O riso dos outros
Por Rafael Kafka
O presente texto nasceu de um
comentário em uma postagem do Porta dos Fundos em sua página no Facebook. Nela,
havia o link para um vídeo chamado “Satanás”, mais um que talvez gere polêmica
no meio cristão por utilizar-se de aspectos desta religião, em especial de seus
segmentos neopentecostais, para gerar riso na audiência. O grupo de humor tem
se metido em algumas celeumas há algum tempo por conta de um humor que
supostamente ofende a fé dos outros. Pessoas como Marco Feliciano chegaram
inclusive a questionar o porquê do grupo não fazer troça com os muçulmanos,
alegando que o motivo era o medo de represálias como as sofridas por um certo
semanário francês, revelando uma profunda visão distorcida dos povos islâmicos,
que em si não representam o fundamentalismo religioso dos diversos grupos
terroristas que andam por aí a espalhar o terror. Ademais, o Porta dos Fundos,
por mais que não se goste de nada ou de tudo o que foi e é feito pelo grupo,
faz humor com todos os estamentos sociais e credos religiosos e ideológicos,
caracterizando-se por uma boa diversidade temática.
Mas eu dizia do comentário em
questão que gerou a ideia desse texto. O autor do mesmo dizia que o Porta dos
Fundos não consegue produzir humor sem ofender os outros e sua fé, algo bem
similar ao que citei acima e que foi falado por Marco Feliciano. No comentário,
o autor cita Chico Anysio, o que foi respondido por outro usuário da rede
social de forma jocosa mas pertinente, ressaltando a quantidade de piadas
preconceituosas que o grande humorista global costumava soltar em seus
programas. Tal conflito digital me remeteu ao vídeo de outro grupo de humor
famoso, o Parafernalha, em que um outro usuário também cita o humor deste grupo
como não ofendendo a ninguém, o que me soou curioso por eu já ter visto em
alguns de seus vídeos piadas com um certo teor homofóbico e machista.
Os dois comentários me levaram a
refletir acerca da fala do ex trapalhão Renato Aragão quando o mesmo disse que
antigamente os feios e os negros não reclamavam das piadas feitas com eles. Aragão
e seus colegas de antigamente certamente são citados em rodas de amigos como
exemplos do bom humor de antigamente, o qual não ofendia ninguém e agradava ao
bom gosto do cidadão de bem.
A
fala do humorista e os dois comentários em defesa do “bom humor” me levaram a
pensar em um tipo de pessoa muito comum em nosso cotidiano: o que defende a
liberdade do humor, menos quando esse humor se volta contra ele. Se eu tivesse
um talento de Thomas Mann para as crônicas e textos de opinião, teceria um
paralelo entre aquele típico bullying da época de nossa escola, que quando era
acossado na posição de alvo das brincadeiras explodia e mandava tudo às favas,
e a nossa sociedade, cheia de estamentos sociais que estão na posição de
opressores a rir dos oprimidos e quando se veem no papel de objetos de riso
alegam perseguição e desrespeito.
Se eu tivesse o talento do autor
alemão em construir narrativas sobrepostas, a falar de destinos individuais que
alegoricamente se ligam a destinos coletivos, eu mostraria como esse bullying em
nossa sociedade se revela com diversas facetas. Ele é o machista que faz piadas
misóginas, mas se sente profundamente magoado quando uma feminista e seu grupo
de amigas o escracha. Ele é o racista que alega racismo reverso quando se
depara com negros empoderados. Ele é o capitalista opressor que se ofende
quando um grupo de esquerdista mostra como sua posição é estúpida por ele
compactuar com desejos patronais os quais visam a deixá-lo sem direito algum.
O bullying em questão se mostra em
cada uma das atitudes de pessoas que prezam pelo ridículo como forma de arejar
a existência, dizendo que piadas são apenas piadas e não devem ser levadas a
sério, mas as quais se sentem magoadas, ofendidas quando elas são o objeto da
chacota alheia. Vale ressaltar que essas mesmas pessoas criticam o poder de
interpretação de texto de outras que se sentem ofendidas, dizendo que elas não
sabem entender o humor por trás de certos discursos. Ressaltemos também que
essas mesmas críticas não sabem discernir uma piada que brinca com uma situação
de determinado credo religioso e não com o credo em si, o que aí sim, a meu
ver, soaria como ofensa em forma de piada.
Algo bem diferente daquelas
tradicionais piadas a brincarem com a loira burra ou com a bicha. Tais piadas
coisificam o modo de ser do outro, exibindo-o como ridículo e fixo, não
captando nele uma simples manifestação dentro de todo um rol de comportamentos
sociais. Minhas reflexões me levam a ver que o humor que não ofende ninguém é
nada mais nada menos do que o humor que ofende apenas a grupos discriminados e
perseguidos historicamente, como se essas pessoas não fossem nada, não fosse
ninguém.
Infelizmente, não tenho o
talento de Thomas Mann e por isso devo escrever essa crônica nessa forma mais
discorrida que tanto me persegue. Confesso que gostaria de ser mais destro no
uso da narrativa como forma de elucidar os diversos tipos de temáticas, pois
quando nos inebriamos dentro de um fato contado as coisas se tornam mais
convincentes para a nossa percepção. Mas trabalharei com o que tenho em mãos e
isso, no momento, é o belo documentário O
Riso dos Outros.
Esse documentário conta com
diversos depoimentos e se centra no debate acerca dos limites do humor. De um
lado, os humoristas defendem a tese de que qualquer temática pode ser alvo de
piadas e do outro uma série de intelectuais defende que o humor pode ser
preconceituoso ou questionador, mas em nosso país ele é geralmente opta pela
primeira opção. Os humoristas geralmente falam de um processo de censura, o
qual encontramos implicitamente referido dentro das palavras de Renato Aragão
citadas mais acima. Porém, tal censura nada mais é do que um processo de
feedback, de dialogicidade, o qual se torna mais transparente em uma era
marcada pelo crescimento constante das redes sociais. Nos tempos de Trapalhões,
quem se ofendia com uma piada não tinha lá muitas chances de exprimir a sua
revolta, algo que hoje já é mais fácil de ocorrer.
Cito o documentário como uma
forma de suscitar o debate, mas também como forma de crítica. E toda sua
extensão, em nenhum momento, pareceu-me ver uma pergunta sendo feita, a qual poderia
tornar as coisas mais contundentes e reveladoras acerca da personalidade de
nosso povo. Tal pergunta seria: por que sempre rimos de determinados grupos?
Pois não é muito difícil perceber como as piadas feitas por nós versam quase
sempre sobre mulheres, negros, gays, nordestinos, judeus, etc. em posição
ridícula. Piadas são exemplos de como o humor se utiliza do recurso do chiste
para aliviar o que poderia ser chocante como visão de mundo e de comportamento.
O chiste não anula a verdade do discurso, apenas a torna tolerável por conta de
nosso riso, um sinal que diz ao outro: “não leve a sério o que estou falando.”
Rimos do que nos soa ridículo,
baixo. Na Poética, Aristóteles já
deixa entrever essa verdade quando conceitua a tragédia como representação de
seres superiores e a comédia como representação de seres inferiores. Ser
inferior é ser objeto de riso e quando vemos apenas certos grupos como objetos
de riso deixamos bem claro que esses grupos estão cristalizados em sua posição
de risível, de ridículo.
Cresci vendo muçulmanos serem
objetos de riso em certos personagens, assim como grupos já citados por mim
aqui. Mas recentemente comecei a ver cristão também serem alvos de piadas,
assim como héteros, como machistas, como fascistas. O que vejo é que ninguém
gosta de se sentir como objeto de riso e poucos conseguem ver a crítica, quando
há uma, na piada que envolve determinado conjunto social que até outro dia
dizia que tudo era piada e não deveria ser levado a sério e hoje se sente
ofendido por um discurso que atinge sua honra. O humor só é humor, ao que
parece, quando é feito com quem sempre deveria estar ali, no papel de risível,
ao menos segundo a nossa mente limitada.
Se eu citasse mais uma vez
Bakhtin, sobre quem falei demais na minha resenha sobre A montanha mágica, eu diria que vivemos um processo cada vez maior
de carnavalização em nosso mundo pós-moderno. Isso significa que cada vez mais
estamos em um contexto social e existencial que revela os contrapontos entre as
mais variadas visões de mundo, o que por sua vez mostra todo o nosso mal-estar
diante da realidade fragmentada por nós vivida. E esse mal-estar piora quando
nos deparamos em nós mesmos com aspectos ridículos, dignos de riso, como os
seres dos romances de Thomas Mann a todo instante parecem se deparar.
A carnavalização vivida por nós
nos leva a encarar cada vez mais o que há de ridículo em nós e a nos vermos,
também, como objetos de riso. Dessa forma, entenderemos que a piada com o
pastor charlatão não é uma ofensa ao cristianismo em si e sim uma crítica
social pertinente ao modo como vivemos hoje em dia. A carnavalização, quando
conscientemente vivida, vejam bem, também nos leva a entender por que vemos
aquele grupo como ridículo e consideramos intuitivamente, no sentido fenomenológico
do termo, que rir dele é rir de ninguém. Nesse processo de desconstrução,
passamos a entender porque somente o riso dirigido para o outro é permitido e
nós devemos ficar isentos de sermos objetos de riso.
O que vejo em comentários como o
que motivou esse texto é uma dificuldade de aceitação no tocante ao fato de o
mundo ter mudado. As posições sociais nele existentes hoje são diferentes e as
concepções tidas em relação ao papel de mulheres, negros, homossexuais e outros
grupos mudaram e com isso nossa forma de ver tais grupos também deve mudar. Tal
mudança acarretará na forma como fazemos arte e humor, em especial, pois
passaremos não mais a ver este ou aquele grupo como ridículo, e sim esta ou
aquela situação, inclusive nós mesmos como ridículo. Especialmente quando
situações e seres representarem perigos para uma vida livre de qualquer forma
de opressão.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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