A montanha mágica, de Thomas Mann
Por Rafael Kafka
Terminei de ler A montanha mágica há algumas semanas e
desde então me pego todo dia pensando em algo ligado a este livro. Penso que se
houvesse mais atrevimento de minha parte, certamente me dedicaria a estudar
esta que é uma das narrativas mais instigantes que já tive a oportunidade de
ler. Tal impressão em mim se deve a uma série de fatores, inclusive na
comparação a outras leituras que tenho feito ou que fiz recentemente. Mas se
deve mais à interessante experiência temporal proporcionada pelo livro, a qual
em muitos momentos me fez sentir a mesma temporalidade experienciada por Hans
Castorp, o protagonista que um belo dia vê uma visita a um primo doente se
tornar em uma mudança existencial profunda.
Curiosamente, comecei a ler A montanha mágica na mesma época em que
comecei a ler Problemas na poética de
Dostoiévski, de Bakhtin. Por motivos ligados ao trabalho, à preguiça das
férias e à dificuldade tida por mim em me desprender da leitura literária,
obrigando-me a encontrar tempo livre para leituras teóricas importantes, a
segunda leitura anda de certa forma parada enquanto o livro de Thomas Mann foi
concluído por mim há cerca de um mês. Todavia, o ensaio sobre o romance
polifônico criado pelo célebre autor russo muito tem provocado reflexões
interessantes e talvez por isso o romance de Mann venha a minha mente com
considerável frequência.
Um dos elementos mais
característicos dessa narrativa é o intenso debate ideológico presente nas suas
páginas. Cada personagem é portador de uma visão de mundo bastante peculiar e
marcante de seus gestos. Posso dizer que cada personagem representa uma ideia e
os diálogos são verdadeiros debates envolvendo formas de pensamento muito
díspares como o medievalismo, o racionalismo renascentista, o comunismo e mesmo
o fascismo cheio de gestos afetados e falas incoerentes. Nesse contexto, é
interessante observamos que Hans é um engenheiro, ofício cuja área de saber é
extremamente valorizada em países de pensamento tecnicista e tecnocrata. Não
obstante, Hans se mostra um ser de diálogo claudicante, sempre tateando os
caminhos dialógicos pelos quais percorre, como se não soubesse ao certo do que
está falando e temesse cometer gafes.
Temos diante de nós um ser cujo
saber científico de nada adianta das questões mais instigantes da humanidade,
como a salvação da alma e o sentido da existência. Hans assume a postura de um
sujeito simplório, que no início do romance menospreza os métodos do sanatório
onde se encontra o seu primo, mas depois se rende ao ritmo da vida horizontal
levada ali.
Tal ritmo recebe esse nome de
aparência bastante metafórica, mas que se revela bem literal na leitura do
livro de Mann, pelo fato de grande parte do processo de tratamento das pessoas
ser gasto em refeições ou horas de repouso. Aos poucos, os dias passam a
assumir um ritmo monótono, chegando mesmo a se parecer cada vez mais um com o
outro. É aqui que entra a experiência temporal do romance, pois Thomas Mann
cria uma história que se arrasta em fatos aparentemente desconexos entre si, os
quais revelam como o tempo sentido por uma existência desengajada da realidade
é algo amorfo, morto, lembrando por demais o ritmo do pensamento humano quando
estamos em estado de sonho.
Nesse sentido, a temporalidade
amorfa do romance dá vazão a um aspecto interessante analisado por Bakthin em
seu ensaio: a carnavalização. Os seres assumem um ar paradoxal, ridículo,
absurdo mesmo. O narrador do romance assume um ar contemporizador, bonacheiro,
lembrando demais o modo de Machado de Assis de narrar, mas sem o mesmo grau de
ironia. O tom “pacato” com que a história é narrada, a sua temporalidade e os
longos discursos inflamados acabam criando uma leitura de múltiplas camadas e
diante de nós temos uma história que sempre parece querer nos dizer algo além
do que estamos lendo. Essa impressão se eleva quando estamos diante de um ser
tecnocrata como Hans que parece dominar o mundo com sua racionalidade, mas
acaba se mostrando uma criança inocente quando confrontado com outros seres
como Nafta e Setembrinni. Este, por sua vez, assume uma postura racional firme
em seus debates, mas não resiste a assobiar e cantar uma mulher em praça
pública, revelando um lado animalesco dominado pelo instinto e pela libido. Já
Nafta com toda sua defesa da igreja não se nega a usar o artifício do suicídio
caso se depare com o caos sem solução da realidade humana.
A carnavalização se mostra aí,
nesse rompante de comicidade a marcar atitudes até então sérias e prolixas. É
esse paradoxo de modo ser que gera as diversas camadas de comportamento que se
exibem nos romances de Dostoiévski e que influenciariam diversos outros grandes
autores, como o próprio Mann e José Saramago. Diante de nós, temos personagens
repletas de humanidade, não coisificadas pela consciência do autor. Este, por
sua vez, faz a sua voz ser apenas mais uma dentro do romance polifônico, não
determinando o sentido da narrativa a alguma intenção moralizante ou
ideológica.
Assim, a carnavalização é o
fenômeno que dentro da literatura atrai os opostos do mesmo jeito que o
carnaval, em sua sagrada profanidade, atrai para si os polos opostos de nossa
sociedade. O rico e o pobre, o homem e a mulher, o hétero e o homossexual,
todos se confundem nessa data. Ao menos era o que ocorria em seus tempos
áureos, antes da gourmetização do processo, e ainda ocorre em locais mais
tradicionais de amor ao samba. Na literatura, a carnavalização atrai os pontos
de vistas opostos e as atitudes opostas. O sério e o risível, o digno e o
ridículo se mostram lado a lado, revelando todas as nuances da existência
humana em seu aspecto psicossocial.
Quando li romances de
Dostoiévski quando era mais jovem, deparei-me com uma sensação estranha em dois
sentidos. Ora, a obra me parecia desconexa pela imensa quantidade de “lições de
moral” presentes em seu enredo. Naquele período de adolescência, eu ainda via a
obra como algo linear demais com uma visão autoral a me ensinar a ver o mundo
que me rodeia. Daí o fato de tantas visões díspares (um ateu convicto e um
cristão ortodoxo na mesma história, com o mesmo destaque) me causarem tanto
susto e perturbação. Por conta disso, a sensação estranha se reverberava pelo
fato de a história parecer inacabada, sem fim, mais sem nexo ainda.
Após iniciar a leitura do livro
de Bakhtin, entendi que o nexo existente ali era diferente do que eu sempre me
acostumei a ver em literatura. O protagonista de um romance polifônico é a
dialogicidade, o confronto de ideias, o ser-para-si negando o em-si criado pelo
seu ser-para-outro diante de um interlocutor. O desenrolar das ideias é mais
importante que o desenrolar dos fatos e o espaço físico e social não é algo
acabado, mas sim profundamente determinado pelo modo como cada ser se depara
com ele.
Thomas Mann trabalhou isso de
forma grandiosa em seu belo romance. Todavia, ele se utiliza não das ruas de
uma grande cidade, mas de um pequeno espaço: um sanatório em uma montanha.
Dentro desse espaço, teremos diante de nós um verdadeiro microcosmo, repleto de
conflitos ideológicos e comportamentos os quais revelam a desintegração da
Europa e, podemos fazer o adendo, do mundo em que vivemos. De certa forma, o
rompimento dos laços com o mundo exterior realizado por Hans é uma fuga diante
do sentimento de modernidade, diante da sensação de mal-estar que passa a
dominar a humanidade a partir da Primeira Guerra Mundial. E mesmo tal evento
sendo citado muito rapidamente somente ao final do romance, fica evidente que
os fatos desencadeados dentro das paredes do sanatório são uma espécie de causa
motriz, no nível micro, do primeiro conflito bélico de dimensões mundiais
presenciado pela humanidade.
Não obstante, ou talvez por isso
mesmo, o uso de um espaço tão pequeno com um sanatório e suas adjacências como
cenário de A montanha mágica faz com
que a dialogicidade supracitada divida o papel de protagonista do romance com a
própria temporalidade do romance. Em dado momento, o narrador assume que o
livro é na verdade um romance sobre o tempo, sobre como o ser humano lida com o
tempo. É no tempo que encontramos a unidade de nosso ser em um mundo
desfigurado pela fragmentação. É no tempo que somos o que projetamos ser e
talvez em um mundo fragmentado até mesmo a unidade existencial dada pela
unidade temporal pode se mostrar algo ameaçado.
E enquanto o tempo passa, vemos
o misticismo assumir ares de importância dentro do enredo, o quase amor
mostrando o isolamento de indivíduos que dividem o mesmo espaço e ainda assim
evitam até mesmo encarar a morte um do outro, vemos a homossexualidade latente
se projetar em um amor heteronormativo, evidenciado na prosa de Mann sua
consciência do amor como algo não preso aos gêneros tidos como normais por muitas
mentes reacionárias, mostrando o amor como uma força motriz que ignora as
determinações sociais dadas pela sociedade patriarcal; vemos também pessoas que
colocam todo seu vigor intelectual e espiritual em debates, como se estivessem
à procura dessa unidade interior e ontológica da qual sentem tanta falta.
A montanha mágica está longe de ser um livro de leitura fácil. Ao
fim dela, sentia-me exaurido e ainda posso dizer que sinto um pouco de cansaço.
Cansaço este intensificado pela noção de que provavelmente terei de ler este
romance mais vezes para desvendar novos segredos dele. Mas mesmo não sendo um
romance fácil, penso que qualquer leitor que ame a grande literatura deve se
permitir a leitura em dado momento de sua existência. Pela quantidade de temas
sociais, filosóficos, religiosos e existenciais debatidos e pelo modo como
trabalha com a polifonia e com a carnavalização dos seres presentes na obra,
este romance se revela como uma grande leitura para entendermos melhor o ser
humano e sua necessidade constante de repensar os seus caminho, conseguindo
desta forma algum tipo de salvação de si mesmo.
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A montanha mágica
Thomas Mann
Herbert Caro (Trad.)
Companhia das Letras, 2016
856 p.
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