem a mundos distintos. Muitos compreendem que na guerra uma bala pode acabar ou ferir uma vida, mas não que milhões de partículas subatômicas ou fótons de alta energia, imperceptíveis aos sentidos, penetrem silenciosamente no corpo ou se acomode no organismo para matar “aos poucos”, transferindo a ferida genética aos filhos e aos filhos dos filhos. “Quantas vezes a arte ensaiou o Apocalipse, experimentou diversas versões tecnológicas do fim do mundo, mas agora sabemos com certeza que vida é mais fantástica ainda”, responde Svetlana Aleksiévitch em Vozes de Tchernóbil numa entrevista simulada a si mesma que lhe permite falar como testemunha de uma função, não como observadora imparcial.
Depois da autoentrevista, a voz da escritora desaparece. Só é perceptível nos títulos de cada monólogo, apontando uma ideia central alojada entre eles, em breves apresentações a seus entrevistados ou em escassas interações entre eles e no desenho simétrico da arquitetura do livro: Vozes de Tchernóbil se organiza como os movimentos musicais de um oratório. A autora tem declarado que este é seu livro mais importante e, também, o mais difícil. Difícil porque a natureza do tema, seu caráter desconhecido requereria reconsiderar quais ferramentas literárias eram mais oportunas para a construção da narrativa.
Havia outras vozes que, como a de Aleksiévitch, compartilhavam do ponto de vista de que, ante o novo cenário, a literatura, tal como se conhecia até então, havia emudecido. O cientista, escritor e diplomático ucraniano Yuri Sherbak escreveu, em 1989, que no futuro a “épica de Tchernóbil” revelaria “toda sua tragédia, toda sua polifonia”, e sublinhou que a criação dessa épica necessitaria de “novas aproximações, novas formas literárias, diferentes”. Aliés Adamóvitch, por sua vez, anunciava que o conceito de “supraliteratura” [sverjliteratura], uma literatura destinada a mover as formas tradicionais do pensamento.
No discurso de aceitação do Prêmio Nobel, Aleksiévitch fez alusões à conhecida sentença de Adorno: “Escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro”. O filósofo desafia a literatura e a cultura que haviam se revelado incapazes de impedir os campos de concentração. “Um dos meus professores, Aliés Adamóvitch, um nome que quero citar hoje com gratidão, também considerava que compor prosa sobre os pesadelos do século XX sacrilégio – destacou Aleksiévitch em Estocolmo. Aqui, não se tem direito de inventar. Deve-se mostrar a verdade como ela é. Exige-se de uma “supraliteratura”, uma literatura que esteja além da literatura. É a testemunha que deve falar”.
Esta tensão entre literatura como ato criativo e testemunho numa situação excepcional não é desconhecida para os leitores do ciclo chalamoviano Contos de Kolimá: o conto de 1956 que abre a obra é um manifesto de sua prosa fatográfica: alguns presos abrem, trabalhosamente, na neve virgem um caminho e cada um se serve das pisadas de quem está à sua frente para aliviar o esforço, metáfora do caminho que deverá ser refeito pelo leitor. A narrativa de Varlam Chalámov sobre a experiência do gulag é um exemplo relevante de obra que alarga o testemunho até convertê-lo numa fonte de conhecimento, surgida da batalha não só literária, mas linguística e epistemológica.
Em Tchernóbil encontramo-nos ante um cenário ampliado do “mundo isolado” de Kolimá: “Vivemos num gulag. O gulag de Tchernóbil”, diz uma professora rural em Vozes de Tchernóbil. Aleksiévitch qualifica Tchernóbil de “catástrofe do tempo”, porque “as radiações disseminadas por nossa Terra viverão cinquenta, cem, duzentos mil anos. E mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, somos capazes de entender?” A escala do acidente, sua pós-história, só pode se comparar com a escala temporal da astronomia. Aleksiévitch escuta relatos de várias vozes, “pessoas que comovidas diziam novos textos”, com o ânimo de fazer emergir uma nova filosofia de síntese, abrir uma rota através da neve virgem até uma “nova consciência”.
Ligações a esta post:
>>> Por que Svletana Aleksiévitch?
Quando se escreve sobre o acidente de Tchernóbil, seja em artigos para os jornais ou acadêmicos, seja ensaios, ainda recorre às coordenadas espaço-temporais: “O 26 de abril de 1986, o reator n.4 modelo RMBK-1000, da plataforma nuclear V. I. Lenin de Tchernóbil explodiu a 01:23:58 a.m., liberando na atmosfera...” Para captar a magnitude de um acontecimento que ultrapassa a imaginação e o entendimento humanos, busca-se refúgio no dado, no frio elemento empírico desprovido de emoção. Quando se produz um acidente de grandes proporções, os indivíduos ficam abismados pelo feito traumático e entra em jogo sua capacidade para suportar ou integrar as ideias e emoções implicadas naquela experiência; Aleksiévitch centra sua atenção nesta parte e aflora da consciência não o dado mas a memória.
Uma semana depois do acidente, enquanto o Kremlin se esforçava em minimizar os danos diante da opinião pública e manejava a situação com um estilo próprio da velha escola que contradizia os princípios da glasnost (transparência da informação) recém-anunciada por Gorbatchov, La Sampa publicava um artigo de Primo Levi. Para o italiano, químico de formação, nesses dias de caos informativo era importante sublinhar que a radiação não entendia de bloqueios, guerra fria, ideologia, idade ou classe social: “A poluição nuclear ri-se de nossas fronteiras, viaja pelo ar e pela água, infiltra-se na cadeia de alimentação; o iodo radioativo pode cair do céu em forma de chuva a milhares de quilômetros de sua origem, alojar-se nas tireoides e atacar nossa saúde. A radiação que emitem os produtos resultantes da fissão pode alterar o legado genético de homens, animais e plantas de todo o planeta, e deixar danos às futuras gerações. Um acidente nuclear se propaga como uma praga; não é um assunto interno que afere exclusivamente a um único país”.
Na “Ilha Tchernóbil”, a nova entidade criada da base da nuvem radioativa às portas da Europa, segue vivendo num estado de exceção permanente. De limites confusos e contraditórios, é um ângulo cego do saber e constitui o paradigma do medo ao desconhecido. Na zona zero parece haver parado o tempo, enquanto a linguagem abstrata dos números flutua de acordo com a fonte consultada. Para o Organismo Internacional de Energia Atômica, o principal problema não é contaminação, mas o trauma devido as mudanças forçadas, a perda de uma forma de vida da noite para o dia. Entretanto, os cientistas se maravilham com a regeneração e a diversidade biológica que detectam na zona de exclusão: o maior impacto sobre seu ecossistema não foi o acidente, mas o fim da atividade humana, que tornou o território num tipo pré-histórico. Seu ecossistema é um laboratório na escala real sine die. Por ele passeiam cavalos de Przewalski, lobos brancos e linces. Por outro lado, a população humana afetada, leiga em Física, enfrenta-se por sua vez com um inimigo invisível chamado radiação ionizante e a linguagem sem comoção é indiferente da ciência.
Não podemos esperar que um cientista cite um poema, dizia o escritor russo Varlam Chalámov porque um e outro pertencem a mundos distintos. Muitos compreendem que na guerra uma bala pode acabar ou ferir uma vida, mas não que milhões de partículas subatômicas ou fótons de alta energia, imperceptíveis aos sentidos, penetrem silenciosamente no corpo ou se acomode no organismo para matar “aos poucos”, transferindo a ferida genética aos filhos e aos filhos dos filhos. “Quantas vezes a arte ensaiou o Apocalipse, experimentou diversas versões tecnológicas do fim do mundo, mas agora sabemos com certeza que vida é mais fantástica ainda”, responde Svetlana Aleksiévitch em Vozes de Tchernóbil numa entrevista simulada a si mesma que lhe permite falar como testemunha de uma função, não como observadora imparcial.
Depois da autoentrevista, a voz da escritora desaparece. Só é perceptível nos títulos de cada monólogo, apontando uma ideia central alojada entre eles, em breves apresentações a seus entrevistados ou em escassas interações entre eles e no desenho simétrico da arquitetura do livro: Vozes de Tchernóbil se organiza como os movimentos musicais de um oratório. A autora tem declarado que este é seu livro mais importante e, também, o mais difícil. Difícil porque a natureza do tema, seu caráter desconhecido requereria reconsiderar quais ferramentas literárias eram mais oportunas para a construção da narrativa.
Havia outras vozes que, como a de Aleksiévitch, compartilhavam do ponto de vista de que, ante o novo cenário, a literatura, tal como se conhecia até então, havia emudecido. O cientista, escritor e diplomático ucraniano Yuri Sherbak escreveu, em 1989, que no futuro a “épica de Tchernóbil” revelaria “toda sua tragédia, toda sua polifonia”, e sublinhou que a criação dessa épica necessitaria de “novas aproximações, novas formas literárias, diferentes”. Aliés Adamóvitch, por sua vez, anunciava que o conceito de “supraliteratura” [sverjliteratura], uma literatura destinada a mover as formas tradicionais do pensamento.
No discurso de aceitação do Prêmio Nobel, Aleksiévitch fez alusões à conhecida sentença de Adorno: “Escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro”. O filósofo desafia a literatura e a cultura que haviam se revelado incapazes de impedir os campos de concentração. “Um dos meus professores, Aliés Adamóvitch, um nome que quero citar hoje com gratidão, também considerava que compor prosa sobre os pesadelos do século XX sacrilégio – destacou Aleksiévitch em Estocolmo. Aqui, não se tem direito de inventar. Deve-se mostrar a verdade como ela é. Exige-se de uma “supraliteratura”, uma literatura que esteja além da literatura. É a testemunha que deve falar”.
Esta tensão entre literatura como ato criativo e testemunho numa situação excepcional não é desconhecida para os leitores do ciclo chalamoviano Contos de Kolimá: o conto de 1956 que abre a obra é um manifesto de sua prosa fatográfica: alguns presos abrem, trabalhosamente, na neve virgem um caminho e cada um se serve das pisadas de quem está à sua frente para aliviar o esforço, metáfora do caminho que deverá ser refeito pelo leitor. A narrativa de Varlam Chalámov sobre a experiência do gulag é um exemplo relevante de obra que alarga o testemunho até convertê-lo numa fonte de conhecimento, surgida da batalha não só literária, mas linguística e epistemológica.
Em Tchernóbil encontramo-nos ante um cenário ampliado do “mundo isolado” de Kolimá: “Vivemos num gulag. O gulag de Tchernóbil”, diz uma professora rural em Vozes de Tchernóbil. Aleksiévitch qualifica Tchernóbil de “catástrofe do tempo”, porque “as radiações disseminadas por nossa Terra viverão cinquenta, cem, duzentos mil anos. E mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, somos capazes de entender?” A escala do acidente, sua pós-história, só pode se comparar com a escala temporal da astronomia. Aleksiévitch escuta relatos de várias vozes, “pessoas que comovidas diziam novos textos”, com o ânimo de fazer emergir uma nova filosofia de síntese, abrir uma rota através da neve virgem até uma “nova consciência”.
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>>> Por que Svletana Aleksiévitch?
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