A massa e o indivíduo de Elias Canetti
Por Javier Aranda Luna
Os vivos que se conhecem bem sempre há algo
que censurar. Os mortos, entretanto, agradecem que não proíbam a recordação.
Elias
Canetti
Todos os
homens lutam em algum momento contra a morte. Poucos convertem essa luta em
militância e resistência. Elias Canetti foi um deles. Seus romances, obras de
teatro, ensaios e aforismos facilmente revelam isso. Enquanto exista a morte,
nada belo será belo e nada bom, bom, escreveu certa vez. Se a forma mais
elementar que adquire essa luta é a simples sobrevivência, os dias de Canetti
foram um preciso exemplo: esteve com sua mãe e seus irmãos por vários países em
busca de melhores oportunidades para desenvolver-se e para fugir do
antissemitismo da Alemanha nazista. Poliglota desde tenra idade, adotou, o alemão
para escrever sua obra. Para ele, essa língua foi “a língua de meu espírito
porque sou judeu e desejo conservar em mim, como judeu, o que resta de um país
devastado”.
De acordo
com a imprensa, teve um fim, se isto é possível, invejável: morreu entre
sonhos, morreu enquanto dormia numa manhã de domingo depois de haver trabalhado
em alguns textos. As notas encontradas na sua mesa de trabalho são uma série de
reflexões sobre a morte, a imortalidade, o poder. Esta é uma delas: “Tua primitiva e
complexa relação com Deus não era nada mais que uma tentativa de atacar o poder”.
A literatura
de Canetti – que inclui, naturalmente, suas memórias – é uma vasta reflexão
sobre o poder como forma extrema de sobrevivência, como uma sobrevivência
delirante. Romances, ensaios e aforismos giram sobre esse eixo cuja reflexão e
descrição poderiam ser, como o exercício da escrita, intermináveis. Não é
casualidade haver reconhecido que Robert Musil havia lhe mostrado “o mais
difícil” dos conhecimentos: escrever é o conto de nunca acabar, o trabalho que ninguém
sabe se poderá concluir e que “requer antes de tudo paciência e tenacidade sobre-humanas”.
Mas, suas
obras de reflexão duradoura, convêm esclarecer, não deixaram de ser, antes de
tudo, literatura. Nem mesmo os previsíveis ensaios acadêmicos nem os
romances-panfleto. Só linhas com imaginação literária podem escutar o homem “com
sua voz real, concreta e irrepetível”.
Os
argumentos de suas obras de ficção são memoráveis. Como esquecer o delirante sinólogo
de Auto-de-fé que desarruma sua
biblioteca, vira as lombadas dos livros para a parede e termina entregando-os
ao fogo para protegê-los da ambição
de Therese, sua companheira e antiga governanta?
A Canetti
lhe interessa as emoções da massa e do indivíduo, o que o homem é com os outros
e o que é sozinho. Seu ensaio Massa e
poder que levou vinte anos para escrevê-lo se encontra num desses extremos;
Auto-de-fé, que originalmente chamou O encegamento e O outro processo de Kafka na outra ponta. Escritores e críticos
como Claudio Magris consideram esses livros seu trabalho capital. Este Auto-de-fé é, sensivelmente “sua grande
obra, sua peça mestra, um grande livro que golpeia como um soco”.
Sua luta
contra o poder, que sem dúvida ganhou fama ainda antes de receber o Prêmio
Nobel de Literatura, e seu amor ao trabalho, fizeram Canetti exilar-se. Entre tantas
anedotas que contam sobre isso e que
ilustram sua vida de moderno ermitão uma se diz que seus vizinhos só souberam quem
era no dia em que souberam do Nobel pelas dezenas de jornalistas que
chegaram à sua casa para entrevistá-lo; outra diz que, poucas semanas antes de
sua morte atendia ao telefone como se fosse o mordomo: “Aqui é da casa de Elias
Canetti, o senhor Canetti não está”.
Alfonso Reys
dizia que a poesia como as ideias fecundas crescem sozinhas, rebaixam sua intenção
inicial e alcançam as vezes desfechos inesperados. Se é assim, qual será o
destino dos livros de Canetti? O autor de O
outro processo de Kafka gostava de ilustrar o exercício do poder com a
imagem do gato e do rato: o gato ao prender sua presa manifesta sua violência e
ao jogar com ela, seu poder. Não é impossível imaginar que vivemos uma das
épocas mais violentas e na qual o poder é utilizado de maneira extremista. Se não
é assim não é pecado supor.
O certo é
que “a autêntica paixão do verdadeiro poderoso é tão grotesca como incrível:
quer ser o único. Quer sobreviver a todos para que ninguém sobreviva. Quer escapar
da morte a qualquer preço e por isso não deve haver nada, absolutamente nada,
que possa lhe dar a morte”. Por isso, Canetti escreveu: “meu desejo maior é ver
algum dia como um rato devora um gato com vida. Mas deve jogar com o gato longo
tempo”. Canetti morreu, mas o desejo e o exercício do poder continuam. Oxalá que
suas obras alcancem o inesperado fim de seguirem sendo lidas para compreender,
mesmo que seja um pouco, “a importância aterradora do poder que ameaça em
destruir toda a terra”.
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