Auroras femininas

Por Márcio de Lima Dantas



O Rio Grande do Norte detém no seu sistema literário uma pequena plêiade de poetas dignas de constar em qualquer rol de boas mulheres escritoras. Esquecendo as canônicas Auta de Souza, Palmira Wanderley ou mesmo Nísia Floresta (como poeta), que não suportam uma segunda leitura, nem muito menos serem traduzidas para língua nenhuma, servindo apenas para que se repita os lugares-comuns de sempre, à falta de outros nomes existentes. Por que o humano não tolera o vazio é que se justifica o lugar ocupado por essas três personagens nas rumas de antologias publicadas aqui entre nós. Longe de mim destituí-las do valor histórico que compete a cada uma, agora dizer que têm valor estético é um acinte à Érato, musa da poesia lírica. Nem inventem. Respeito enormemente Nísia Floresta como ensaísta e como autora de belos livros de literatura de viagem, agora querer fazê-la poeta, é pouco compreender o fenômeno literário.

Assim sendo, prefiro me restringir ao que se inscreve como poéticas com valor artístico, produtos do espírito que transcenderão espaço e tempo, nada ficando a dever às literaturas de outros Estados da federação. Penso, sobretudo, numa Zila Mamede, numa Myriam Coeli, numa Nivaldete Ferreira e, principalmente, naquela mais esquecida (e, quiçá, mais conscientemente escritora), com dois livros de poesia e que se chama Jacirema da Cunha Tahim, autora de Poema e A hora antes da hora. Não lida e nem muito menos conhecida no parnaso contemporain do Estado, astuciosamente obliterador daquilo que não afina no diapasão dos elogios mútuos e da simulação astuciosa do meio literário.

Porém, tudo se move. Aos dias, sucedem as noites. Nos últimos tempos, apareceu na cena literária norte-rio-grandense três poetas de bom quilate, denunciadoras de uma sintonia com o espírito da época e capazes de produzir obras que se coadunam com muitos rebentos advindos de uma literatura feita por mulheres. Os temas são vários: as cismas e inquietações do presente, os derredores da condição feminina, o amor como objeto de derrisão; enfim, abandonaram o arquétipo do aguardo de Penélope, indo ao encontro das platibandas plenas de espelhos, expondo uma diferença em muito bem construídos e inspirados poemas. Refiro-me a Iracema Macedo, Carmen Vasconcelos e Anchella Monte. Tríade detentora de uma poesia refinada e sóbria, distante dos pesadumes de tantas, da choradeira que grassa entre mulheres poetas, empurrando o piegas e o lacrimogênico como se fosse lirismo de qualidade, que não tem que aguente mais. E o melhor disso tudo é que parece não haver um ideário comum, ou seja, são poéticas com dicções próprias; algumas optaram pelo respeito às normas gramaticais, outras desafiam a sintaxe ortodoxa, em atitude de plena liberdade, fazendo dizer do discurso poético como lugar que se opõe ao chamado real. Ou seja: a escritura como crítica do mundo e da sua perversa lógica.

O que chama atenção nos livros daquelas autoras é uma espécie de inscrição, digamos, do “feminino” - que até então havia aparecido de maneira ostensiva tão somente na poesia de uma Marize Castro ou de uma Diva Cunha - como um projeto escritural detentor dos topos mais vinculados às especificidades da condição da mulher num mundo predominantemente dominado pelos homens, e que se estende da política até as associações de literatos, como as Academias de Letras, por exemplo.

Com efeito, ocorre ostensivamente uma guinada na mentalidade dessas novas vozes femininas no contexto da lírica norte-rio-grandense contemporânea. O discurso poético quer instaurar-se como diferença, não mais como aquele que segue cânones e normas estabelecidas por uma vida literária dominada pelos homens. 

Não há como negar a inserção da nossa mais conhecida poeta, Zila Mamede, como epígona da Geração de 45 (Rosa de pedra), da poesia concreta (Exercício da palavra) e da forte influência do poeta João Cabral de Melo Neto, em alguns poemas ("Procissão", por. ex.). A poeta, não há como não reconhecer, afinava seu timbre lírico consoante o que se encontrava em vigor na produção literária oriunda dos homens, não conseguindo, apesar do seu inegável talento, uma caligrafia própria, que a distinguisse da virilidade dos seus colegas contemporâneos. Embora nada se possa dizer contra sua competência poética, elaboradora de belas metáforas, de uma concretude sóbria e seca (no melhor sentido), também não podemos deixar de afirmar que pouco ou nada inovou no que diz respeito à escritura oriunda das mulheres. Mesmo por que, se olharmos bem, constataremos que sua escritura estava bem de acordo com seu temperamento. Doméstica e recatada, de temperamento forte, ligada sempre às classes dominantes, pragmática, não se permitiu uma liberdade maior.

O certo é que hoje nada nos impede de dizer que somos detentores de um cabedal de mulheres escritoras que, além de disporem de dicções próprias bastante diversificadas e criativas, também encontram-se em sintonia com a mentalidade das formas contemporâneas de se relacionar afetivamente, consoante com o espírito do tempo que as entorna. A mulher, diferente do passado, quando se atinha ao simples pastiche estético advindo dos círculos masculinos, hoje insculpe seu nome e seu número no discurso poético produzido no Rio Grande do Norte.




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