O fascismo nasce da falta de leitura
Por Rafael Kafka
Quando li Admirável mundo novo de Huxley há uns dez anos não imaginava que viveria em um mundo que odiasse os livros, que os vissem como algo inútil, nocivo. A massa de não leitores brasileiros para mim se explicava e ainda se explica pela rotina cheia de trabalho e vazia de dinheiro que muitos de nós temos de passar diariamente, complementada com uma vida sem incentivo à leitura e outros processos sociais mais amplos. Imagine isso, caro leitor: você é um trabalhador braçal, do varejo ou autônomo, áreas em que mais vi empregados em minha rotina de morador de periferia. Passa umas dez ou doze horas por dia indo e voltando do trabalho e trabalhando. Chega em casa, precisa dar atenção à família e, muito provavelmente se for mulher por ser cobrada a isso por nossa estranha sociedade patriarcal, terá de fazer uma quantidade imensa de tarefas que não deixam tempo para mais nada.
No máximo, você se sentará em
frente à TV, verá aquele jornal que vende a imagem de imparcial e depois aquela
novela para relaxar ou o futebol do fim de noite para ter alguma emoção na
vida. A leitura não foi algo apresentado a você, leitor, como um elemento
significativo da vida. Leitura é vista por você como um ato de quem estuda e
pobre que precisa trabalhar e não tem tempo de refletir sobre as profundezas da
vida não tem muita paciência para isso de ler.
Esse é o pensamento dominante em
bairros de periferia ao longo do país. Por isso mesmo, coisas como o fechamento
do Ministério da Cultura causaram pouca comoção, para não dizer nenhuma, entre
os setores mais frágeis de nossa sociedade. Essas pessoas vivem sua vida de
labuta e suor criando suas próprias formas de cultura, como bem mostram o funk
carioca e o tecnobrega paraense. Elas não precisam, ou vivem pensando assim, da
ajuda de ninguém para sobreviver e ter cultura, ainda mais quando nem mesmo
simples escolas e hospitais funcionam para dar dignidade a sua vida.
Pego-me a relembrar os anos
anteriores de minha vida quando morava em um cubículo com minha mãe e meus três
irmãos. É de se imaginar, caro leitor, que em um espaço pequeno e cheio de
pessoas sempre haverá muitos conflitos. Sinceramente, não sei como consegui
manter nesses anos todos, uns dez, o hábito de leitura. Provavelmente, eu
sempre tive uma noção muito forte do quão miserável era a vida das pessoas as
quais apenas podiam se preocupar com o que comeria no dia seguinte, pessoas que
viviam em prol de algumas horas de descanso no fim de semana para verem seus jogos na
TV, ou os programas de auditório, tomando uma cerveja se fosse possível. A vida
daquelas pessoas e a minha era uma vida enclausurada, fechada em si mesma,
desesperadora.
Cheguei a ter brigas com minha
mãe, senhora analfabeta e trabalhadora, que me pediu em diversos momentos que
largasse os estudos para trabalhar e ajudar na casa. Minha mãe nutria o
pensamento comum nas pessoas mais pobres de que quando uma criança ganha um
corpo mais mirrado deve trabalhar para ter seu sustento. “Estudo é coisa de
gente rica que pode se dar a esse luxo”: sempre me soaram assim aquelas
críticas. Foram anos tentando provar para minha mãe que mesmo escolhendo uma
profissão como a de professor, tão pouco valorizada em nossa sociedade, era pelos
estudos e pela leitura que eu poderia me dar uma vida melhor e ajudá-la de
alguma maneira. Mas eu não culpo minha mãe. Eu a entendo e no lugar dela com a
condição de vida por ela tida provavelmente eu faria o mesmo. Quando se tem
fome, a reflexão e o prazer estético se mostram inúteis, ainda mais quando o
jornal te mostra que o mundo vai de mau a pior e novela indica um conforto que
não poderemos ter jamais.
Por conta de tudo isso, nunca
imaginei viver em um mundo como o de Huxley, odioso pela leitura. Mas hoje,
cada vez mais me deparo com isso, enquanto rumamos para um contexto cada vez
mais totalitário e formado por opiniões fechadas em si mesmo. Há inclusive um
livro chamado Como Conversar com um
Fascista?, da filósofa Márcia Tiburi, que espero ler em breve e que discute
isso. Há um texto escrito para uma revista na qual a moça é colunista que
sintetiza, de certa forma, as ideias do livro homônimo e Eliane Brum fez uma
análise bem interessante do título em um texto o qual mescla crônica e resenha
de forma bem interessante.
O que se evidencia dos textos de
Márcia e Eliane é que o fascismo é uma atitude mais do que um pensamento
político. O fascista é um ser que vive preso em um conjunto de visões dadas e
pré-determinadas, negando-se a romper com elas quando confrontado com opiniões
divergentes. Fascistas são seres que defendem na forma de discursos preocupados
com a ordem social a segregação para que se sintam protegidos dos perigos da
mudanças dos tempos. Fascistas odeiam gays, mulheres empoderadas, transexuais,
negros e índios aguerridos dizendo que a desigualdade contra a qual essas
pessoas lutam não existe e é tudo fruto da imaginação de mentes coitadistas e
sem espírito de luta.
Fascistas criaram o ódio pela
leitura sem perder a pose. Dizem que tudo o que está ao redor deles na forma de
leitura é doutrinação ideológica de esquerda comunista. O curioso é que
perguntar a eles o que é comunismo pode gerar uma série de respostas bem
curiosas e engraçadas e percebemos que no desespero de defender uma opinião
política qualquer eles nem se preocupam em procurar formar bases para
argumentos sólidos. Isso se liga ao que discuti usando Milan Kundera há alguns
meses em outro texto: a imagologia. Há um ponto em que a defesa de um argumento
se torna menos importante do que a defesa de uma imagem e quando esse ponto é
atingido a lógica parece não fazer mais muito sentido.
Geralmente, o fascismo surge
quando vivemos tempos de crise como os atuais. Quando a crise econômica piora,
a crise de identidade de nossos tempos, como aponta Stuart Hall em seu
fundamental A Identidade Cultural na
Pós-Modernidade se revela com mais força e respostas que gerem em nós o
sentimento de precisão ontológica são procuradas desesperadamente. O sentimento
de pertencimento se torna mais do que nunca almejado e a exclusão do que soa
diferente ganha poder, pois o diferente causa a náusea incerteza e por isso
mesmo deve ser odiado. O fascista se prende em seus conceitos pré-acabados para
sentir algum tipo de paz, o qual a meu ver se configura mais como um fingimento
de paz, algo bem longe de existir, como bem revelou o massacre de Orlando e
tantos outros: o conservador fascista é alguém ameaçado pela incerteza e seu
discurso não é convincente para demonstrar sua segurança em relação a si mesmo.
Por isso, o fascista precisa gritar, esbravejar, matar para sentir um pouco de
felicidade diante de si.
Ao contrário de minha mãe e
outros pobres, seres fascistas vendem a ideia da inutilidade da leitura pelo
medo da reflexão. Quando leem, leem sempre os mesmos tipos de texto de fontes
duvidosas ao extremo. O fascista disfarça o seu temor e sua preguiça diante do
novo e do diferente fazendo-se de orgulhoso e de não facilmente doutrinado,
mesmo que sua fala toda seja a cópia cuspida da fala de seres que pregam
barbaridades terríveis por aí. Todos são doutrinados, menos ele, que não dedica
nem a milionésima parte de seu dia a ler algo produtivo e formar bons
argumentos para debater temas como, por exemplo, a cultura do estupro.
Nesse sentido, o fascismo vivido
em nosso país se revela cada vez mais como um problema de falta de educação de base a fomentar o hábito de leitura crítica. Pessoas leitoras têm maior
tendência a ouvir os argumentos alheios e entender a lógica dos mesmos para
somente então emitirem uma opinião favorável ou contrária. Pessoas não leitoras
ouvem em algum canto algo que soe convincente e passam a replicar o conteúdo e
a forma daqueles discursos para defender suas verdades. Por conta disso, é cada
vez mais necessário a existência de espaços onde se discutam profundamente o
oferecimento de leitura a pessoas mais carentes para que elas comecem a se
empoderar e discutir de forma embasada o que se passa em seu mundo. Muito do
fascismo de nossa sociedade ganha poder justamente porque as pessoas pobres
estão atoladas em um cotidiano sem reflexão crítica, mas não por culpa delas e
sim de uma sociedade que as ignora sistematicamente.
Enquanto as coisas não mudam
nesse sentido, cabe a nós fazermos como Eliana Brum e Márcia Tiburi recomendam:
falarmos com os fascistas, questionarmos sobre seus posicionamentos, fazermos
com que eles entendam e reflitam sobre suas próprias contradições e comecem a
analisá-las mais a fundo. Somente assim podemos sonhar com uma sociedade mais
democrática e cheia de trocas de ideias sadias, sem que o ódio tome ainda mais
as ruas e os espaços com seus diversos tipos de manifestação.
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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