As mulheres de James Joyce
Por Gonzalo Lizardo
James Joyce e sua companheira Nora em Lucerna, 1935 |
Congruente com
suas convicções estéticas, James Joyce foi um lúcido observador do mundo e
esteve intrigado com os mistérios da alma feminina. Numa carta hoje famosa,
Jung o elogiou pelo conhecimento do feminino que exibia no último capítulo do
seu Ulysses: “suponho que a avó do
diabo sabe tanto assim da psicologia real da mulher, eu não sabia”, escreveu
surpreendido pelo comportamento dessa senhora irlandesa, Molly Bloom, que além
de ter uma bela voz e de ser uma mãe amorosa, pensava e sentia sem falsos
pudores, consciente dos seus próprios desejos e daquilo que inspirava nos outros:
uma mulher imune ao juízo alheio, que sabia valorizar a si mesmo com a
verdade de seu corpo, de seu amor e do seu canto.
A personagem
de Molly deve ter sido muito provocadora para a sociedade irlandesa de seu
tempo, onde toda mulher decente estava presa às inflexíveis virtudes do
catolicismo. Contra esse protótipo, Molly / Nora não é submissa, casta,
espiritual nem religiosa. É caseira sim e manifesta um honesto carinho por
Leopold, seu companheiro, apesar de ter um amante. Por mais surpreendente que
pareça a sensualidade com que Leopold a beija no fim do romance – mesmo sabendo
que ela é infiel – sua ternura evidencia uma admirável mudança de atitude viril
frente à soberania feminina, tanto que o homem decide livremente amar sua
mulher tal como é, não tal como
deveria amá-la pela hipócrita perspectiva da moral dominante.
A relação de
Joyce e suas personagens com a figura da mãe é igualmente complexa. De fato, a
ausência materna é um tema central de Ulysses.
Quando o poeta Stephen Dedalus visita sua mãe moribunda, esta lhe exige que se
ajoelhe ante seu leito e reze por ela. Convencido que “a beleza não está aí”,
Stephen se nega e sua mãe o condena antes de morrer. Mais que sua morte, ao
jovem lhe atormenta que ela o exile de seu afeto e o condene ao inferno. Desde esse
momento entende que sempre esteve órfão, no entanto vê em sua mãe um símbolo da
paralisia irlandesa, desses valores que ele devia rechaçar e desejava ser
livre: a família, a pátria e a religião.
Que a mulher
não só representa a paralisia, mas também a libertação, fica claro desde o fim
do romance Retrato do artista quando
jovem, quando Stepehn Dedalus resolve sua indecisa vocação graças a uma
figura pagã: a anônima que vê na praia brincando com as ondas como uma imagem
alada que a vida lhe enviava para guiá-lo. Como as ninfas que inspiravam
Sócrates à beira do rio, esta mulher-pássaro exerce uma função iniciática:
adota a forma de um Ícaro feminino a ponto de voar com suas asas de cera fora
do labirinto para que Stephen conjecture, por analogia, uma solução para seu
enigma: se para verdadeiramente aspirar à beleza, à liberdade, ao amor, à
poesia tem que sair da Irlanda e dedicar-se a “criar a vida com matéria de vida”.
A mulher
como fonte de epifania também aparece em seu conto “Os mortos”. Depois de uma
profusa cena familiar, um casal chega a um hotel onde passarão a noite longe
dos filhos. Para aproveitar a intimidade, Gabriel tenta cortejar Gretta, mas ela
o repreende, cansada pela memória de um jovem que morreu de amor por ela.
Previsivelmente, os sete céus, mas só por um momento: os eventos dessa noite e
a nostalgia de sua mulher ensina-lhe algo mais valioso: as vezes os vivos atuam
como mortos, pois não vivem ideais nem sonhos e as vezes os mortos se parecem com
os vivos, pois afetam ainda nossas atitudes e decisões. Apaixonado por sua
mulher, Gabriel entende que “era melhor passar corajosamente ao outro mundo, na
glória total de alguma paixão que esvanecer e andar languidamente lentamente
com os anos”.
Recorrente
em sua obra, o tema joyciano dos céus fica mais fascinante se considerar que as
protagonistas de “Os mortos”, Ulysses
e do drama Exiliados são inspiradas
na figura da mulher de James Joyce, o que permite supor que seus lados
masculinos estão inspirados na figura real do companheiro de Nora Barnacle. Isso
permite supor que o romancista e sua companheira, igual às personagens
joycianas, enfrentaram uma luta semelhante contra os céus, que venceram graças
a uma dolorosa reeducação sentimental: a uma crítica interior dos valores que
haviam sido impostos por sua religião e sua cultura.
Para provar poderíamos
reler as Cartas a Nora: as missivas
que Joyce escreveu para sua companheira quando estavam distantes um do outro. Além
de seu jovial tom essas libertinas linhas revelam uma radical mudança de
valores com respeito ao feminino, que não é agora valorizado em função de sua
passiva “pureza” mas pelo contrário: de sua vitalidade, picardia e sua ativa
sensualidade. Para Joyce era muito mais sedutor o “impuro”, e ambos preferem
umas intimidades manchadas (isto é, vivas e reais) que um coração imaculado
(isto é, desajeitado e incompleto). Amar uma mulher por sua impureza e não por
sua forçada inocência torna-se assim um ato licencioso e rebelde que transgrede
nossos preconceitos sobre a virtude feminina.
Poderia
escrever-se um livro sobre o tema, sem dúvida, e mais se recordamos a intensa
relação entre Joyce e sua filha Lucia: como pai ou filho, poeta ou amante, Joyce
foi sempre consciente do poder do feminino. Sem importar nosso gênero, um “imponderável”
umbigo nos une ao ventre de Eva, nossa mãe Terra, nossa Anima telúrica, nossa
Deusa Mãe. Este omphalos ou umbigo
mítico que nos reconcilia com a Anima é um vínculo frágil que destrói toda vez
que somos cegados pelos céus ou o afã da sujeição. Para restaurar esse umbigo
mítico, Joyce colocou em marcha a sutil maquinaria de sua narrativa, até conquista
uma compreensão mais lúcida da mulher concreta, de carne e osso, que deve ser
amada em novas condições de liberdade, igualdade, e sobretudo, de empática fraternidade.
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