Zero Zero Zero, de Roberto Saviano
Por Gerardo Ochoa
Logo quando
da publicação de Gomorra, Roberto
Saviano foi banido de Nápoles. A sentença “Livremo-nos de Saviano” resume o
malquerer de sua cidade natal ante o retrato dos mafiosos que a governam. Mas nem as
ameaças que o obrigam andar escoltado pelo polícia aonde vá não impediu que
fosse mais além. E se essa obra, levada de imediato ao cinema por Matteo Garrone ainda
ganhou em Cannes, foi um clássico instantâneo, Zero Zero Zero é o golpe no meio do sistema econômico e político
global, o desnudamento das regras de diversas comunidades marginais, a
meditação sobre a natureza do mal, o rebaixamento visceral frente a
irremediável perda da esperança, o grito ante a contemplação da besta de incontáveis
denominações: Neve, Branquinha, Neve Branca, Coca, Pico, Lady C., Basuko, Brisola; o petróleo branco,
a cocaína.
A droga chega
ao seu destino em ônibus, contêineres, aviões de pequeno porte, embarcações,
submarinos, mulas. Transportada como artesanato, em imagens de santos, enlatados,
aerosóis, bebidas alcoólicas, soluções para lente de contato, próteses mamárias
ou de glúteos, ajudas médicas em zonas de desastre, bolsas, em cápsulas dentro do
estômago, atadas ao pênis, ânus, vagina, em balões de aniversário, livros
infantis, bíblias. Em suas embalagens ou nas pastilhas vai o logo de bandeiras,
super-heróis, desenhos animados, tatuagens, marcas ou ideogramas; seu
copyright: mais de duas mil variantes iconográficas. Por trás estão pilhas de
nomes do crime, segundo sua origem: máfia, camorra, cartéis, guerrilha,
terrorista, autodefesa, governo revolucionário, estado paralelo. A supremacia da
coca expressa uma questão profunda, a aspiração ontológica humana contemporânea,
que não é a verdade ou a felicidade, o nirvana ou a iluminação, a redenção ou a
vida eterna, mas o imperativo categórico que impõe o capital: estar high.
Zero Zero Zero registra os sucessos do
que constitui uma conquista planetária econômica, política e cultural. A queda
de Pablo Escobar atinge o poder dos criminosos colombianos, embora sigam
produzindo 60% da cocaína do mundo e lavando 97,4% do dinheiro nos Estados
Unidos na Europa. Do México chega o alívio e a mudança de paradigma. Miguel
Ángel Félix Gallardo convoca uma cúpula de mafiosos, exerce sua autoridade e de
maneira visionária divide os territórios: o de origem dos cartéis. Logo cai em
desgraça, mas seus sucessos iniciam o que sabemos, depois do mercado dos EEUU e
distribuição regional e mundial, a disputa de legiões. As ganâncias envolvem
policiais, exércitos, governos e Estados. A reciclagem se realiza através de
bancos, propriedades comerciais, empresas de verdade ou de fachada, paraísos fiscais
como as Ilhas Cayman e respeitáveis mulas com as que circulam pela City londrina
e Wall Street.
Sobre o
México, cujo mercado da droga alcança dos 25 aos 50 bilhões de dólares anuais,
Saviano se descuida de alguns aspectos. Estados Unidos é o país que mais
consume droga no mundo, recebe quatro das cinco partes que produz e passa para
outros países e é o fornecedor principal das armas utilizadas pelos
narcotraficantes: o crime perfeito. Não destaca entretanto que a droga que
cruza o rio Bravo finda na violência devido a eficazes redes de distribuição e
venda que envolvem grandes autoridades, uma parte da sociedade pouco
investigada porque é a parte que conduz as investigações – o que sobra para os
da periferia. O autor também não concede um ápice de mérito ao Exército e a
Marinha, embora celebre suas principais fontes, o FBI, a DEA e a polícia
italiana – sobre as quais só questiona de soslaio como ocorre também em Gomorra. Da legalização, pelo que
aposta, se ocupa num acurado esboço.
Zero Zero Zero ou a marca da besta branca.
Durante a crise financeira de 2009, os narcos contribuíram como o único capital
líquido que não levaram alguns bancos à falência, informou as Organizações das
Nações Unidas, e os ganhos anuais a nível mundial, 352 bilhões de dólares,
haviam amortecido mais de um terço das perdas dos mercados. Os World Drug Report, sem dúvidas, não documentam
o panorama completo. Várias organizações policiais contabilizaram como os
confiscos feitos em operações conjuntas, que menos de 15% que se diz confiscado
não foi. Tomando-se os dados como certos, as somas e lucros causam assombro: em
2004, a ONU reportou sobre uma produção de total de 937 toneladas das quais
foram consumidas 450 e apreendidas 490 na América, 300 mais o consumo na Europa
e outras 99 apreendidas no restante do mundo; isto é, somam mais de 400
toneladas não registradas, quase metade do indicado.
Saviano aprendeu
a esquecer seus pesadelos – quando acorda, simplesmente se levanta, bebe um
copo d’água – exceto um: aquele em que seus gritos são inaudíveis para os
demais. Para entendê-lo vai ao smorfia
ou livro dos sonhos, tradição cabalística napolitana usada nas apostas da
loteria. “Eu sei que em Nápoles o número mais seguro para aposta é o 62, o de
assassinatos. Sei que esses assassinatos a mesma cidade apenas os trata como 48
– o morto que fala, é o que sinto que me converti para ela.” Saviano é de
estirpe kafkiana e suas revelações sobre a lógica do mundo atual em Zero Zero Zero são equiparáveis às de O processo ou A metamorfose. “Você viu face a face o que é o homem e em todos vê
semelhanças com a nojeira que conhece. Vê a sombra de cada um. Tornei-me um
monstro”. Despertou Saviano convertido num bicho, cruzou o ponto lodo do qual não
retorno? A epígrafe da poeta búlgara Blaga Dimitrova solta a questão: “Medo
nenhum de que me pisoteiem. Pisoteada, a relva se torna uma trilha.”
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