O homem do país azul, de Manuel Alegre
Por Pedro Belo Clara
Aqui temos, diante do olhar, uma
obra que por grande parte da sua breve extensão revela vívidos testemunhos de
uma época já extinta. Relatando-os com tamanho fervor e poesia, como só os
profundamente humanos corações são capazes de o fazer, eleva-os em algumas
situações quase ao estatuto de lendas, não estivesse praticamente a maioria das
incidências que por estas páginas poderemos encontrar relacionada com um
período específico da história portuguesa mais recente.
Trata-se de um livro de contos,
dez no total, lançado em 1989, que firmou o seu autor como um talentoso
prosista. Tendo em conta o seu passado como poeta, e considerando o espaço
temporal a que nos referimos, surgiu como a confirmação do talento de Manuel
Alegre para outros voos literários que não aqueles que, com merecido louvor, já
lhe eram conhecidos. Ademais, 1989 foi igualmente o ano de lançamento do seu
romance Jornada de África, prova fulcral desta marcada mudança de género
praticado pelo autor que receberia, muito em breve, o devido mérito.
O enquadramento que no parágrafo
anterior considerámos pertinente fornecer, ganha uma maior profundidade por
Manuel Alegre já ter sido um autor alvo das habituais considerações de leitura
que neste espaço promovemos. Contribuindo assim para o aprofundamento da sua
obra e detalhes biográficos de maior relevo, o mesmo se partilhou. Pois, embora
Manuel Alegre seja visto, à parte do seu passado político, um homem de grande
flexibilidade literária, revelando um talento e competência extremas no
exercício dos dois maiores géneros, poesia e prosa, no período em concreto tais
experiências constituíram os primeiros riscos assumidos pelo autor junto do seu
público, certamente aumentado após o consumar da bem sucedida aventura. Resta
acrescentar que o presente título alcançou a sua sétima edição, ainda a actual,
exactamente vinte anos após o seu lançamento.
O conto de abertura é o mesmo que
nomeia a obra e, pegando nas ideias iniciais aqui lançadas, aquele que vem conceder
a entoação pela qual, com maior ou menor desvio, todos os outros se irão
pautar.
Consumidas as primeiras linhas,
o leitor mergulha automaticamente no mistério exalado pela sua personagem
principal, mais ausente que presente, bem como num revolucionário tempo de
combate às ditaduras então espalhadas um pouco por todo o mundo, do fascismo
aos regimes de índole militar, uma década de celebração dos ideais de
democracia e liberdade, da esperança numa nova manhã para o mundo e de homens
de aura tão icónica quanto Ernesto “Che” Guevara: os anos sessenta.
É, no fundo, um louvor festivo
ao vivido naquele tempo tão peculiar que o autor, sob a forma de uma grande
alegoria, parece querer oferecer aos seus leitores. Então, brinda-nos com uma
personagem tão carismática quanto obscura: «Ninguém sabia ao certo quem ele era
nem de onde tinha vindo» – uma descrição que pela simplicidade assenta sem
qualquer mácula sobre o pano da narrativa. O enigma dos enigmas é fermentado a
tal ponto que realidade e fantasia se conjugam sem que o leitor se aperceba do
momento em que perdeu o pendor distintivo de ambas. Tudo o que se sabe a
respeito, tendo o autor efectivamente convivido, ou não, com alguém assim nos
cafés de Paris, uma autêntica cidade-refúgio à data para milhares de exilados
políticos, é a frase-chave que o revolucionário envolto em brumas usa quase com
o mesmo refinado estilo da mais famosa criação de Ian Fleming: «Sou de um país
azul». E acrescenta-se: «Podia ser italiano, argentino, eslavo, magrebino, era
difícil de dizer, tinha um rosto moreno e uns olhos cinzentos» – sem que nada
de significativo se adquira, a não ser o nome, provavelmente falso: Vladimir.
A verdade é que parece não ter
existido tumulto social ou movimento de guerrilha no mundo onde o dito não
participasse. Ou, pelo menos, que não houvesse rumor do seu envolvimento. Será
efectiva a suspeita? Pois, por outro lado, dado o negrume desses céus de
outrora, «era um tempo em que se acreditava pela necessidade de acreditar»,
onde heróis e mártires seriam certamente figuras que, ao surgirem, dariam um
extraordinário impulso aos movimentos rebeldes, armados ou não. Se a torpidade
quotidiana era uma dura realidade, a fuga teria de ser necessariamente
ilusória, adornada pelas mais românticas personagens: paladinos da justiça, da
liberdade e do amor.
Vladimir poderia, assim, ter
sido um deles. Mas a sua figura, mesmo que misteriosa, adquire neste curto
conto uma faceta real deveras impressionante. Não só pelo passado de Manuel
Alegre, que pela maioria dos seus mais fiéis leitores e admiradores é sobejamente
conhecido, como pelos traços de personalidade que de diversas situações se
depreendem, encaixando perfeitamente a personagem no lote das “coisas reais”. O
que daí sobra serão certamente questões que jamais encontrarão resposta à
altura. Contudo, não deixa de ser curioso o seguinte facto: a meio destas
páginas surge-nos a referência a um poema de Wallace Stevens a partir de um
livro que o nosso herói revolucionário oferece ao narrador (e autor?), poema
esse cujo excerto serve de inscrição à obra. Quem acredita em coincidências?
Em todo o caso, Vladimir
desempenha um papel relevante nesta narrativa de forte inclinação poética, onde
certos laivos de patriotismo também se fazem sentir. É, pois, ele quem antecipa
a revolução em Portugal através do crescente conflito com as colónias em África
e, mais tarde, telefona ao narrador para comunicar a tão esperada queda do
regime – e consequente retorno de inúmeros exilados. Com a sua decisiva participação,
a democracia voltava ao país de Camões. Mas será correcto dizê-lo? Uma coisa é
certa: não se arrisca a perder o cariz enigmático agora tão perto do fim : «Lisboa
é uma cidade azul».
A toada autobiográfica que, como
já referimos, descortina-se com maior ou menor certeza em diversos momentos
deste livro, ainda que o mais provável seja o imiscuir, em instantes
específicos, da fantasia no esparso rio da realidade, faz-se presente com maior
claridade no conto que sucede ao de abertura: “A senhora do retrato”.
Embora não
possua a crueza sentimental de outros que em breve abordaremos, assume-se um
conto recheado pela bruma mística daquelas figuras que, graças a um destino mal
fadado, acabam, a bem da honra ou bem-estar da família, omitidas pelos membros
mais velhos das mesmas. Mas, é bem verdade, um retrato a óleo pode na fértil
imaginação de uma criança aventureira despertar uma miríade de perguntas, quase
sempre incómodas para quem só anseia que o passado permaneça amordaçado cinco
palmos abaixo do solo.
«Os retratos
a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as
pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar
verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes».
É o que aqui
se sucederá. Quem adivinha que revelações podem surgir de tamanha indagação?
Talvez até actos sobrenaturais possam ocorrer, formas assombrosas a saírem de
quadros durante a noite para vaguearem pelos corredores da casa que os guarda…
Dado que o conto faz referência expressa a certos autores russos (a tia
Hermengarda, que tinha o quadro exposto na sua morada, privou de perto com Lev Tolstoi),
perguntamo-nos: onde já antes vimos em tal literatura esta ideia de figuras
saindo das molduras que as enquadravam? De quadros como objecto de imenso
fascínio, quase feitiço?
Há,
portanto, uma nova linha que agora se descobre: não obstante a intenção poética
dos contos, mais vincada nuns do que noutros, e o traço que se adivinha com
polvilhos autobiográficos, vem a lume uma certa inclinação para os motivos
fantásticos. Pois este conto não será, digamos, “filho único”. Páginas adiante,
encontramos um outro que, apenas pela notoriedade da sua epígrafe, não consegue
ocultar a referência clara a que remete o seu leitor: “Nevermore”. Embora
possamos desde já excluir da equação o famoso corvo de Edgar Allan Poe, dado
que o conto, provavelmente um dos mais breves de todo este breve livro, encerra
em si um episódio de contornos românticos ocorrido em São Francisco, Estados
Unidos, protagonizado por uma jovem que em seu ser tanto tinha de enigmático
como de invulgar e encantador – a poesia rebelde das almas livres, bem se vê.
Seguindo a
mesma toada, encontraremos o desconcertante “Pessoa e Nenhum”, conto dedicado a
António Cobeira (1892 – 1959), um escritor e jornalista que privara de perto com
Sá-Carneiro e, claro, Fernando Pessoa. Em determinada ocasião, Urbano Tavares
Rodrigues escreveu a respeito: «um dos poetas tangenciais à tendência
saudosista-nacionalista (…), os poetas de Orpheu (...) tinham-no como um dos
seus, não tendo embora colaborado na revista» (cf. Eugénio Lisboa, Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. III, Publicações Europa-América, 1994). O facto curioso
prende-se aqui com a evidência de tal figura ter sido professor do próprio
Manuel Alegre nos seus tempos de liceu.
O conto em
si, não obstante a sua subtil extrapolação para referências sobre a
transcendência da identidade do indivíduo por forma a abraçar o que de mais universal,
ou até de divino, pulsa em si, de igual modo aproveita a factual evidência que denuncia
a presença de um lado mais obscuro na personalidade de Fernando Pessoa, comprovado
desde logo pela sua atracção pelo ocultismo e pela missão de determinadas ordens
secretas. Aliás, o encontro entre narrador / autor e a personagem que se diz
chamar “Nenhum”, todo ele digno de estranheza, revela-nos como Pessoa ansiava,
em realidade ou fantasia, entrar numa das tais sociedades, cujo nome até se não
omite: os Rosa-Cruz. A ligação torna-se mais clara quanto relembramos, para o
caso, o seguinte poema de Pessoa: "No Túmulo de Christian Rosenkreutz". Para que
não sobrem dúvidas, sublinhamos as suas derradeiras linhas:
Calmo na
falsa morte a nós exposto,
O Livro
ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai
Rosaecruz conhece e cala.
E tudo, ou
quase, se terá dito. É, claro, provável que o autor de tudo isto se tenha
apropriado para então moldar a matéria do seu trabalho, mas quem poderá afirmar
que bases reais não sustentam aquele invulgar encontro numa leitaria da Avenida
António Augusto de Aguiar, em Lisboa? Sem dúvida, pensamos já nos encontrar em
seguras condições para o afirmar, a artificiosa ocultação dessa linha divisória
entre relato verídico e criação artística torna-se uma das principais valências
desta obra.
A partir dos
mesmos motivos também se identifica uma outra linha de desenvoltura competente,
uma espécie de subproduto desse esforço criativo: o misticismo com laivos
metafísicos. Ainda que as pinceladas sejam de uma aguarela muito diluída (não
mais que os aspectos centrais da questão), tais tornam-se passíveis de
identificação em contos como “O outro lado” e “O aviso”.
Se no
primeiro o descortinar poderá ser quase óbvio, já que relata a história de um
homem envolvido em lutas secretas contra o regime opressivo do seu país (uma
vez mais salta-nos à memória os movimentos clandestinos de esquerda,
nomeadamente comunista, que operavam em Portugal com maior vigor nas décadas de
sessenta e setenta), em que dada a alta tensão das operações subversivas o
mesmo perde por mais de uma vez o seu controlo mental, despoletado pela
travessia de uma ponte, quase contactando assim com o “outro lado” da
existência material humana, experiência essa que se repetirá, até atingir a libertação
dada pela sua transcendência. De certo modo, trata-se de um personagem
repentinamente assolado pela ideia da morte e pelo vazio que esta, em regra,
comporta:
«Talvez fosse
simplesmente o medo do outro lado. A ponte dava-lhe um significado por assim
dizer metafísico. Deixava de ser a Margem Sul, perdia os nomes e os contornos
do concreto e passava a ser o Outro Lado (…) abstrato e branco e, portanto,
aterrador».
Já o segundo
conto agora enumerado enche-se de pressentimentos sobre o mesmo facto, a morte,
pressentimentos esses erguidos quase em forma de presságios agoirentos, embora
ignorados por quem sente o seu manifestar. É a história onde Peter, provavelmente
um amigo sueco do autor, falece vítima de um acidente de viação, desenlace já
antes, como falámos, pressentido pelo mesmo: «Acabo de ouvir um sinal de
morte». E não só, acrescente-se, dado que é subentendido a estranheza de um
mal-estar naquele que, dias depois, estará morto – a estranha sensação das
coisas que se pressentem sem que um nome às mesmas se consiga dar.
Não
poderemos terminar esta nossa discussão sem antes nos referirmos ao belíssimo e
intenso conto, escrito em estilo de missiva remetida, ou não, a alguém cujo
nome permanecerá oculto (embora a sua figura se consiga adivinhar) e que na
perfeição se encaixaria com os prováveis sucedidos, tanto num nível exterior
como interior (ocorrências factuais e pensamentos e sentires do personagem
envolvido), aquando da partida de Manuel Alegre para o seu exílio político.
Se juntarmos
os indícios que o texto nos oferece e os compararmos com as notas biográficas
do autor, situamos o acontecimento muito provavelmente nos finais dos anos
sessenta. Tendo em conta o que foi dito, a epígrafe do conto não se estranhará:
“A última noite”. Talvez se construa de palavras que na realidade do autor
ficaram por dizer ou que só muito mais tarde foram ditas, mas todo o conto é,
por si só, um impressionante relato de um homem que, sem o prever, torna-se
obrigado a abandonar casa e família. Deixemos estas linhas aos nossos leitores,
pois elas, por si só, no seu brilho apressado e aflitivo, dirão certamente
tudo:
«Não sei se
me estás a ouvir, não sei se me estás a ler, deves saber o que se passou, só
não podes saber que tinha começado uma carta para ti, eram uma três da manhã,
foi o Joaquim que veio avisar-me, bateu à janela do meu quarto e disse: Fuja
depressa que eles estão aí. Não pude sequer despedir-me, vesti um casaco e meti
a carta no bolso, foi tudo o que levei comigo.
(…)
(…) vou
ficar aqui a ouvir o teu rumor, não sei se é ilusão, parece-me ouvir-te dizer o
meu nome muito baixo, sei que estás aí, de te não ter ter-te-ei sempre,
passaram vinte anos, tanto, tão pouco. Amanhã partirei».
Mesmo breve,
como em diversas ocasiões ao longo deste texto tivemos oportunidade de referir,
é esta uma obra de conteúdo sólido que atesta, pelo seu peculiar fulgir, a
polivalência literária do seu autor. Depois dela, muitas outras em estilo
prosaico (conto ou romance) se seguirão com igual ou maior sucesso,
consolidando, sem dúvida que sobre, Manuel Alegre como um dos mais versáteis e
competentes autores vivos portugueses, ainda que se conheça bem a habitual especificidade
da sua temática. A prova do que se diz encontra-se, por exemplo, na outorga que
no passado mês de abril lhe foi feita: o Prémio Vida Literária. Justamente,
atrevemo-nos a acrescentar.
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