Péter Esterházy, riso e melancolia
“Há, na
minha memória, pelo menos três escritores sorridentes, e entre eles está Péter
Esterházy, o húngaro que sorria. Os outros são Jorge Luis Borges, que sorria e
fazia sorrir, e Juan Carlos Onetti, que sorria por dentro. Mas, no caso do
primeiro, o riso era muito especial: ria (e sorria) de sua sombra, que vinha de
uma árvore plenamente aristocrática e da marca principal de seu país no século
XX, o stalinismo e seu comunismo intrínseco, conforme descreve em Pequena pornografia húngara (tradução
livre)”, diz Juan Cruz.
(Entre o
trio dos sorrisos é válido constatar que o húngaro tinha predileção por Borges,
sobre quem disse gostar pela maneira como “trata da incerteza da realidade”; “É
como se ele tivesse vindo da lua”, disse)
O escritor
foi descoberto pelo mundo muito tardiamente. Com a publicação de Harmonia caelestis. Aqui era o autor
maduro, capaz de afrontar e confrontar o passado, tratar o século XVII, como se fosse hoje,
enquanto em Pequena pornografia era
já aquele que sorria, e se ria, ante o espetáculo incrível daquele comunismo de
qualidade inferior que ainda não ainda não havia entregue a colher e que ele
afrontou com o humor que despertavam seus disparates.
O livro que
o fez reconhecido assinala o lugar de pertença de Esterházy nas letras de seu país; saído do terrível período da ditadura comunista, quando a literatura húngara, esteve submetida ao cânone realista que impunha uma concepção de romance diferente das inovações formais, o escritor preferiu a segunda linha, porque afinal, só pela reinvenção da narrativa seria capaz de refletir acerca das transformações e peculiaridades da sociedade centro-europeia.
Harmonia caelestis, nome genérico de 55 cantatas que constituem o primeiro documento da música barroca húngara, narra os 150 anos de histórias da dinastia a qual pertenceu o escritor – a que durante
o regime comunista perdeu bens e privilégios – a partir da perspectiva de uma
personagem que chama de “meu pai”; a obra quando publicada acabou por ser toldada
pelas descobertas nada favoráveis que escritor fez sobre o pai – ele havia trabalhado como
informante da polícia secreta entre 1957 e 1980. A obra foi integralmente
reescrita e em 2002 trouxe suas reflexões a partir das notícias sobre as
atividades escusas do pai. Findou sendo um texto composto de 371 fragmentos que evocam o passado identificado com a figura do pai e 201 que recriam o declínio da família. A numeração não é casual; responde pela formação matemática do autor que sempre atribuiu aos números a capacidade de dar ordem ao que não tem não tem manejo objetivo, como os dados que dão forma ao romance.
Em Harmonia caelestis, Esterházy criou a figura de um pai atemporal que permitiu-lhe transcender o anedótico para construção de um espaço metafórico onde confluem sua própria experiência e a do povo húngaro. Isto é, o relatado é a história da família, mas o protagonismo não descansa apenas na trama de pais e filhos mas no devir de uma nação que sempre manteve uma existência subsidiária. É um processo de reflexão sobre o descobrimento da Hungria, de sua própria identidade, no qual o escritor descarta qualquer propósito mitificador. Também não há quaisquer admirações profundas ou traço da memória enganadora do passado.
Quando descreve, por exemplo, uma cena na qual seus antepassados oferecem um emprego a Haydn no Palácio de Elsenstadt, a narrativa trata de apresentar, de maneira crua, o modo como eles tratavam os empregados: os criados eram obrigados a comer numa pequena sala à parte. Haydn só é permitido sentar-se à mesa quando alguns admiradores ingleses manifestam o desejo de conhecê-lo. Posteriormente, Esterházy descreve como o regime comunista transformou essa arrogância da elite num agravo permanente. Descender de uma linhagem de exploradores já não é um motivo de orgulho no paraíso socialista. O escritor, que se inclui como um membro da saga, parodia o gênero de memórias, desordenando acontecimentos, ora derrapando para o realismo e descrevendo-os com traço reais determinadas situações, convertendo a leitura numa experiência de elaboração contínua.
“Quando, em
2004, com Harmonia caelestis ainda
quente, recebeu o Prêmio da Paz dos Livreiros alemães, na Feira do Livro de
Frankfurt, riu da solenidade do tempo que vivíamos então, mas ficou sério ante
uma só coisa: a guerra que havia acabado com toda sua tragédia e má-ventura, no
Iraque, propulsionada, como agora ficou confirmado, pela ganância de dirigentes
fanáticos que deram ao mundo motivos pessoais sem se preocupar com os desastres
que provocariam e seus desdobramentos visíveis em Europa e no restante do mundo”
– conta Cruz e acrescenta que, ante o auditório formado por intelectuais e
políticos, Esterházy sublinhou: “Só uma linha: de longe admiro os Estados
Unidos, estou contra a guerra. Ponto final”.
“Esterházy
era delicado. O sorriso sempre prevaleceu sobre o seu silêncio. Dentre os
escritores que conheci não foi apenas o mais sorridente (tal como Onetti e
Borges), mas o mais solícito, o mais tranquilo; sua condição não era o ego, mas
a piada, a amizade que partia de seus grandes olhos claros. Sua geografia
humana esteve marcada por um despenteado belo que servia ao pente das mãos; é
um gesto que o descreve”, sublinha Juan Cruz.
Uma de suas paixões
foi o futebol, porque em sua família além de aristocratas houve também jogadores;
da estirpe de László Kubala, que era um tema de conversão quando veio a Madri
em 1992 e quando era visto várias vezes em Frankfurt, nos bares acanhados
daqueles hotéis.
Esterházy
tinha a preocupação do estilo no futebol e também na vida. Sempre elegante, conforme descreve Cruz, não se burlou do sério nem do solene. Aquele dia em que recolheu
o prêmio dos livreiros alemães falou sobre a pena que sentia da Europa, o
continente que não havia feito os deveres no século XX, cheio de sangue, e que
inaugurava outro século (este que estamos), sem sentimento, sem energia. No Leste, dizia, os problemas haviam sido escondidos
para debaixo do tapete – “e agora nem sequer temos tapete, roubaram-nos os
comunistas”; e no resto do continente todos os outros problemas também estavam
escondidos porque pareceu que o único problema que existiu era condenar a
Alemanha por ter criado Hitler. De modo que, das contas com passado, destacava,
não havia sido feita todas, fizeram apenas os alemães.
Parecia um
pianista, um tipo que teria convivido com Beethoven... e com Kubala; havia nele
uma harmonia – celestial, provavelmente – que se acentuou com o tempo, embora o
tempo tenha pulado seu rosto, o fez livre das rugas, parece sempre ter-lhe deixado mais jovem, também
mais adulto. Nesse contratempo que finalmente o venceu, pagou com o sorriso que
chegava aos países como se tivesse de só usá-lo para se fazer entender.
Péter
Esterházy era como uma igreja com um carrossel dentro: sério só por fora. O sorriso
foi sua arma; a literatura, a alma de sua casa e de sua pátria. Seus livros são
o contrário – só superficialmente humorísticos.
Em Nenhuma arte, por exemplo, onde conta a
paixão pelo futebol e a morte de sua mãe durante a ditadura comunista,
avista-se o tom irônico em contraste com a sobriedade do tema. Forma de
distanciamento ou questão de caráter? “O humor”, responde o escritor, “não
diminui o grau de dor, a comédia está sempre a um passo da tragédia. Em meus
livros as duas vão juntas. Por isso, às vezes, o leitor chora quando deveria
rir e vice-versa”.
Nesta obra, Nenhuma arte, a mãe de Péter aparece
como uma erudita do futebol húngaro; amiga de Ferenc Puskás, jogador considerado
o maior da história do futebol em seu país, a mãe de Péter é também uma
obcecada em fazer do filho um jogador de bom proveito. O tempo a que se refere a
narrativa é o dos anos gloriosos da “equipe de ouro”, a seleção que ganhou os
Jogos Olímpicos de Helsinque em 1952 para cair dois anos depois ante a Alemanha
na final do Mundial na Suíça. Péter não foi muito longe; seu irmão, Márton,
sim. Cresceu como uma erva daninha, à margem da vigilância materna, e terminou
jogando no México em 1986. “Minha mãe guardava num caderno as notícias sobre
meu irmão. Nunca fez isso com as resenhas sobre meus livros, mas sobrevivi a
afronta” – disse, certa vez, entre risos.
Nem se fez
um à parte do universo da bola por isso; também deixou-se contaminar pelo chamava de
ópio do povo, uma via de escape para o povo húngaro. “Numa ditadura todo mundo
busca um caminho de fuga. Logo chega a liberdade e a gente não sabe muito o que
fazer com ela: estamos sempre preparados para sobreviver, não para viver. O comunismo
acabou com as incertezas e isso [o futebol] tornou-se asfixiante mas tranquilizador”.
Durante toda
a vida, o escritor quis lembrar que sua relação com o futebol nunca foi a de um intelectual e sim
a de um jogador ainda que tenha sido um fracassado. “Os que não apreciam o
futebol têm razão, sua degradação é objetiva, mas eu não vejo as coisas
repugnantes que o cercam, só o que acontece em campo, e o jogo em si pode ser
tão refinado como atender as exigências do intelectual mais pedante. Não me
interessa a violência, a corrupção... Ou seja, sim, podem dizer que fracassei
como intelectual: gosto do futebol”.
Sobre a
estreita relação entre o escrito e o vivido, sempre que questionado, Esterházy
disse não trabalhar com uma separação entre uma e outra coisa; admirador do escritor Imre Kertész, escritor que fez uso da experiência pessoal sem subterfúgios, para ele, não é a razão entre o vivido o ficcionado o que está em questão na feitura do texto, mas a maneira como quem escreve engendra os acontecidos. “Costuma-se
dizer que o escritor deve manter uma distância entre ele e o seu objeto. Eu anulo
essa distância, o que é o mesmo que infinito. Se não existe uma distância, então
essa distância pode ser de qualquer tamanho”.
Nesse
ínterim, uma de suas obras mais delicadas é Os
verbos auxiliares do coração – texto que escreveu sobre a perda mãe. Quando
o livro foi publicado, disse não conseguia falar sobre sentimentos, o que
talvez justifique a reação nem sempre positiva dos leitores brasileiros com esse
livro. Mas, é essa incapacidade que dá outra tônica, ainda mais sincera, ao tratar sobre a dor da perda. “Na língua húngara, não existem verbos auxiliares, então, no título eu
me referi a algo que não existe, porque é algo de que não se fala. Por mais que
se fale da perda, do luto, nada irá melhorar essa dor. Nada, nem se esse livro
tiver sucesso. Quando se obtém sucesso, a vontade primeira é contar para a mãe.
Como a mãe não está viva, isso perde o valor”.
Este e Uma mulher são dois títulos de Esterházy
disponíveis ao alcance do leitor brasileiro. No segundo, o escritor húngaro parte
do ponto em que, nos anos 1970, os estruturalistas haviam anunciado a morte do
homem – o eu, afirmava-se, é só uma ficção, um pronome incapaz de explicar a
diversidade do humano. A partir disso, Esterházy busca mostrar as múltiplas
facetas que compõem o universo feminino. Concebida como um poliedro, o romance
explora todas as variantes do amor heterossexual sem renunciar a pequenas incursões
na penumbra do “amor que não se atreve a dizer seu nome”.
O relato se
articula em capítulos descontínuos que podem ser lidos desordenadamente; cada
fragmento forma parte do que, afinal é uma galeria composta pelos diferentes
tipos do feminino. A descrição de cada tipo, entretanto, produzirá no leitor a
sensação de que está diante da mesma mulher, desdobrada pelo tempo ou pelas
circunstâncias. Ao lembrar da relação com Borges, disposta no início do texto,
essa imagem sobre a figura feminina de Uma
mulher evoca o que o escritor argentino advertiu: “ser todos é uma forma de
ser nenhum”. É, por isso, e porque é um romance que desconstrói a ideia de um
fio condutor e de personagem, um dos pontos para a história do romanesco, na
altura em que alguns círculos creem absolutamente que o romance tem levado, do
fim do século XIX a ao atual, uma longa estadia no leito de morte.
O autor que
assimilou a lição de escritores como Broch, Düblin e Cortázar – outro latino-americano
pelo qual nutria predileção – não podia deixar de ser um dos expoentes do
pós-modernismo húngaro. Esterházy elaborou uma obra complexa e nada condizente
com os postulados pelas teorias da forma e da estrutura literária. Sua formação
em Matemática permitiu ver a literatura pelo viés oposto da lógica. “A matemática
trabalha com as formas e eu penso no livro como um espaço, um território. Nesse
espaço, há várias formas, várias relações que interagem entre si. Conclui-se
que a literatura e a matemática são parecidas porque são como um jogo, com as
suas regras”. Ao que parece, o que mais buscou fazer foi jogar fora dessas
regras a fim de reinventar o jogo – tal como experimenta-se em possibilidades o
leitor de O jogo da amarelinha, livro
mais conhecido do Julio Cortázar.
Gostava da história. E o que a literatura poderia fazer com seu material. Em Olhar da condessa Hahn-Hahn, uma viagem pelo curso do rio Danúbio lhe permite explorar as veias da cultura que oscila entre o refinamento e a barbárie.
Transitando
por vários gêneros; não foi apenas o romance seu território de predileção – foi
também o teatro, a poesia e o ensaio –, a obra de Esterházy encontra-se
traduzida para mais de vinte países e é foi reconhecida com diversos prêmios e
distinções ao redor do mundo. Trata-se de uma obra que caracteriza pelo jogo
linguístico, pela intertextualidade e textos compostos tal como um mosaico. Sua
morte foi prematura, pode-se dizer, apesar de já avisada: em 2015, no livro Diário de pâncreas havia recolhido sua
relação com a enfermidade da qual sofria: câncer de pâncreas. Foi assim, como
um riso, um escritor aberto aos leitores. Ou não: haverá os que se escondem
quando melhor se mostram. Será este o Esterházy que nos falta conhecer? Começa,
pois, uma nova jornada.
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