Rosa dos ventos, de Manuel da Fonseca (Parte I)

Por Pedro Belo Clara



Foi já no distante ano de 1940 que a obra agora apresentada conheceu a sua primeira edição. E tudo graças aos esforços empreendidos por amigos íntimos do autor, dos quais se destacavam os proeminentes Alves Redol e Mário Dionísio, que em tal trabalho viram qualidade merecedora de publicação.

Dentro do género, somente mais um título seria editado: Planície, em 1942. Curiosamente, seriam estes os primeiros livros de Manuel da Fonseca, que rapidamente se virou para o exercício da prosa (contos e romances, essencialmente). O próprio, aliás, por diversas ocasiões se julgara divorciado da prática do género, mas essa “demissão do poeta”, como referia habitualmente, tardou em acontecer. Talvez por isso o livro que reúne a sua obra poética tenha merecido diversas alterações ao longo dos anos em que o autor era ainda vivo. A versão que aqui apresentamos é, portanto, aquela que considerou “definitiva”, naturalmente distante em certos aspectos daqueles primeiros ensaios levados a cabo nos anos quarenta. A editora Caminho, que actualmente a edita, recebeu os direitos já a obra contava com sete edições, em 1984, sendo a mais recente, segundo nos foi possível saber, a nona, datada de 2011 – contando ainda com um interessantíssimo prefácio assinado por Dionísio, em 1969.

Manuel da Fonseca é um autor que em anteriores ocasiões, e por mais do que uma vez, mereceu a atenção dos nossos debates. É, por isso, de todo justo que se foque a luz do projetor sobre o único género por ele praticado que tardou em receber uma oportunidade de discussão – o poético, naturalmente. Ainda que, como veremos muito em breve, não se descortinem diferenças significativas em relação ao conteúdo que coloriu a criação de ambas as práticas.

Sendo um autor neo-realista profundamente enraizado no seu Alentejo natal, é óbvio o descortinar da sua influência maior e do pendor habitual da temática proposta. E estando a base lançada, parte para a explícita denúncia, a partir de acurados retratos, dos maiores problemas sociais, económicos e políticos de então, bem como as suas lamentáveis consequências. O contraste aguerrido entre as classes da escala social é claramente um dos aspectos mais recorrentes e impressionantes, exposto no mesmo modo fluido e simples que é apanágio do discurso de Fonseca – resultando daí um brilho bastante peculiar, diga-se a bem da verdade.

É claro que, à semelhança de muitos outros casos idênticos, o particular embala uma oculta metáfora que caracteriza o geral. Assim sendo, facilmente somos, como leitores atentos, extrapolados da realidade apresentada para a verdade factual de um país pobre, absorto e amordaçado. Ainda que indirectamente, os versos finais de “Os olhos do poeta” ilustram bem o negrume de tal época, assim como o luminoso escape, porque munido de esperança, que a poesia apresentava: «escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo».

No entanto, e porque se encontra divido por seis capítulos, o primeiro contacto com a obra dá-se a partir do embrenhamento nas “Setes canções da vida”, que abrem o volume. Não será certamente o exemplo mais claro da aplicação das matrizes antes referidas, revelando antes um “eu” na sua luta pela conquista da própria vida («tu passas e não te alcanço, Vida», “Primeira”). São poemas ainda polvilhados por uma vitalidade fulgente, mesmo que se permita abater por evidências fatídicas, criados num existencialismo nascido da sede de afirmação da própria condição de Homem – uma relação que tanto prima pela atracção («Vida: / sensualíssima mulher de carnes maravilhosas») como pela repulsa, quando revelados os meios de vivência possíveis à época («maldita selva, maldita selva, / antes o deserto, a sede e a morte!»), num frémito típico da jovialidade do caráter.

Há também uma profunda relação com a terra e suas gentes, uma espécie de paganismo de sentido e culto com aspirações quase metafísicas, provavelmente consolidado no eco da infância do autor. E se por um lado tais diretrizes nos recordam o telurismo de Torga, por outro um aroma de Alberto Caeiro não deixa de se querer notar, sem ainda que a vitalidade inspirada por Cesário Verde possa ser colocada à margem. É o que em parte nos ilustra a “Terceira” das sete canções, num curioso harmonizar do ritmo dos afazeres diários com a melodia lançada pela divindade da terra: «A frauta de Pan concertava o ritmo». Indo, contudo, um pouco mais longe quando insere um ríspido contraste:

Era a vida-plena nos risos claros
e nas cabeças caídas sobre as espáduas
… … … … … …
Para lá da manhã fria, nas planícies áridas,
nas ruas tortuosas e nos templos,
a humanidade vestindo sonhos rezava…

Mas a conquista ansiada pelo “eu” só se efectiva quando a partida se torna possível. Dada a realidade do país, a fuga era um imperativo para todo aquele que quisesse beber dos lábios da própria vida. Até aí, tudo o que se conseguia era a perseguição de uma sombra (A Vida lá vai, / mais amada que ontem, mais desejada que nunca!», “Quinta”). Importa assim tentar compreender que a vida rotineira de então, amorfa e sem perspectiva de luminoso amanhecer, criava impulsos de ruptura naqueles que realmente dela desejavam algo mais para si e para os demais. Quem conhece o degredo da noite mais profunda, não ansiará naturalmente o romper de um novo dia? Pois, mesmo vivendo em escuridão, a luz não é uma experiência alheia ao ser. A última das canções encerra precisamente esse grito:

(…)
os olhos jogados para a frente, jogados para a
frente, e nas veias esta lava escaldante que corre e
se dispersa com o rumor de mil milhões de abelhas
saindo de mil cortiços para o sol!

A partir daqui o teor irá naturalmente generalizar-se, e os poemas, mesmo cumprindo o seu estilo de linguagem simples, directa e concisa, exibem uma matiz mais apurada.

O próximo capítulo, “Canções da beira-mar”, inicia-se com um dos mais interessantes e corrosivos poemas, com contornos narrativos, de toda a obra: “Saudade”. Não só a palavra remete para um sentimento tão íntimo dos portugueses como o próprio nome do capítulo, e teor do poema em causa, revelam subtis referências a esse país que um dia alguém adjectivou de “jardim da europa à beira-mar plantado” (Tomás Ribeiro, 1831 – 1901), referências essas que, aquando da sua discrição, adquirem contornos profundamente críticos. Em suma, Fonseca vê as gentes do seu país totalmente imergidas na memória de um passado glorioso, vivendo assim uma vida naufragada nas margens da saudade:

(…)
vinham as naus no silêncio das coisas mortas.
Os homens tinham esquecido as palavras de navegar;
sua linguagem era uma só palavra, (…)
(…) saudade.

Ora, uma vida de fantasmas não é uma existência plena e luminosa. Por vezes, é necessário alguém oriundo de outras esferas chegar para oferecer a um determinado quadro uma nova abordagem contemplativa. E Fonseca, neste poema, fê-lo brilhantemente, utilizando o próprio instrumento como alvo da sua denúncia. Pois eis que surge alguém, de longe, e se espanta perante tanto lamento diante do mar, o veículo da glória passada. Como sempre sucede em casos assim, o paciente queixa-se da maleita mas, no íntimo, não deseja a cura, apenas o lamento. E essa é, na verdade, a crítica maior que o autor deixa aos seus conterrâneos. Expomos as últimas linhas do poema para que o leitor possa concluir por si só:

E o moço estranhou a origem de tanta dor:
– O mar que vejo é azul e simples, entorna frescura.

Foi um grito espantoso pela costa: – Sacrílego!
Vieram todos ao promontório mais alto
e aí o queimaram entre orações de esperança:
– Será o farol das naus perdidas no nevoeiro!
será o farol das naus perdidas no nevoeiro!...

O mais irónico é que já o era, mesmo vivo. E era-o por em si carregar a luz capaz de romper o negrume em que tais gentes se haviam encarcerado. Mas quem mais reclama por liberdade, no fundo, não está preparado para a receber nos seus braços. Por isso, o autor cinge-se à única saída que se lhe avistou possível. Como viver num país onde a morte pauta os dias? É esse o ímpeto do poema “Partir!...”:

Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos…

(…)

Ai, mas a vida nunca espera por ninguém…
e a noite chega vingadora;
(…)
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
– e fico, desgraçado de ficar!...

Parece, assim, que a infertilidade das promessas e dos impulsos era um mal que não só abrangia uma classe social, mas todo um povo… Incluindo o autor dessas linhas.

Na realidade, começa-se já a descortinar a toada geral dos poemas deste capítulo. Aquele o que nomeia, por exemplo, só reforça a posição revelada pelos demais, repetindo os mesmos anseios, desesperos e sonhos. Recorrendo a motivos marítimos que inevitavelmente remetem ao passado glorioso do império português, Fonseca constrói o tecido da sua crítica e insiste na necessidade de ruptura («Estamos fartos do marasmo / deste balanço de lago / onde apodrece nossa carne dolorida») – mas não cessa de admitir que faltam pedras para completar o último alicerce da ponte que, em teoria, por fim levaria todo um povo até uma nova margem: «Que triste a nossa vida, / tudo temos: / barcos, remos e tripulação, só nos falta partir…».

Muito à semelhança da ideia legada pela extraordinária obra Mensagem, de Fernando Pessoa, também Fonseca entende que é pela inspiração nos feitos do passado que um futuro se poderá construir, sendo no entanto crucial o desapego a esse tempo. Chorem-se as perdas e plantem-se, enfim, as novas sementes, enfrentando uma vez mais todos os abismos para conseguir o maturar dos frutos mais ansiados.

E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

Curioso como o autor invoca, em “O vagabundo do mar”, uma figura que inspira liberdade para ilustrar o exemplo que o país deveria seguir, por demasiado tempo esperançado num D. Sebastião que tardava (e ainda tarda) em chegar numa manhã de nevoeiro. Embora a questão ainda se imponha: «Quem vem acender faróis na costa do mar / bravo?! Quem?!» (“Noite”).

Já que grandes empreendimentos só se realizam, assim parece, quando figuras de aura quase messiânica assumem o seu hipotético destino (legado ou autoimposto?), mesmo que a verdadeira mudança resida dentro de cada indivíduo sem lugar a imposições por parte de terceiros, fiquemos então com a sapiente visão de Hans, o marinheiro, exposta nas linhas da sua canção:

(…)
se tu soubesses
que em todos os portos do mundo
há um sorriso
para quem chega do mar;
se tu soubesses vinhas comigo para o mar
(…)

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservam-se a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013) e Cristal (2015). Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas). 

Comentários

LIGIA disse…
Manuel Fonseca traduz na sua obra poemas de um ritmo melodioso e belo, embalado pelo sofrimento de um povo que anseia por liberdade. Deseja partir para encontrá-la, talvez, além mar. Lembra um poema de Manuel Bandeira: "Vou me embora pra Pasárgada lá sou amigo do Rei".

Pedro Belo Clara disse…
E que belo poema esse, Lígia... Muito obrigado pela sua leitura e comentário remanescente.
Beijos.

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