(reflexo)

Por Lucas Miyazaki Brancucci

Painel pintado por David Pintor em 2014 na Rua Miguel Bombarda, no Porto (detalhe).



Aquele rapaz, moleque, garotinho sórdido, não sabia fazer nada com eficácia. Fazia hora extra num café do centro, ficava ao pé das ruas, vagava pelas praças e apenas andava a ler certos contos de Cortázar, um dicionário de física, um Livro do Desassossego e poemas de Herberto Helder que carregava na mala; atravessava noites na Biblioteca Mário de Andrade. Qualquer coisa cômica da mediocridade burguesa ocorria-lhe nos seus trajes e sotaques. É bem provável que seus dias não passassem de um teatro necessário para aquela obscuridade sonhada. Lia restos de jornais antigos na calçada.

E ali encontrava-se, nos seus momentos raros, tão invisíveis e passageiros, mas metido na sua liberdade bruta e rastejante de estar solto e desprezível, habitando aqueles chãos subterrâneos do Anhangabaú.

Recostado à parede em frente aos trilhos, com as pernas deslisando inquietas, a sua mão flutuava a pena da caneta ao longo do caderno-poema, enquanto sentia com o próprio corpo todos os fluxos passantes. No que, por descuido, chocou-se com a presença do homem, do outro lado do trilho, sentado nos bancos com o corpo pendendo para frente, o olhar petrificado no garoto. Um senhor devagaroso na sua limpidez gélida, que primeiro escutou daquela imagem inquieta – máquina de gerar encontros, carne de digerir o espaço, tudo é seus versos perdidos…

Ao ser visto, e ao perceber-se perscrutando, ambos ensurdeceram, se desconcertaram imóveis, mas o espanto era do rapaz. Passado um minuto ou menos, repleto de olhares quase parados, um leve menear de cabeça que pôde ser partículas de uma cumplicidade ou início de uma afronta. E o trem atropelou aquele instante arranhando o ar com seus berros.

O garoto voltou-se a si como desperto de um sonho, buscando desconcertado restos de plenitude. Quase sem idioma, imaginou-se, por instantes, incapaz de voltar a escrever, esperando o trem – que aos poucos voltava novamente a partir e quando enfim saiu por completo da fronteira que os separava, deparou-se com o velho ainda sentado: escrevendo, igualmente tempestuoso, tirando os olhos das páginas para o garoto, enquanto sua mão tórrida dançava com a caneta tinteiro.

Escrevia o próprio garoto e sua trágica literatura, como se lhe roubasse os versos, a pessoa. E nele ainda pude ver a incompreensão de sua inexistência, na sua imobilidade completa, nos seus olhos coléricos. Eu entrei e parti no próximo trem, rindo de ver-me na confusão do outro.

***

Lucas Miyazaki Brancucci nasceu em 1994, em São Paulo. Em 2015 publica o livro Elefantes (vencedor do Programa Nascente), e mantém um blog, onde compartilha literaturas e fragmentos esparsos.


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