O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
Por Élida Karla
Alves de Brito
Considerado
como o nome do século XIX, vivenciando uma época em que a Inglaterra é marcada
pelo desenvolvimento econômico e industrial, um momento de conquistas para o
país, acarretadas principalmente pela segunda revolução industrial, atrelando-se
a isso um período de expansão e conquistas coloniais, nesse contexto, o
escritor Irlandês Oscar Wilde experimenta os dilemas e os conflitos próprios do
homem de seu tempo ao se deparar com os costumes, a cultura, as crenças, a
repressão e a rigidez dos valores morais típicos da chamada “Era Vitoriana”. Essa
conjuntura de transformações e desenvolvimento econômico também se reflete nas
artes como um período de expansão em todos os seus campos, sobretudo, na
literatura, destacando-se nesse setor, a obra do escritor como um dos marcos da
época. Tal reconhecimento é atribuído, sobretudo pela visão que o escritor
tinha de seu tempo, sendo possível dizer que “[...] De diversas formas foi ele
quem melhor o encarou” – conforme bem lembra Marcelo Rollemberg no seu Sempre seu, Oscar: Uma biografia epistolar, apontando assim que foi Oscar
Wilde quem melhor compreendeu, absorveu e demonstrou legitimamente muito de seu
tempo.
A obra de Wilde é extensa, uma vez que ele não
deteve seus escritos a apenas uma esfera da arte, mas mostrou-se eclético
escrevendo poesias, contos e se consolidando como dramaturgo com peças como
"Salomé" (1891), "O leque de Lady Windermere" (1892) entre
tantas outras. Sendo possível, desse modo, observar em toda a extensão de sua
obra o empenho e a preocupação em dar conta de expressar a realidade própria do
século XIX, alçando críticas à sociedade vigente que pela dureza dos valores
morais muitas das vezes intimidava o homem a manter-se preso numa vida de
aparências que satisfizesse as exigências sociais. Visto que era extremamente
importante para as pessoas da época manter um bom nome perante a sociedade, não
se envolver em escândalos. O indivíduo deveria preocupar-se com o seu status
social.
Oscar Wilde, por manter uma posição contrária a esses padrões, pode ser caracterizado pelos
estudiosos de sua obra como Rolemberg (2011) e Mariani (2008), por exemplo, como
sendo uma figura polêmica, possuidor de uma opinião forte e um aguçado senso crítico
e estético que se diferenciava dos parâmetros estabelecidos na sociedade. As
divergências podem ser evidenciadas tanto na sua obra como na sua vida pessoal.
Wilde teve um sucesso efêmero no que diz respeito a sua vida social, pois se
envolveu em escândalos chegando até mesmo a ser preso em 1895. Porém, deixa para
a literatura um legado que se apresenta, sobretudo, na obra intitulada O retrato
de Dorian Gray, que teve sua versão final publicada em 1891 e é considerada
como o primeiro grande sucesso literário de Wilde, sendo reconhecida como a
única obra do escritor que se apresenta como um romance.
Trata-se de um
romance composto por vinte capítulos nos quais se pode perceber a presença
clara de um narrador contando os fatos, bem como se pode observar o uso das
formas dialogais permeando toda a trama. A narrativa se passa na Inglaterra do
século XIX, mesma época em que vivia Wilde, e vai de encontro a questões comportamentais
como, por exemplo, as que dão conta das vidas duplas dos homens, da hipocrisia
nas ações e na moral puritana, da busca pela beleza física como fonte de
felicidade numa época mantida pelas aparências, do egoísmo das ações pautadas
no Eu que acabam por tornar o outro como objeto, entre outras. Os personagens
retratados no romance em sua maioria pertencem ao mesmo ciclo social, a
burguesia, e partilham gostos como a admiração pelo conhecimento, pela estética
e pela arte. Podendo assim ser revelada uma admiração pelo luxo, o apego ao
intelecto, ao status social, mas que permite de acordo com Mariani (2008,
p.1-2) expor uma reflexão sobre o decadentismo vigente na época, marcado pelo
jogo entre paradoxos, e, com isso expondo um pouco sobre as injustiças sociais
existentes naquele período.
A narrativa
conta a história do jovem burguês Dorian Gray, um rapaz que pertence à alta
sociedade e vivia num cenário típico da era vitoriana. Possuidor de uma
encantadora beleza e de uma aparência angelical que transmitia toda a doçura, gentileza
e inocência de uma criança, Dorian é de início, um jovem que aparenta estar
distante de toda maldade e sordidez de que o ser humano no ápice de seu egoísmo
pode ser capaz. Desse modo, o jovem Gray se torna a principal fonte de
inspiração para o famoso pintor Basil Hallward que em retribuição a essa
inspiração decide pintar um majestoso quadro do rapaz.
De acordo
com Basil em conversa com seu amigo Lord Henry – um aristocrata de fala dura
que demonstra demasiada afeição pela vida regada aos prazeres e expressa grande
desejo em conhecer o belo jovem que Basil está pintando – o seu encontro com Dorian
Gray é “[...] uma razão para a arte.” (p.18). Desse modo, através da beleza de
Dorian, o pintor parece encontrar uma nova motivação para pintar, descobrindo
um novo significado para sua arte. Os dois se conhecem na sessão em que Basil
está finalizando o quadro que pintava do jovem rapaz e logo Dorian se encanta
com Henry. A pintura é perfeita, pois consegue mimeticamente resgatar toda
beleza e majestade do belo jovem, retratando todo fulgor de sua juventude como
se a pintura fosse um reflexo de sua alma. Mas ao se deparar com tamanha beleza
e sob a forte influência das palavras de Lord Henry que afirmava para ele
avidamente sobre a importância da juventude e sua brevidade, sobre como a
beleza externa, isto é, a boa aparência é essencial para a vida, parece então
surgir no moço uma espécie de temor pela velhice causado pelo esplendor da imagem
do quadro:
"Como é
triste! Eu vou ficar velho e horrendo e medonho. Ele jamais envelhecerá além
deste dia de junho... Se eu pudesse ser diferente! Se eu permanecesse sempre
jovem e o retrato envelhecesse! Por isso – por isso – eu daria tudo! Sim, não
há nada em todo o mundo que eu não daria! Daria a minha alma por isso!" (p.35).
O Dorian
exposto conservaria sua beleza, seria para sempre belo, o mundo, as maldades
humanas não iriam tocá-lo, enquanto que o Dorian de carne e osso estava fadado
à velhice e a perda daquilo que lhe parecia essencial, a sua beleza. Assim, a partir de tais ações a trama passa a
se desenrolar por meio de um estranho laço que é mantido entre Dorian e o seu
retrato e com isso o desejo do jovem parece ter sido atendido. Desse modo, o
retrato passaria a sentir o peso do tempo e a se modificar diante das ações inconsequentes
e impensadas do rapaz ao passo que Dorian estaria livre para viver uma vida de
prazeres, de experimentações diversas sem restrições, sem limites, pois ainda
assim preservaria a sua aparência juvenil e pura.
Os anos
passam e Dorian sob a influência de Henry e de suas práticas desmedidas, passa
a transformar-se em um homem muito diferente do jovem inocente que foi um
dia. Tornando-se frio, egoísta e sem
qualquer empatia para com os que com ele se relacionava. Dorian parece sofrer
marcantes modificações internas, no seu caráter, no seu ser. Porém a boa
aparência era mantida sem que houvesse qualquer mácula. A quem lhe via seria impossível
imaginar que houvesse naquele rapaz de rosto ameno, olhos azuis e aparência
angelical qualquer pesar, qualquer sentimento ou ação negativa.
Contudo, o
retrato “[...] seria para ele um símbolo visível da consciência.” (p.105), um
reflexo da verdadeira alma de Dorian. A pintura passa então a se modificar
diante de cada ato, tornando-se uma imagem horrenda que fazia transparecer
todas as culpas de seu dono. Gray pretende então esconder a todo custo o seu segredo
e com o objetivo de manter-se intacto perante todos, ele não poupa esforços sendo
capaz de cometer as maiores atrocidades contra qualquer um que possa ameaçar chegar
perto do quadro de tem o poder de mostrar quem ele é de verdade.
A trama expõe
críticas que permitem uma profunda reflexão sobre importantes questões de uma
sociedade que se mostrava pautada numa ideia padronizada de beleza, uma época
que era marcada pelo rigor de um puritanismo moral e é nessa sociedade moralista
que Dorian Gray está inserido. Uma sociedade onde o cumprimento das leis morais
era fundamental para formar o bom homem, o homem de bem, típico cidadão inglês.
Mas era uma sociedade que escondia em sua essência relações sociais baseadas na
falsidade, casamentos de fachada, traições, delitos e impunidades em nome da
manutenção dessa ordem. De tal modo, na produção literária de Wilde reflexão a
respeito de uma sociedade que tem como fundamento a aparência é visível.
A construção
do indivíduo, sua relação com o outro e o peso das escolhas são outros temas
recorrentes nesta obra de Wilde, uma vez que a personagem dona do retrato opta
por viver a vida regada aos prazeres, de acordo com o queria, fazendo tudo a
sua maneira sem pesar suas ações e as consequências destas nos sujeitos que a rodeava.
Dorian, que um dia se viu vislumbrado pelas artimanhas e palavras de Lord
Henry, passa a induzir pessoas, a levá-las ao erro sem demonstrar qualquer
arrependimento por isso. Por um tempo ele parece sentir certo prazer em cometer
crimes e até mesmo assassinatos dos quais sempre saía impune graças a sua boa
aparência. No entanto, a cada escolha feita um peso lhe era imputado e isso era
nitidamente refletido no retrato que passava a se modificar mais e mais,
mostrando a verdadeira essência das atitudes do seu dono e gerando nele certo
sentimento de arrependimento.
"Ah! Em que
momento monstruoso de orgulho e paixão ele tinha rezado para que o retrato
carregasse o peso de seus dias e que ele conservasse o esplendor límpido da juventude
eterna! Todo o seu fracasso se devera àquilo. Teria sido melhor para ele se
cada pecado da vida trouxesse consigo a punição certa, imediata". (p.256).
O
arrependimento demonstrado por Dorian diz respeito não apenas aos pecados
cometidos e ao mundo sombrio no qual ele estava envolvido, mas recaiam
principalmente sobre sua obsessão por uma beleza e juventude eternas pelas
quais ele não mediu esforços, não ponderou consequências para conseguir e que
no fim das contas o fez afastar-se das pessoas, retirou dele a possibilidade de
amar verdadeiramente e o afastou até mesmo de sua consciência, do seu Eu.
Dentro dessa
perspectiva, é possível conjecturar uma possível relação entre a obra de Oscar
Wilde e alguns aspectos de outros campos dos saberes como a psicanálise e a
filosofia. A liberdade plena sem limites
vivida por Dorian, a questão do fazer-se do modo como ele construiu o seu ser
baseado em ilusões e prazeres efêmeros e a própria construção da consciência de
si que lhe é revelada no retrato que se transforma a cada escolha feita por
ele, são temas que podem interagir com o conceito de liberdade e de responsabilidade
frente às escolhas que fora empregado mais a frente no século XX pelo filósofo
francês Jean-Paul Sartre.
Sartre
mostra em O existencialismo é um humanismo que o homem livre constrói o seu ser e sua consciência em concordância com
cada ação praticada, pois “[...] toda a ação implica um meio e uma
subjetividade humana [...]” (SARTRE, 1973, p. 10) a ação diz muito de quem a
praticou. Assim sendo, o homem livre vive o dilema de escolher e nesta escolha
desvelar para outro e a si mesmo o seu ser. Dilema este que se centra entre
escolher aquilo que é importante para ele em sua individualidade e aquilo que as
suas escolhas individuais refletem perante sociedade.
Dorian
escolheu o que lhe apetecia, fez seu caminho buscando unicamente a satisfação
de seus desejos sem importar-se com os outros e com isso ele construiu uma
imagem de si mesmo como um reflexo de suas ações. E o acúmulo dos seus pecados era externado
através do retrato. O retrato mostrava para Dorian Gray quem ele era em sua
essência.
O retrato de
Dorian Gray é, portanto, um romance que marca sua época e embora, escrito há
mais de dois séculos, os temas que aborda continuam atuais. Visto que ainda nos
dia da contemporaneidade o homem ainda se depara na constante luta para fugir
do peso do tempo, empenhando-se na negação dos seus defeitos que o tornam
humano e optam pela busca de um ideal de belo que beire a perfeição física e
estética. Wilde permite através de O retrato de Dorian Gray que se reflita no
quanto o homem em sua busca pela felicidade, por completar-se, pode se entregar
as mais variadas paixões, aos prazeres sem limites e nem mesmo assim se sentir
completo e feliz.
Referências
MARIANI,
Sérgio Luis Soares. Dorian Gray: um retrato do narcisismo sob a ótica de
Alexander Lowen. In: ENCONTRO PARANAENSE, CONGRESSO BRASILEIRO, CONVENÇÃO
BRASIL/LATINO-AMÉRICA, XIII, VIII, II, 2008. Anais. Curitiba: Centro Reichiano,
2008. CD-ROM. [ISBN – 978-85-87691-13-2].
ROLLEMBERG,
Marcelo. Sempre seu, Oscar: Uma biografia epistolar. São Paulo: Iluminuras,
2001.
SARTRE, Jean
Paul. O Existencialismo é um humanismo. Trad. de Virgílio Ferreira. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleções Os Pensadores).
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Paulo Schiller. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2012.
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