Léxico familiar, Natalia Ginzburg



Em Léxico familiar, sua obra mais admirável, lida até a saciedade em vários idiomas desde sua aparição, reúnem-se as razões da narrativa entendida como catarse e as pequenas virtudes do narrador de raça que não necessita de alardes técnicos ou labirínticas intrigas para ganhar o leitor que ela converte parágrafo a parágrafo em seu companheiro de viagem, em seu amigo invisível.

A vasta cultura de Natalia Levi, por outro lado – nascida do entorno familiar, da convivência com seu companheiro Leone Ginzburg, incansável antifascista, e com Cesare Pavese e seus amigos da editora Einaudi, onde trabalhou tantos anos – não a conduziu à retórica trash, mas ao esmero de querer narrar acariciando os detalhes e fazendo de seu entorno cotidiano e de seu universo emocional um lugar que o leitor, sem saber muito bem como, toma para si, como seu.

Presa com infinitas leituras de Proust, heranças de sua mãe, que lhe deram o tom intimista e os mecanismos da memória afetiva, Ginzburg relata aqui sua infância envolta na vida cotidiana de uma família judia e antifascista nos tempos revoltosos de Mussolini e a tirania nazi com que a ideologia atentou contra  a vida humana.

Luminosa em algumas páginas cheias de grita e de cor, essa infância se obscurece em outras pela rigidez com que Beppo Levi, seu pai agridoce, ateu e livre pensador, conduz sua educação e a de seus irmãos. E chegado o momento dos sombrios episódios do desterro nos Abruzzos com Leone e seus filhos pequenos, a morte do marido no cárcere em Roma ou o suicídio de seu amigo Pavese, a obra poderia adquirir alguns tons melodramáticos que Ginzburg evita sempre pela contenção da narrativa.

Léxico familiar tece com palavras um tecido sentimental que em ocasiões avança parcimoniosamente porque convém eleger adequadamente a palavra que melhor convenha em cada encruzilhada da recordação. Diria que as palavras de Ginzburg sabem que estão aí, nas linhas da página, cumprindo rigorosamente com seu papel transcendente e testemunhal. 

Nas palavras que um dia se escutaram ou se pronunciaram, como nas imagens ou nos odores, se lança com elas nosso passado, e elas parecem determinar o passar do tempo e nossa própria identidade.  Assim, em “As relações humanas”, um dos ensaios recolhidos em seu célebre As pequenas virtudes, que o leitor entenderia como um texto com todas as luzes precursoras de seu romance Léxico familiar, a autora escreve que “entramos na adolescência quando as palavras que trocam os adultos entre si nos são inteligíveis”.  Somos adolescentes ante a leitura de Ginzburg. 

O tecido verbal das palavras sustenta o tecido social das relações pessoais (“no centro de nossa vida está o problema de nossas relações humanas”, destaca no seu pequeno ensaio de As pequenas virtudes), e é na infância quando se aprende esta lição que Ginzburg ilustra em Léxico familiar, um exercício narrativo de autobiografia que sua autora, sabedora de repetir – a saber, que a vida não é como a que vivemos mas como a recordamos, e a memória bebe da mesma taça da imaginação – cresce a ficção destacando que “só escreveu o que recordava. Por isso, quem tentar lê-lo como se fosse uma crônica, encontrará grandes lacunas. Este livro, embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como se fosse um romance”.

As anedotas e vicissitudes aqui narradas de seus irmãos, dos Balbo, das conversas no Café Platti de Turim, frente a Einaudi, de sua amiga Lisetta (que “não havia mudado muito desde a época em que andávamos de bicicleta e me contava as novelas de Salgari”), de seus irmãos Gino ou Mario com roupas novas do costureiro Maccheroni, de seu tio Silvio musicando poemas de Verlaine, dão a mão com as de Madame Verdurin, Odette ou monsieur Swann.

Ginzburg, nessa voz atormentada e sutil, guarda boa parte da grandeza da narrativa da literatura italiana contemporânea; aprendeu de seus inícios neorrealistas e se converteu numa retratista excepcional que fotografou com palavras com tal precisão que chegamos a pensar que formamos parte da imagem que lemos, e que também nós recordamos haver visto como em “a meia-noite, Pavese pegava seu lenço do paletó, passava rapidamente no pescoço e recolhia-o de volta no bolso. Ia pela avenida França, alto, pálido, com as golas levantadas, o cachimbo apagado entre seus dentes brancos, seu passo largo e seus ombros taciturnos”. 

Léxico familiar, romance de poderoso magnetismo, é resultado de uma amálgama de frases simples, palavras justas, irônicas sutilezas e proustianas banalidades aparentes que na realidade recriam a psicologia de todo um mundo, corriqueiro no mais alto sentido da palavra, terrores pessoais que reduzem-se quando são narrados, a música silenciada de um debate inusitado entre o valor da ação e o valor da palavra (estas páginas são também as memórias de uma mulher de ação e de palavra) ou uma reflexão não confessada acerca da solidão e do diálogo consigo própria através do ato de escrever.

Mas, além de sua posição central na cultura italiana da segunda metade do século XX, lendo manuscritos de Calvino, Primo Levi ou Elsa Morante, coetânea de Bassini e atriz em O evangelho segundo São Mateus, de Pasolini, não existe dúvida de que as musas da arte lhe concederam o dom da palavra, que ela soube em seguida aplicar com esmero na tarefa de escrever para sentir-se viva, na verdade, para confessar o vivido, e confessarmo-nos pelo discreto encanto da autobiografia que sempre acompanhou sua obra, desgarradora, porque viveu um ínfero, e ao mesmo tempo cativante, porque escolheu contar-nos com uma afetividade redentora, com as palavras convertidas num céu protetor. 


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