Neblina, Adalgisa Nery


Por Pedro Fernandes



Pela brevidade do texto, pela simplicidade do enredo, me recusaria chamar Neblina pelo convencional, de que este é o segundo e último romance de Adalgisa Nery; brevidade e simplicidade, entretanto, jamais devem ser tomadas como um rebaixamento da obra. Tampouco chamá-la de novela e não de romance. Aliás, minha certeza, presa em parte pelos dogmas da teoria literária, titubeia num aspecto: a profundidade ensaiada pela escritora quanto ao debate de ideias que tenta instalar ao longo do texto, propondo-se a inaugurar na cena da literatura nacional um tipo de obra pouco usual nesse cenário, o da narrativa de ideias. Isso se dá no exercício de buscar estabelecer uma linha de reflexão filosófica no interior do narrado que, nesse caso, bebe muito dos resquícios de um existencialismo ou pelo menos nasce nele para pensar em questões que unifiquem o pensamento, a existência e o espiritual. O motivo de, ainda assim, afirmar que esta narrativa é uma novela e não um romance permanece porque não é perceptível que isso tenha vingado de um todo, ou pelo menos não foi do interesse da escritora ampliar as ideias aí debatidas para fora do plano do diálogo entre as personagens, como exploração pelo vivido na ficção das questões propostas por suas vozes.

Em Neblina, Adalgisa Nery demonstra claramente duas influências: uma, de experiência pessoal, o debate de ideias vivido entre os do seu meio (não é permitido esquecer as relações com gente dos círculos sociais mais intelectualizados ou que aparentavam ser) e outra, a forte necessidade de se apresentar como uma voz importante da literatura brasileira ao incorporar um modelo de narrador instaurado brilhantemente com Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas. Não é esta uma narrativa de memória, interessada em percorrer toda a existência da personagem e narradora, mas o mote para a construção do narrado é o mesmo experimentado pelo Bruxo de Cosme Velho: a presença de uma voz do além que perscruta, nesse caso, determinado instante da sua própria vida. No caso de Neblina, o período que cobre é o da estranha enfermidade da qual padece a personagem e narradora até o pós-morte, instante esse que compõe a abertura e o fechamento da narrativa.

Justamente aqui, é preciso dizer ao leitor mais exigente, que é necessário dar uma chance ao desenvolvimento da trama que no princípio de tudo parece não encontrar a linha de sustentação e transmite a sensação de que jogou o leitor num amplo espaço de viagem surrealista em que a palavra mais repetida – incansavelmente – é esquife. Esse mergulho numa atmosfera semietérea como se estivéssemos numa daquelas narrativas sem sentido de experiência espírita tem sua justificativa: é do lugar entre a existência e a não-existência que fala essa narradora. Neblina é a forma como, dessa condição, a narradora expressa sua aproximação com os que estão em plena atividade na vida, uma vez que a enfermidade da qual padece, antes de morrer, é uma misteriosa maneira de desistir da vida, está tomada por uma apatia que lhe impede mover-se, conversar com as pessoas, o que a faz ser uma espécie de estorvo para os da família. Nesse ínterim, ela passa a ver aqueles de quem sua consciência mais distancia apenas pela metade e outra parte envolta numa neblina.  

É quando se abre o dia-a-dia na casa da enferma ou da defunta que realmente se inicia a possibilidade de uma trama. O leitor atento logo saberá o que significa essa possibilidade: é que, de fato, também não há uma essa tramaticidade no real sentido do termo, afinal, aquilo que está instalado como centro nevrálgico da narrativa é o constante aperfeiçoamento do distanciamento das relações familiares com a narradora enferma: o desprezo da irmã porque jovem sente-se seduzida pela vida ilimitada e não quer medir esforços pelo coletivo, apenas para si e seus luxos; as limitações do pai, um funcionário público daqueles sem muita expressão que em casa prefere o silêncio à desordem da família; uma mãe que preocupada com a aparência está a todo tempo interessada em esconder que tem uma filha no estado de abobalhada; e um marido, que, tomado pela mesma maneira de ver da vida da irmã da mulher enferma logo se afasta da relação de casado para envolver-se às vistas dela com a cunhada.

Particularmente está aqui, no miolo da obra, o seu melhor, porque é quando se instala uma condição kafkiana – a mesma de A metamorfose, da personagem que de uma hora para outra deixa de participar do funcionamento corriqueiro da vida e se torna numa criatura-empecilho da qual os mais próximos preferem ignorar porque estão mais entretidos, no modelo social baseado na serventia e no lucro, em ser para os de fora e não ser para si. Essa, aliás, é a maior mensagem proposta por Adalgisa como essa situação-parábola: a percepção de que, no mundo da técnica, a homem tem evoluído cada vez mais para albergar lugar à indiferença para com o seu semelhante. Ainda que haja nessa percepção certo princípio eivado da cultura cristã – isto é, da necessidade que temos de respeito e zelo pelo próximo, afinal, como desenvolve numa das discussões da mãe da narradora com a filha, não somos bichos tal como no alto do seu egoísmo ela acredita – não é cara a reflexão para o seu tempo e para os dias atuais, visto que, de quando a obra foi publicada (anos 1970) para os nossos dias mais assistimos ao aperfeiçoamento da técnica e a maior ascensão do individualismo. 

O fato é que, se o princípio é cristão, a sua compreensão é ensaiada por diversas percepções alheias ao universo religioso ainda que sempre volte a ele, porque a escritora coloca na boca de gente diversa a pluralidade com que se manifesta a questão: é quando entra em cena os inquilinos que farão parte do núcleo da novela depois que a mãe da enferma aluga um dos quartos da casa e estas personagens trazem para a cena um grupo diverso de outras figuras, todos interessados em acompanhar de perto – depois de muita relutância da dona da casa – sobre a condição da enferma. Quando o debate recai no ambiente espiritual, é a condição de seres submissos ao Deus cristão o que se apresenta; o correr dessas ideias dá ao leitor a impressão de entrar numa seara que o deixa pouco à vontade e confirma outro deslize da narrativa: o de um certo artificialismo na construção dos debates. O mal-estar ante o discurso religioso cristão se confirma no assentamento das ideias sem que haja um questionamento sobre elas; isso dá a narrativa certo desvio para um caráter pedagógico daquela literatura do período em que a Igreja ditava o controle sobre os valores das ideias sobre o sagrado utilizadas pela obra. Nesse quesito, e esta é uma particularidade minha, dou preferência às peças literárias que prezam pelo embate e não a consolidação da ideologia.  



O que escapa das mãos da escritora é ainda a força de sustentar a situação a qual submete sua personagem principal ao limite de provocar no leitor o sentimento do pesadelo da indiferença – algo que se concretiza plenamente em Franz Kafka – ou ainda de corroer pela fibra da ironia rascante a condição humana aí denunciada – como faz Machado de Assis. Adalgisa compraz-se com a condenação de sua personagem e conduz à redenção da enferma pela presença do outro-salvador. Desfaz-se do epígono existencialista de que o inferno são os outros e melhor se aproxima do senso comum que diz ser os de fora melhor para si que os da própria família. Mas, não é possível passar despercebido a maneira como ri, através de sua narradora, do intelectualismo de fachada, aquele certamente muito comum aos meios onde frequentou e que, de seu tempo para cá, mais se consolidou como uma capa da hipocrisia social. Há aqui também o gérmen de uma recriminação do próprio rumo tomado pela narrativa, de se voltar para esse debate filosófico, podendo cair no diálogo artificial, como derrapa várias vezes. Mesmo a bondade e a compaixão – signos que são colocados em oposição ao egoísmo e indiferença pela presença dos inquilinos e seus amigos para com a narradora enferma –, não surtem o efeito esperado, parece dizer a escritora, se o que prevalece é ainda a aparência. Outra maneira do aparente, talvez melhor que aquela de sacrifício da existência para manutenção da pose com faz a mãe, a irmã e o marido, mas não desprezível porque não alcança lugar algum nessa condição de nos fazer melhores conosco e com os outros. 

Desse modo, a enfermidade da personagem narradora se concretiza como uma maneira ardilosa e extrema de romper as formas triviais e esvaziadas de sentido daqueles que a cercam; mais que isso: é uma maneira de alcançar uma ascese do corpo e do espírito, no sentido católico do termo. O que talvez não perceba nessa atitude – e isso a novela não explora – é que sua ação não lhe faz melhor que os outros. Ao contrário: priva-lhe, da mesma maneira de uma existência. Ao menos que, sua compreensão sobre essa condição equivalha ao martírio do claustro vivido por alguns santos da Igreja Católica. Fora dessa possibilidade, é preferível acreditar que o explorado pela obra é, através, da doença que nos faz inválidos numa sociedade que preza sempre por uma condição de serventia prática, uma denúncia ao levante de um modelo social marcado pelo descaso com o outro e sobretudo pelo diferente. Disso emana um senso de humanidade raro de experimentar-se pela literatura e logo fundamental ao leitor contemporâneo vivenciar a fim de refletir sobre sua postura com o outro e sua condição. O bom é que, nesse jogo entre fraquezas e fortalezas do homem, Adalgisa não leva até o fim o tom pedagógico impresso em algumas falas da narrativa escolhendo um fim feliz ou trágico, a depender da postura de suas personagens. Não há lugar para uma punição, ainda bem. Ficam as situações para julgamento de quem as lê.

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