O escrito e o sugerido na obra de Katherine Mansfield

Por Neiva Dutra



Katherine Mansfield nasceu Kathleen Beauchamp Mansfield, em uma família com vigorosas ambições sociais. Sua mãe era delicada e distante e o pai um homem de negócios astuto e bem sucedido. Seus primeiros anos escolares transcorreram em Karori, um povoado nas colinas, a poucas milhas de Wellington, onde nasceu. Aos onze anos retornou à cidade natal, frequentando um ginásio local e, posteriormente, uma escola particular.

Em 1903 o pai, então diretor do Banco de Nova Zelândia, a enviou para a Inglaterra, para que estudasse em uma instituição dedicada à educação liberal das mulheres, para que Katherine recebesse uma formação metropolitana. Ali estudou música, francês e alemão e começou a escrever esboços e poemas em prosa. Na revista da escola publicou About Pat, sua primeira recriação da infância em Karori, escrito em uma linguagem direta e simples, assim como Die Einsame, impregnada por motivos de fin-de-siècle e com uma elaboração simbolista.

Kathleen Beauchamp voltou a Wellington, rebelde e perturbada, no final de 1906. Apesar de uma vida cômoda e socialmente expansiva, durante meses lutou contra a vigilância dos pais e não mais se adaptou à provinciana Wellington. Durante esse tempo, preencheu cadernos de notas, publicou seu primeiro trabalho, sob o pseudônimo de Katherine Mansfield, e envolveu-se em uma série de relacionamentos furtivos com homens e mulheres. Realizou também uma viagem prolongada ao remoto Urewera, ao norte da Nova Zelândia, uma experiência de “aperfeiçoamento”, da qual regressou com um grande interesse pelo povo Maori e por turistas ingleses. O pai aceitou o pedido para completar sua formação musical na Inglaterra e ela voltou a Londres em agosto de 1908.

A vida na Inglaterra era complexa e sofisticada. Kathleen estava apaixonada por Garnet Trowell, um jovem violinista cujo pai havia lhe ensinado o violoncelo em Wellington. Quando o caso entre ambos terminou, alguns meses mais tarde, casou-se impulsivamente com GC Bowden, um professor de canto cujo nome Kathleen carregou durante nove anos, mas de quem separou-se um dia após o casamento.

Voltou a envolver-se com Garnet e viajou com sua companhia de ópera, engravidou e, novamente, separaram-se. Durante os meses de gravidez, dependia - como de resto por toda a vida - da amizade conturbada de Ida Baker, a quem se referia como LM (Leslie Moore) ou Jones, mas também como Albatross, The Cornish Pasty, The Faithful One. Quando sua mãe passou a suspeitar, erroneamente, de sua amizade com Ida, taxando-a de “insalubre”, fez com que retornasse à Nova Zelândia, instalando-se em Wörishofen, na Baviera, com a esperança de que a água pretensamente curativa do local pudesse restaurar sua normalidade.

Após o nascimento de um menino morto, Kathleen partiu para a Alemanha, onde desenvolveu uma espécie de laço de confiança com o tradutor, jornalista e confidence man polonês Florian Sobienowski, que posteriormente tentaria chantageá-la com cartas escritas nessa época. Porém, entusiasta dos escritores russos, incentivou-a a ler, especialmente, Anton Tchekhov, e foi o responsável indireto pelo melhor de seus poemas, To Stanislaw Wyspiansky, aparentemente, uma homenagem a um patriota e poeta polonês que a impulsionou a considerar seu próprio país, “fazendo sua própria história, lenta e desajeitadamente, juntando isto e aquilo, encontrando o padrão, resolvendo o problema, como uma criança com uma caixa de blocos” e observando a si mesma com uma bravura whitmaniana: “Eu, uma mulher, com a mácula do pioneiro no meu sangue”.

Os meses na Baviera também foram dedicados às histórias satíricas que começou a escrever para o AR Orange e para a New Age, quando voltou à Inglaterra. As histórias não pouparam os alemães e tampouco a vida familiar e falam sobre o sexo, a gravidez e as divisões sociais, com uma candura quase feroz. Estas novas histórias, e várias outras, foram publicadas em 1911 como In a German Pension.

Ainda dependente da lealdade familiar de Ida Baker, mas atraída pela excentricidade e a indiferença de seu novo círculo literário, Kathleen Mansfield deu um passo decisivo quando, ao final de 1911, conheceu o talentoso estudante de Oxford, John Middleton Murry, editor fundador do Rhythm, uma publicação trimestral conscientemente dedicada ao espírito do Modernismo, a Mahler, na música, ao Pós-impressionismo, na arte, e a Bergson, na filosofia – um chamado “à coragem e à crueldade", uma fuga do espírito britânico e do esteticismo para o qual ela contribuiu com pequenas histórias que retratavam a violência física e emocional da vida colonial da Nova Zelândia.



Em The Woman at the Store, Millie e Ole Underwood deslocou-se de um retrato da cultura colonial para uma fresca profundidade psicológica e uma consciência da técnica impressionista. Estas obras foram excluídas da seleção de suas histórias feitas em 1953, embora sejam uma parte essencial de sua obra, porque introduzem o comportamento e as impressões humanas na sua narrativa.

Kathleen Mansfield e Middleton Murry passaram a morar juntos, assumindo o papel literário de “os dois tigres”, dirigindo-se um ao outro como Tig e Wig. Quando o Rhythm fechou suas portas, em meados de 1913, ambos editaram sua sucessora, The Blue Review, iniciando uma amizade intensa e problemática com D H Lawrence e Frieda Weekley. No final desse ano, sua tentativa de se estabelecerem em Paris como escritores foi interrompida pela falência de Murray. Kathleen havia escrito apenas “algo infantil, mas muito natural” e a vida na Inglaterra significava administrar fundos sempre escassos.

Pouco após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, mudaram-se para Great Missenden, próximos aos Lawrence e Kathleen iniciou uma profunda e duradoura amizade com o Judeu Ucraniano, SS Koteliansky. Quando sua relação com Murry parecia esgotada, dirigiu-se a Paris, no princípio de 1915, vivendo em um apartamento emprestado pelo novelista, jornalista e boêmio francês Francis Carco. Esse breve relacionamento contribuiu para que escrevesse An Indiscreet Journey.

Antes de voltar para Murray, começou no The Aloe o que esperava que fosse um romance baseado em sua própria família e a mudança, quando criança, de Tinakori Road para Karori. As lembranças se tornaram mais vívidas depois de se encontrar com seu irmão mais novo, Leslie, que havia se unido a um regimento britânico. Para o número de outono do novo jornal de Murray escreveu The Wind Blows, uma recriação delicadamente controlada da adolescência e da cidade de Wellington de sua infância. Porém, o motivo para o retorno aos valores da Nova Zelândia e seus temas, a concentração em suas memórias e em uma nova narrativa foi a morte do irmão, na Bélgica, em outubro de 1915. Como escreveria pouco depois, “a forma que eu escolho para escrever mudou por completo. Já não me sinto preocupada com a aparência das coisas”.

Dois anos mais tarde, quando Virginia Woolf pediu a ela que escrevesse uma história para o seu Hogarth Press, Mansfield revisou The Aloe transformando-o em uma narrativa mais curta, em doze seções discretas, que cortam e se sobrepõem, em um método semelhante ao do cinema desenvolvido no Simbolismo e no Realismo, com uma intensa ressonância emocional que se equipara tanto à elegia como à celebração; a história foi publicada com o título de Prelude. Prosseguiu no garimpo de suas primeiras lembranças, desenvolvendo uma escrita mais inteligente e, ao mesmo tempo, mais frágil, como Bliss e Psychology, nos quais adquire uma postura satírica que também representava um exercício de autoproteção.

Sua amizade com o Lawrence alcançou um ponto crítico em meados de 1916. Embora sentisse que os obscuros espasmos de raiva do escritor fossem muito próximos de seu próprio temperamento, “o caro senhor”, como ela escreveu a um amigo em comum, tornava-se perdido no “imenso pudim alemão de Natal que é Frieda” e, mesmo com todo apetite do mundo, é impossível comer todo o caminho através de Frieda para encontrá-lo.

Aproximou-se de Ottoline Morrel e, com maior cautela, de Virginia Woolf. Durante algum tempo, Maynard Keynes foi seu senhorio, Lytton Strachey sentiu-se atraído por ela, porque a considerava com uma boneca japonesa, Bertrand Russell admirava sua mente e tentou ter um caso com ela, TS Eliot advertiu Ezra Pound que ela era uma “mulher perigosa”. Porém, o caráter esquivo de Mansfield permitiu-lhe estabelecer amizades mais relaxadas com artistas e pessoas excêntricas durante algum tempo, como o pintor Mark Gertler e o andrógino Carrington. Também foi amiga do pintor escocês JD Fergusson, de Anne Estelle Rice e da aristocrata Dorothy Brett. Contudo, a doença a levou a separar-se, gradualmente, da maioria dos amigos ingleses.

Desde o início de 1918, quando sua tuberculose se converteu em motivo de grave preocupação, Mansfield viajava constantemente de Londres para a Riviera. Mesmo após o casamento com Murry, continuava dependendo de Ida Baker como companhia e quase como enfermeira, enquanto o marido estava comprometido com seu trabalho no MI5, serviço de inteligência, durante a guerra e, mais tarde como jornalista. Seus constantes deslocamentos acumularam histórias suficientes para escrever Bliss: and Other Stories (1920).

Os contos de Katherine Mansfield se situam no princípio das novas formas literárias que nasceriam com o século XX. Inauguram uma narração baseada em sensações, imagens simbólicas, discursos poéticos e instantes de iluminação que, subitamente, atribuem sentido e coesão ao que parecia disperso e circunstancial. Seus temas vão desde evocações da paisagem e da vida na Nova Zelândia até explorações de relações vividas com exacerbada sensibilidade.

A partir de 1919, quando Murry assumiu o controle editorial do Athenaeum, as separações, reencontros e novas separações passaram a ditar o ritmo de suas vidas, enquanto fluía entre eles uma correspondência bastante pesada. As cartas de Mansfield foram sempre uma amálgama de genialidade, alegria de viver e intensas emoções, com um amor constante, a exploração de sua doença em uma sequência que se repete entre euforia, arrependimento, confusão e encanto restaurado. Sua vivacidade e franqueza tornam essas cartas tão valiosas quanto sua ficção, oferecendo uma narrativa rica em detalhes sobre suas ideias quanto ao amor, à arte, à solidão, à morte iminente e a guerra. “A guerra está em todos nós” – escreveu -, inclusive depois que o conflito havia terminado, fazendo uma analogia entre a corrupção da civilização e sua própria decadência física.

O período mais fecundo na vida criativa de Mansfield começou quando ela alugou a Villa Isola Bella, em Menton, em setembro de 1920. Nos últimos dezoito meses, grande parte da sua energia havia sido empregada em críticas quase semanais para o Athenaeum e traduções de cartas de Tchekhov, em colaboração com seu amigo Koteliansky.

Decidida a concentrar-se em seu próprio trabalho, escreveu: “eles já estão derrubando as cerejeiras", para demonstrar sua consciência de que seu tempo era limitado. Em Menton, escreveu o amargo Poison, publicado postumamente, tocando novamente nas tensões de seu casamento; The Stranger e The Daughters of the Late Colonel, que atraiu elogios da crítica e a admiração de Thomas Hardy quando foi publicado, no London Mercury, em maio de 1921. No mesmo mês partiu com Murray para a Suíça, onde trabalhou diligentemente para produzir histórias feitas sob medida para os altos honorários pagos pelo Sphere, mas também produziu algumas de suas histórias mais fortes - New Zealand stories. Voltado aos personagens de Prelude e sua própria projeção, como o menino Kezia, escreveu At the Bay, Her First Ball, The Garden Party, The Doll's House e a enigmática e inacabada A Married Man's Story.

Desiludida com a medicina, Mansfield decidiu-se a tentar um tratamento com raios-X, caro e inútil. Voltando a Paris, em 1922, passou a frequentar um círculo de intelectuais russos emigrados, enquanto sua própria leitura de Ouspensky, sua convicção de que não poderia arriscar nada e a renovada influência de seu primeiro mentor, Orage, a levaram a buscar uma cura que fosse tanto espiritual como física. Escreveu pouco em Paris, mas no princípio do ano havia escrito The Fly, sua última declaração sobre a guerra, a inutilidade e o valor, bem como a última de suas tentativas para representar seu pai. Em sua história final, The Canary, a imagem do canto e o pássaro doente é, em certa medida, uma representação de si mesma e das limitações de sua própria escrita, uma elegia discreta, na qual a dor se converte em aceitação e, em última análise, em mistério.

Após um breve regresso à Suíça e dois meses em Londres, em outubro do mesmo ano, Mansfield ingressou no Instituto Gurdjieff para o Desenvolvimento Harmonioso, em Fontainebleau. Os estudiosos de sua biografia não compreendem sua decisão em colocar-se sob a direção de um guru que costumava apresentar-se sem compaixão e dispor-se a viver em uma comunidade de russos e buscadores da verdade – “meu povo, finalmente”, como os chamou. Mesmo que Gurdjieff a tenha tratado amavelmente, ela não se transformou em sua discípula: sua busca era muito mais por suas questões pessoais, um movimento contra o que ela considerava como o intelectualismo paralisante da vida europeia do pós-guerra. Em uma de suas últimas cartas, declarou seu objetivo de ser totalmente honesta: “Se me permitissem um único grito a Deus, esse grito seria: Quero ser real”.

Faleceu em Fontainebleau, em 9 de janeiro de 1923, semanas antes da publicação de The Garden Party and Other Stories, o que confirma seu lugar entre os modernistas de sua geração.



Katherine Mansfield recorria com frequência à imagem do mar, para destacar a magnanimidade do mundo diante de sua humilde produção como escritora e, efetivamente, durante um longo tempo seu valor artístico foi seriamente questionado, principalmente devido ao mito “purificador” que Murry criou após a sua morte, “vendendo” sua imagem como a de um ser angelical. Este mito perdurou até que a crítica começou a descobrir a complexidade de sua obra, outorgando-lhe o papel inovador que havia reivindicado, em silencio, durante anos.

Sua dedicação quase exclusiva aos relatos curtos faz com que seja um caso excepcional, considerada como uma das mais destacadas contistas do Modernismo. O papel inovador que exerce dentro do Modernismo inglês é incontestável e, ainda que tenha recebido influências de figuras como Maupassant, Coopard, Tchekhov e Anderson, imprimiu à sua criação uma marca pessoal que a consagrou como uma das primeiras escritoras inglesas que produziu o tipo de relato que seria adotado posteriormente pelo Modernismo, em um momento no qual poucos escritores de renome haviam explorado suas possibilidades.

Inclui-se em uma tradição que parte da nova percepção do relato que foi desenvolvida por Poe na metade do século XIX, mas substitui o suspense e o mistério pela ênfase na atmosfera. Ao argumento cuidadosamente elaborado para provocar a surpresa do leitor prefere as “insignificâncias” diárias e a introspecção psicológica, narrando sempre uma dupla história: a que escreve e a que sugere. Com uma técnica impressionista, quase pontilista, retrata seus personagens, que adquirem uma profundidade inusitada nas curtas dimensões do relato.

Além disso, uma de suas virtudes é a linguagem clara e diáfana, mas repleta de significados, o uso frequente de símbolos que transmitem verdades existenciais em consonância com os momentos de súbita revelação. Combina, dessa forma, o lirismo com a linguagem coloquial, rápida e exclamativa, obtendo um romantismo “dolorido” no qual o exótico se mescla ao maravilhoso, envolto em um toque de humor, realismo e desilusão.

Contra a opinião generalizada de que Katherine Mansfield apenas cultiva o detalhe delicado, em sua obra predomina a ironia sutil, que rompe com o sentimentalismo exacerbado da literatura vitoriana. Sua descrição dos costumes sociais, fundamentalmente aquelas referentes aos papéis de gênero, é raras vezes inocente e esconde uma dura crítica contra o sistema dominante à sua época.

Exemplo claro de sua crítica severa à imagem materna e à instituição que a sustenta dentro da ordem patriarcal – o casamento – encontra-se em Frau Brechenmacher Attends a Wedding, que estampa a consideração das mulheres como objetos nesse sistema: as mães e esposas têm uma obrigação a cumprir, que é dar à luz, cuidar da casa e da família. Quando a nova geração alcança a maturidade, são as mulheres desta geração que assumem essas obrigações e as mais velhas se convertem em seres inservíveis. Ao refletir a opressão destas três gerações, Mansfield a universaliza, negando-se a permanecer passiva diante dessa realidade. Mesmo reproduzindo o papel maternal nestas mulheres, a crítica mordaz se torna clara, indo além do retrato de costumes, envolvendo-se ativa – ainda que sutilmente – com a causa feminina.



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