O Gênese da Anfitriã

Por Ester Chaves

Pieter de Hooch. "Paying the hostess".

Aquele era o dia perfeito para ela reagir, já que tantas vezes não tinha tido tino para outros assuntos que não fossem relacionados à casa, agora estava diante de uma oportunidade; ia receber visita. Logo ela que sofria tanto porque era sozinha, não sabia o que fazer de si e da sua solidão, imaginava-se ganhando uma amiga. Talvez futura cúmplice. Como se é quando se têm amigos? Nunca o soube. O que a gente faz após o chá? Jogam-se cartas, assiste-se a um filme ou joga-se um inocente dominó? A resposta era um fiapo de tecido preto na roupa preta, o exercício de lavar pratarias e deixá-las como espelhos d'água dava ao metal uma outra luz que não a iluminava nessa hora, era um brilho que não respondia nada, apenas a confundia como a opacidade da pergunta.

Ela era fanática anfitriã, dessas que fazem o próprio sabão e trazem os panos da cozinha asseados como roupa de baixo. A casa imitava direitinho o jeito dela e a expurgação dos antigos palácios. Era organizada como uma sinfônica; os móveis negros e obedientes ficavam tão serenos enfileirados na sala que mais pareciam tocar o chão polido com perícia, na ponta dos pés. O único quarto trazia uma tela abstrata enorme, que ela mesma pintara num de seus rompantes de artista. A cama arrumada esperava pela hora da rendição de seu corpo miúdo. Os objetos da cabeceira ignoravam a soberba dos frascos de perfumes que se mantinham apáticos em cima da cômoda. A cozinha denunciava sem culpa sua solidão, tão reduzida, escondia-se entre dois cômodos. Como um abismo entre duas montanhas. Talvez a visitasse mesmo só na hora da grande fome. Estendia-se um corredor cheio de fotografias ao longo de suas paredes e, em seu final encontrava-se uma espécie de altar, onde se via o Cristo mutilado e outros santos cujos milagres se podia duvidar, pois eram de médio porte, ficando quase todos sumidos diante da grandeza da cruz do Salvador.

Tão logo a visita entrou, a anfitriã perdeu a voz. O fato de a visita ter comparecido a chocara, estava sendo engolida pela ansiedade de não saber o que vinha primeiro. O beijo de boas-vindas, o chá ou o jogo. Passeou pelas três possibilidades desordenada, embaraçando-se um pouco; o beijo agora ou depois não faz muita diferença, pensou, também não posso beijá-la a todo instante. Se a convido para tomar um chá agora ela pode recusar dizendo que acabou de tomar um no caminho. O jogo também não, pode soar como imposição, não quero fazer papel de chata. Sentaram, entreolhando-se um pouco, como se no calor da expectativa uma delas fosse arranjar coragem para se adiantar numa palavra ou num gesto. A anfitriã enguiçara, seus olhos perderam o foco, procuravam vestígios, ela estava colhendo cada resíduo da sombra da outra para poder enfim se restabelecer e voltar de novo a ser uma pessoa. Em vão, cada tentativa era um passo na enchente, que começou a transbordar, alagando o sorriso da convidada. A água invadindo o palácio, ela inundada até o meio das pernas, e a outra esperando. A enxurrada trazia à tona a sujeira que ela não conseguia sugar com seu olho-aspirador. Estava se afogando no próprio vício de querer ser limpa. Era inverno e a mulher em meio ao dilúvio, tentando separar o que podia salvar, o destino todo ultrapassando o limite, derramando água suja no futuro da outra. O futuro era o baque, as mãos tateando a resposta, o rosto comprimido à espera do tapa, a porta aberta e, a essa altura a água não era mais sinal de pureza. Pouco a pouco se foi estabelecendo a ordem; a tarde voltava com esforço a seu início, a rua descoberta retomava seu ritmo, o vento dava uma trégua, na casa somente o silêncio... era o gênese... a outra chance da anfitriã. A convidada refugiada na sala parecia rir-se toda ao folhear uma revista, enquanto a dona da casa entre a montanha e o abismo riscava o fósforo, certa de que serviria o café.

***

Ester Chaves é escritora brasiliense, (1979). Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pós-Graduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poético-musicais. Já teve textos publicados em jornais e revistas. É colunista nos sites “CONTI outra, artes e afins", “A Soma de Todos os Afetos” e “Escritos Meus”.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler