Sobre Doutor Jivago, de Boris Pasternak
Por Christopher D Michael
Doutor Jivago, grande livro ou romance
ruim? Tantos anos depois de sua publicação, a pergunta não tem uma resposta mas
construí-la nos permite entrar num mundo encantando e titânico onde a herança
épica do romance compete com sua dissolução vanguardista, onde se refaz a antiga
querela da prosa contra a poesia e presenciamos o choque entre a história e a
natureza.
A matéria em que ocorrem estes antagonismos essenciais é a Revolução
Russa e a personagem principal é Pasternak, quem atravessou a pior das épocas
em que poderia viver um escritor para, de maneira inverossímil, morrer em casa,
próximo de sua mulher e de sua amante, atendido pelos melhores profissionais da
medicina soviética.
Sua morte aconteceu poucos anos depois da publicação, pela
editora Feltrinelli, na Itália, do seu único romance, obra que também lhe valeu
o Prêmio Nobel de Literatura em 1958, honra recusada depois da ameaça de
desterro proferida pelo regime comunista. Pasternak, diga-se, já havia se
livrado de morrer assassinado ou à míngua em gulag, como morreu Ossip
Mandelstam, o do suicídio que pôs fim ao retorno desgraçado de Marina
Tsvietáeva, ou de viver no mais cruel dos exílios, como Anna Akhmátova,
humilhada e ofendida.
Possuidor de
uma misteriosa liberdade nascida, conta a lenda, na admiração de Stálin por sua
poesia, Pasternak é unanimemente reconhecido pelos russos como um dos seus mais
importantes poetas. “Não toquem nesse anjo”, haveria dito fantasticamente o
tirano aos seus capangas quando lhe apresentaram, apressados, o perfil de um poeta
que quase sempre se negou a entoar loas ao comunismo soviético, abstendo-se de
publicar sua poesia desde o começo do terrífico regime até a Segunda Guerra
Mundial.
Pasternak
amava a natureza – parafraseio Akhmátova – tanto como a poesia o amava e compará-lo
com Paul Valéry ou T. S. Eliot, segundo seus conterrâneos, é desagradá-lo:
Pasternak pertenceu a uma espécie superior, aquela formada por Shelley,
Baudelaire ou Leopardi. O infortunado príncipe Mirsky o comparou com Rimbaud.
Deve ser certo: quando Pasternak traduzia Goethe e Shakespeare – através do
qual e tomando-se grandes liberdades falava aos russos sobre o poder absoluto –
parecia mover-se com seus pares. Para quem leu obras suas do gênero – Minha irmã, Vida (1922) ou O segundo
nascimento (1932) terá encontrado um poderosíssimo poeta lírico, mas sem
poder atravessar as barreiras impostas pelo russo, o leitor comum ficará um
tanto insatisfeito, incapaz de saborear o paraíso que a crítica sempre lhe
prometeu.
O assunto se
complica porque estamos ante um grande poeta que escreveu um dos romances de
maior êxito do século XX, provocando uma reviravolta daquelas que são pouco
aceitáveis para o conjunto mais ou menos rígido do cânone literário. “O
Pasternak não era tão grande poeta ou seu romance é muito ruim ou se salva por
pertencer a um grupo inferior de romances, os romances líricos”, disse em coro
os amigos mais íntimos. Ou como pode ter dito Edmund Wilson, o grande
especialista em Doutor Jivago,
Pasternak foi a um só tempo clássico e comercial. Não só partilhou o Olimpo
russo com Pushkin, cumpriu seu sonho de quando jovem de escrever pelo menos um
romance como os de Balzac, segundo confessava a Tsvietáeva numa de suas cartas.
Doutor Jivago é um afresco da história
que vai da Revolução de 1905, daquelas jornadas que agitaram o czar Nicolau e
emocionaram jovens como Pasternak, até 1943, quando apareceu no horizonte a
possibilidade de derrotar os invasores alemães. Se a Revolução Russa e seu
desenlace é a hipóstase da história universal do século XX, o tema perfeito se
alia à natureza melodramática do romance, a história de quatro cavalheiros
rondando a bela e esquiva Lara. Seduzida e desonrada por Komarovski, um empresário
e advogado sem escrúpulos, Lara escapa dele para casar-se com um idealista de
1905, Pavel Pavlovitch que na Revolução de 1917 toma o nome de guerra de
Strelnikov para converter-se num bolchevique selvagem. Lara, enfermeira durante
a Grande Guerra, se encontra com o médico e poeta Iúri Jivago, quem já a
conhecia e admirava, por seu destino previsivelmente trágico, desde os tempos
da Belle Époque em Moscou. Tempo
depois, os protagonistas realizam seu amor devido uma grandiosa coincidência
que Vladimir Nabokov (o grande desgostoso com Doutor Jivago) lhe pareceu prova da vulgaridade do romancista: num
rincão dos Urais, Jivago, refugiado dos rigores bolcheviques com sua família
(mulher, filho e sogro) se encontra com Lara (já mãe de uma filha) na
biblioteca do povoado. Tornam-se amantes e compartilham uma morada até que o
Exército Vermelho recruta Jivago pela necessidade de pessoal médico no front.
A ação passa
aos horrores da Guerra Civil, a em
que Jivago, um simpatizante cético da Revolução Russa, acompanha honradamente o
Exército Vermelho em combate contra as tropas brancas de Kolchak até que possa
retornar à mesma aldeia nos Urais. Convenientemente, sua família foi obrigada a
fugir para o exílio em Paris, de maneira que Jivago e Lara podem amar-se,
rodeados pela neve, lobos e privações, no antigo domínio senhorial de Varikino.
Nesses dias, Jivago escreve o ciclo de poemas que formam a última parte do
romance. Reaparece então o velho sedutor (e personagem magnifica), Komarovski,
oportunista à serviço dos bolcheviques e leva embora Lara, com a anuência cheia
de desculpas do médico, pois Strelnikov caiu em desgraça e ela, como sua
esposa, está em perigo. O próprio comissário bolchevique se apresenta no
refúgio de Jivago para explicar-se com e ele depois de compartilhar o pão e o
sal com seu rival, se mata num esboço, se nota, excessivamente dostoiévskiano.
O médico regressa só e moralmente arruinado a Moscou e morre de um infarto nos
anos vinte. O romance nos é apresentado como a lembrança coletiva que os amigos
do médico e poeta lhe brindam depois de conhecer sua poesia publicada postumamente.
Essa decisão original de Pasternak, a de fechar o romance com esses vinte e
cinco poemas atribuídos ao seu alterego, foi de enorme eficácia: o ciclo de
Jivago conclui de maneira memorável a obra poética de Pasternak, além de dar a Doutor Jivago um antídoto contra a
corrosão do tempo. Melodramática, o romance se preserva graças à poesia.
cena do filme Doutor Jivago |
Doutor Jivago tinha assim tudo para agradar
ao grande público; e agradou. Tanto, que poucos anos depois, em 1965, o diretor
David Lean decidiu filmá-lo, oferecendo uma versão lírica bastante fiel ao
espírito de Pasternak. Não só era um dramalhão tremendo sobre o amor, a guerra
e a revolução mas um romance tipicamente russo recheado de digressões
filosóficas e reflexões metafísicas. Escassamente dialógico, Pasternak inventa
no alterego em Jivago e por sua vez proporciona a este um mentor, o filósofo
Nikolai Nikolaievitch Vedeniapin, quem interpretará a Revolução Russa ao longo
do romance, à luz da extrema cristianização do mundo, próprio da filosofia
russa de início do século, tanto na sua versão “laica”, a de Tolstói, com a de
Soloviev, mais propriamente ortodoxa. O rumor de que Pasternak se converteu ao
cristianismo em 1942 nunca ficou provado.
Doutor Jivago foi recebido friamente no
Ocidente. O crítico Wilson, um velho apaixonado pela Revolução Russa que se
negava a ver totalmente apagada a fogueira, viu no livro de Pasternak a brasa
que manteria vivo o calor do século. Ele se lançou sobre a edição de
Feltrinelli – realizada graças à fraude piedosa de um comunista italiano que
prometeu a Pasternak que só o publicaria depois da versão em russo – e atestou
com o original para decretar que se tratava de um dos grandes acontecimentos da
história moral da humanidade. Lacônico por natureza, o inglês V. S. Pritchett
não foi tão longe mas comparou Pasternak com Tchekhov, confundindo um pouco o
enternecedor doutor Jivago com seu complexo criador, o poeta com cara de
cavalo. Mas a maioria dos críticos ocidentais compararam Doutor Jivago com Guerra e
Paz, o qual constituía uma emotiva mudança de correspondências: o próprio
Boris Leonidovich havia interessado trazer em 1910, junto com seu pai, o pintor
que lhe faria imaginariamente um retrato natural às honras fúnebres de Tolstói
na estação de Astapovo. Pasternak, em seu Ensaio
de autobiografia, disse haver se encontrado, então, não com um morto mas
com o apagado vulcão Elbrouz, ao que Prometeu havia estado preso.
Apesar do
Prêmio Nobel e da solidariedade que produziu um Pasternak expulso da União de
Escritores Soviéticos, a intelligentsia
russa, precisamente aquela que era hostil, dentro e fora da URSS, ao comunismo,
se manifestou contrariada pelo livro. Mas, além da duplicidade atribuída a
Pasternak, bailando na corda bamba sem cair desde a época stalinista, Doutor Jivago desgostou aos poucos
leitores russos de um romance que não se publicaria dentro da URSS até 1989. O
ditame da voz mais autorizada, Anna Akhmátova, unida a Pasternak por uma
relação fraterna como poucas (com o que isso implica de amor e de quase ódio)
foi duríssimo. Akhmátova disse à sua secretária Irina Chukovskaya que o romance
estava cheio de tantas páginas indignas de um escritor profissional que
acreditava que muitas delas haviam sido escritas pela jornalista Olga
Ivinskaya, a amante oficial de Pasternak, a qual Akhmátova, partidária da esposa
legítima, depreciava. Outro amigo de Pasternak, Aleksandr Gladkov, o
desqualificou como um falso livro de memórias. Fora da URSS, Igor Stravkinski
pediu a Isaiah Berlin que lesse e o músico, na tentativa, acabou dormindo durante
o recesso de um ensaio para acordar e dizer que era, como toda literatura de
segundo grau, um pesadelo. Wilson mesmo acabou por recuar sua posição e durante
esse período de reclusa que foi o mesmo da sua relação com Nabokov tomou
distância de seu original entusiasmo ao ponto de excluir sua resenha na
antologia Janela para a Rússia,
publicada em 1972.
Doutor
Jivago não agradou aos trotskistas, nem aos judeus, nem, tampouco, aos
escritores soviéticos, obrigados a condená-lo. Isaac Deutscher, quem filtrava as
ideias trotskistas entre a esquerda anglo-saxã, condenou o romance pelas mesmas
razões estilísticas que os demais mas lhe escandalizou uma das virtudes
políticas da obra: a desmistificação do período leninista da Revolução Russa
quando o generalíssimo Trótski fazia a guerra civil num aterrorizante trem
blindado igual ao usado pelo fanático marido de Lara. Ben-Guirión, nessa época
então primeiro-ministro de Israel pela segunda vez, colocou a obra de Pasternak
como exemplo de como um judeu poderia vitimar seu povo. O judeu Pasternak, por
sua vez, era antissionista como tantos socialistas de sua geração e embora
tenha sido, brevemente e durante a Segunda Guerra Mundial, um dos “judeus
oficiais” utilizados pela propaganda anti-hitleriana da URSS, disse através de
Jivago, com escassa delicadeza, que o melhor que podia dar aos judeus era
diluir-se na pátria russa.
Não poucos
intelectuais russos ou soviéticos, vermelhos ou brancos, bolcheviques ou não,
trotskistas ou stalinistas, alienados ou em processo de desalienação, haviam
aprovado em essência, e por motivos contraditórios, as declarações que contra Doutor Jivago reinaram durante os anos
sessenta e setenta pela boca de Nabokov. Numa entrevista, o autor de Lolita, russo branco (liberal e
democrata constitucionalista), chegou a dizer:
“Qualquer
russo inteligente veria imediatamente que o livro é pró-bolchevique e
historicamente falso, quanto mais não seja por ignorar a Revolução Liberal da
Primavera de 1917, ao mesmo tempo que põe o santo doutor a aceitar com alegria
o ‘coup d’etat’ bolchevique sete meses mais tarde… tudo isto segue a linha do
partido. Deixando de lado a política, considero o livro uma coisa triste, mal
feita, trivial e melodramática, com situações de catálogo, advogados
voluptuosos, raparigas incríveis e coincidências mais do que estafadas. Aplaudi
se desse o Prêmio Nobel por sua poesia. Mas em Doutor Jivago a prosa não alcança o nível da poesia. Talvez aqui e
ali, numa paisagem ou numa figura, possa se distinguir ecos apagados de sua voz
de poeta, mas essas fioriture
ocasionais são insuficientes para redimir seu romance da vulgaridade
provinciana típica da literatura soviética dos últimos cinquenta anos.
Precisamente esse vínculo com a tradição soviética foi o que fez com o que
livro tivesse aceitação entre nossos leitores progressistas. Compadeci-me
profundamente com Pasternak e seu compromisso com o estado; mas nem as
vulgaridades do estilo de Jivago nem
uma filosofia que buscava refúgio num ramo frágil e até agradável do
cristianismo puderam jamais transformar essa compaixão em entusiasmo de um
colega escritor. [...] Quando o romance apareceu nos EEUU, os idealistas de
esquerda se satisfizeram em descobrir nele a prova de que depois de tudo podia
se escrever um ‘grande livro’ sob o regime soviético. Para eles foi um triunfo
do leninismo. Consolava-os o fato de que, quaisquer que fossem as
circunstâncias, o médico se mantinha ao lado dos angelicais bolcheviques e que
nada no livro tinha sequer um remoto fio do desprezo indomável do verdadeiro exilado
pelo regime bestial engendrado por Lênin.”
Mesmo como
leitura política do romance, as declarações de Nabokov não são de um todo
justas. Não significaria honrar aos que não se equivocaram mas é Pasternak quem
tem muito a dizer às gerações sucessivamente deslumbradas pelo bolchevismo.
Além do que, Pasternak se manteve contra vento e maré, do lado soviético; Doutor Jivago é a maior desqualificação
que se escrevera na URSS contra o comunismo, mas além disso seus crimes eram
atribuídos a um ambiente apocalíptico desconhecido em parte pelos desalmados
bolcheviques e a ideologia europeia que diziam aplicar que por uma incontrolada
explosão mística do espírito russo. Condenou o maior crime do stalinismo, não
as ações de Moscou nem a selvagem repressão coletiva que se seguiu, mas a
coletivização da terra empreendida em 1927 e ante o que Trótski e tantos outros
opositores de esquerda, por exemplo, se mostraram convencidos. Pasternak, além
disso, considerou o marxismo como a menos científica das crenças que o povo
russo havia adotado, sacrilégio que nenhum escritor soviético havia assinado. E
paradoxalmente, que tenha contemplado a publicação de Doutor Jivago, entre
1956-1957 fala que houve na URSS, durante o Degelo, forças liberais que
fracassaram, entre outras coisas, devido o efeito indesejado e contraproducente
causado pela publicação do livro no exterior e pelo presente envenenado do Prêmio
Nobel.
Em defesa de
Doutor Jivago vale citar Nicola
Chiaromonte, quem desenvolveu os elogios wilsonianos e os estampou em O paradoxo da história (1970). Segundo o
crítico e publicitário italiano, Doutor
Jivago é uma elegia panteísta e astrobiológica: diferente de Tolstói – um
gigante homérico de sua altura – acreditava que Pasternak na guerra e na revolução
são explosões de uma natureza cujo funcionamento só os homens, iluminados por
uma religião natural que se confunde com o cristianismo, estão em condições de
espreitar. Os ostensíveis defeitos do livro, seus excessos e simplificações,
deviam-se menos à imperícia de Pasternak que o predomínio de uma razão poética
que domina a prosa e a coloca a seu serviço, recordando, involuntariamente, que
a orgulhosa obra, filha cosmopolita do século XIX que se entregou secretamente
à vanguarda e ao modernismo, deve honrar a poesia, sua irmã maior. Esta
interpretação lírico-épica de Doutor
Jivago pode explicar, além disso, todo o sucesso do romance russo, pois com
a mesma ideia do melodramatismo e afã profético se criticou Dostoiévski
Tolstói, os mestres cuja lição só Pasternak no século XX havia entendido. Se
Lara é a Rússia, bem, tudo é possível.
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