O som e a fúria
Por Gustavo Valle
Um tipo
muito tímido, de óculos, amante dos gatos, fumante de várias carteiras de cigarro
por dia, comedor de hambúrgueres e cachorro-quente; um sujeito que escutava
rock a toda hora, inclusive enquanto escrevia. Que não era nem drogado nem alcoólatra,
embora gostasse de uísque e sim escrevia quase exclusivamente sobre drogados,
alcoólatras e toda sorte de sujeitos à margem da lei, à deriva, fracassados. Um
tipo que aos vinte anos foi diagnosticado com lúpus, enfermidade autoimune que
onze anos depois acabaria com sua vida. Tudo isso, junto com uma escrita
prolífera, excessiva e alucinada, com suas paisagens de uma Bogotá desfocada em
technicolor, fizeram de Rafael Chaparro Madiedo, e seu romance Ópio nas nuvens (tradução livre para Opio en las nubes), um autor cultuado na
Colômbia, o que quer dizer um autor oculto durante muitos anos, essa raça de
escritores cuja obra e vida parecem sempre cruzadas por um destino prematuro,
trágico e angelical.
Andrés
Caicedo. O primeiro que nos vem à cabeça é pensar em Andrés Caicedo. Pela falta
de rumo, pela noite, pela música, pelo niilismo. E também por certo lirismo
desenfreado que nos dois autores funciona como uma máquina de lançar bombas
contra as convenções sociais, contra o status
quo da Colômbia de fins do século XX. Mas entre ambos também há suficientes
diferenças. Em Caicedo está a salsa; em Chaparro, o rock. Em Caicedo está Cali;
em Chaparro, Bogotá. Um se suicida, o outro adoece. E como disse o crítico
espanhol J. S. de Montfort, enquanto Caicedo segue o espírito livre dos Beats,
Chaparro se aproxima com um modernismo (pós) a James Joyce.
Conta a
lenda que Chaparro escreveu Ópio nas
nuvens depois de haver sido diagnosticado com lúpus. Os médicos deram-lhe,
então, poucos anos de vida e estes foram usados para escrever seu romance mais
famoso, mas ainda conseguiu escrever outro, O pássaro Speedy e sua banda de corações saqueadores (tradução
livre para El pájaro Speedy y su banda de
corazones maleantes), e além disso, uma boa quantidade de contos, mais de
trezentos artigos para a imprensa, e colaborar como roteirista para programas
de televisão. Chaparro, logo, escreveu contra o relógio e como se diz, com a
morte nos calcanhares.
Há alguns
anos, Alejandro González Ochoa, jovem estudante de comunicação da Universidade
de Antioquia, realizou seu trabalho de graduação sobre a obra de Chaparro. Na voz
de familiares, amigos, amantes, jornalistas, escritores, críticos etc. se reconstrói
a figura do escritor esquecido cujas obras, salvo Ópio nas nuvens, haviam permanecido completamente inéditas. González
abriu um blog onde publicou parte desse trabalho e também contos e poemas. Por
ironias próprias da era digital, o blog foi lido pelo fundador e editor
espanhol da Tropo Editores, quem logo se colocou em contato com González para
gerir o que seria a edição de Ópio em
2010 e, mais recentemente, em 2012, O
pássaro...
Ópio nas nuvens é o relato de um grupo
de jovens que parece levitar alguns centímetros por cima das ruas da Bogotá de
finais dos anos 1980. Amarilla, Sven, Pink Tomate, Gary Gilmour, Max,
Marcianita avançam entre tombos, mas se caem logo se levantam, extravasam, sempre
rumo a uma felicidade improvável, esse “céu azul” hedonista e ilusório com que
sonham às vezes. Presos numa fantasia oleaginosa mas nem por isso menos terna, são
anjos, da mesma forma que Denis Johnson chamou seus adoráveis perdedores. Assassinos,
travestis, batalhadores, prostitutas, sempre depois do último copo de uísque ou
vodca na barra do Capitão Nirvana ou de qualquer outro templo da dissolução
estrobosópica. Neles não há culpa, nem redenção, nem martírio, nem refúgio. Nem
sequer passado. Nem família. Nem outro traço que não seja a amizade, o amor e a
morte. São regidos pela liberdade, esta entendida como uma imparável queda
livre, e também a sorte, que funciona como um evangelho ilusório.
Construída
com a matéria de certo automatismo psíquico, delirante, em sua prosa muitas
vezes desbocada e surrealista, mais que falada, regurgitada, como se fosse uma
correnteza de pensamentos encadeados em tempo real. Incessante, reiterativa,
redundante, e por idêntica razão luminosa, e radicalmente noturna, pois
suas vozes giram dentro de um universo autônomo, inacessível por momentos para
o leitor e são regidas por regras próprias. É o que ocorre com os textos escritos em
estado de graça: não são obras-mestras, sua particular eloquência discursiva as
fazem tão anormais, excêntricas, que só resta ao leitor moderno demasiadamente
adestrado a conviver com a síntese, a frase perfeita e o menos é mais. Muitos destacaram
a gramática arbitrária, a pontuação, durante longas páginas, inexistente. Um recurso
de raiz joyciana que tantas vezes tem sido ensaiado pela prosa contemporânea e
que Chaparro recupera para dar cor ao seu mundo alucinado.
O pássaro..., publicado de maneira póstuma
dezessete anos depois de sua morte, também
explora o mundo de uma Bogotá underground.
As peripécias de um yonqui “sem asas”, junto com uma longa lista de sujeitos saídos
dos rincões mais obscuros da cidade, vítimas talvez de uma sociedade refém da
violência e do narcotráfico, como era a Colômbia de princípios dos anos 1990
quando dominada por Pablo Escobar, Gonzalo Rodríguez Gacha e os irmãos Ochoa.
Não é
anormal pensar que a obra de Chaparro é o espelho deformante de uma geração
presa entre a espada e a parede, embora seu autêntico espirito não esteja nem
na denúncia nem muito menos no realismo social, mas na urgência por revelar uma
Bogotá roqueira e lendária, quase irreconhecível em suas atmosferas que parecem
maceradas na névoa, com personagens paradoxalmente memoráveis pois pouco
sabemos delas, e em cuja autodestruição está a verdadeira raiz de sua ternura.
* Este texto é uma tradução livre de "El sonido y la furia" publicado em Revista Ñ.
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