Manhattan transfer, de John Dos Passos
Por José María Guelbenzu
Manhattan transfer, de John Dos Passos,
foi publicado em 1925. É um dos grandiosos romances da grande década da criação
literária e, como terá lembrado anos depois seu autor, um exercício que teve
como inspiração – sobretudo quanto à técnica narrativa – o Ulysses, de James Joyce e The
wast land, de T. S. Eliot, além dos experimentalismos com colagem no cinema
do diretor russo Sergei Eisenstein. A grandiosidade da obra reside ainda na
importante repercussão nos meios literários e entre os leitores mais
importantes de seu tempo. No fim, se tratava de um romance social que
apresentava algumas características mais audaciosas e inovações quanto à
criação que fascinaram os leitores e escritores acostumados e obrigados às
formas mais antigas da narrativa.
Manhattan transfer era um exemplo vivo
de um novo modo de narrar e, por conseguinte, um verdadeiro guia para todos
aqueles que tratava de enfrentar a triste e medíocre realidade circundante de
um modo distinto ao do realismo tradicional, um modo mais próximo aos das novas
formas que transcorriam fora das cerradas fronteiras da criação. A mescla de
modernidade criativa e narrativa social oferecida por Dos Passos era uma lufada
de ar fresco e um nicho de ideias e de novidades para os escritores e os
leitores do momento.
Justamente por
esse lugar, é uma obra que tratou de romper com as fronteiras entre o romance
de cunho estético e o de intervenção social e foi um dos precursores para uma
série de outras movimentações nas tectônicas da criação literária mundo afora –
seja o chamado realismo social, os interesses de escritores por incorporar as
técnicas criativas de James Joyce, seja o romance de Faulkner, outro terremoto
entre escritores e leitores, seja o experimentalismo do nouveau roman, seja as novas exposições do romance
latino-americano. É, por essa força, o sustento de que é – não apenas essa mas
grande parte da literatura de Dos Passos – uma obra construída para a
eternidade, ainda que não tenhamos alcançado e nem nunca alcançaremos esse
lugar; o eterno é sempre aquilo que mais longe o eco de uma existência já
alcançou. Aqui estando, cabe a pergunta: qual, além do que aqui pontuamos, é a
importância de um livro como Manhattan
transfer para os dias de hoje?
O romance,
entre todas as novidades estéticas, estabelece uma: o protagonista não é uma
personagem de carne e osso no estilo tradicional, uma dessas personagens cuja a
vida lhe é dirigida para um final feliz ou desgraçado, seja sob o manto do
drama ou o da comédia. O romance está cheio de personagens ou, se melhor
olharmos, de algumas personagens e muitas figuras. Na linha da modernidade
literária instaurada por Baudelaire, o verdadeiro protagonista de Manhattan transfer – a cidade de Nova
York – é estritamente novo. Recordemos que Baudelaire se referiu à cidade
massificada, produto da impressionante mudança de vida social que trazia consigo
a Revolução Industrial, como o “deserto do homem”, fazendo alusão à qualidade
de anonimato que caracteriza a massa urbana. Só aquando o foco narrativo segue
uma pessoa concreta esta é capaz de sair do anonimato natural da cidade e
converter-se em protagonista; então a cidade atua como um ciclorama ante o que
se desenvolve como conflito; até aí já havíamos chegado. Mas, no caso do
romance de Dos Passos, tenta-se ir mais além: a busca pela integração entre
cidade e personagem, o parece um contrassenso. O que tentou o escritor com
isso?
Baudelaire,
em seu famoso poema “A une passante” fez algo assombroso: mostrar a realidade
do anonimato urbano ao personalizar um encontro entre dois transeuntes. Um deles,
a voz, é só uma voz; o outro (a passante) apenas aparece alguns segundos antes
os olhos do primeiro. A criação do anonimato urbano como presença real é
conseguida graças ao admirável uso da fugacidade como forma de desejo e de conhecimento.
Pois bem, quando nos referimos ao protagonista do romance de Dos Passos estamos
nomeando algo muito peculiar: o que se chamou the lonely crowd. A multidão solitária. O grito da cidade. Isto é,
sem dúvida, o que Dos Passos se propôs. E isto é o que fascinou os leitores
mais atentos de seu tempo e os mais atuais. Fazer protagonista uma cidade! Foi uma
descoberta, verdadeiramente uma descoberta.
É evidente
que o caminho elegido pelo autor se parece muito ao que musicalmente se conhece
pelo nome de polifonia. Um romance polifônico será aquele construído por muitas
vozes. Não são vozes uníssonas, até mesmo porque a escrita é uma sucessão e não
uma sobreposição, mas bem pode simular essa possibilidade. O leitor de Manhattan transfer perceberá logo que a
polifonia é só uma aparência que se desgasta progressivamente até cair reduzida
a uma impressão final. Na direção contrária, o que cada vez mais se acentua no
leitor é que a técnica que abre caminho no romance é outra: é o que poderíamos definir
como contrapontística. Essa será a que dispõe as cenas e, em consequência a que
marca o ritmo. O assunto tem toda a lógica, pois é o único modo de buscar essa
impressão polifônica sem abandonar a parte substancial do que até então se
considera o eixo de qualquer romance: a personagem.
A narração
se resolve contraponteando sequências de numerosas personagens, muito pouco
delas são motivos principais – de modo especial, só duas – e, já que estamos
com a metáfora musical em mente, criando a sensação de compor uma sinfonia de
nosso tempo. A ambição, como se verá, é extraordinária e aproveita recursos
diversos do modo que mais convém ao escritor. Se a isto acrescentamos as preocupações
social de Dos Passos, teremos então, um novo modo de narrar o que usualmente
tem sido denominado “um afresco da história”, desta vez dando várias passadas
além do que planejou o verdadeiro criador do romance contemporâneo, Gustave
Flaubert, quando pela primeira vez conseguiu anular o relato da História com o
dos sentimentos pessoais de forma perfeitamente satisfatória em A educação sentimental.
John Dos
Passos introduz em seu romance, além disso, uma série de novos elementos. Alguns
se apresentam por si próprios, isto é, não mesclados, mas justapostos, são os
casos das manchetes de jornais ou as entradas lírico-realistas que se
apresentam como introdução. Outro se integra na forma do romance até o extremo
de introduzir-se em sua própria expressividade: o cinema. Antes, falamos sobre
as sequências; pois bem, o ritmo do romance é cinematográfico, mas não apenas
isso; as descrições do que vai acontecendo se referem sempre à interioridade ou
a exterioridade das personagens. O que acontece no interior delas estão narradas
por um narrador que atua como alter-ego de cada personagem, uma vez que é capaz
de nos falar sobre sua interioridade. Mas, as que estão vistas deliberadamente de
fora, aquelas em que o pensamento da personagem não conta para a narrativa, são
descrições de gestos cuja capacidade de sugestão está estabelecida por sua
visualidade, não por seu pensamento. E aí é onde bem pode dizer-se que Dos
Passos introduz na narrativa um avance expressivo de valor incalculável e cujo
uso será determinante ao território do romance desde então. Não queremos dizer
que tenha sido o primeiro, mas é o primeiro que trabalha a fundo as
possibilidades expressivas desse método de narrar. A mistura de ritmo
sequencial e visual está plenamente realizada no romance em questão e com
excelente intuição.
O que
acontece é que se a intuição, o olfato narrativo de Dos Passos, funciona com a
precisão de um felino que segue sua presa, o que não é seguro dizer que o mesmo
se dê com o uso dos materiais narrativos do romance. O impressionismo do
escritor, que funde suas raízes de amor pela pintura e a poesia – ele mesmo escreveu
poemas – é uma arma de duplo calibre e em Manhattan
transfer afloram também os lapsos. De onde vem isso? Só do recurso narrativo
do cinema? Substancialmente todos podem acreditar que não apenas daí; é algo
que provém de uma atitude do autor: o desejo de fazer um romance coletivo
obriga em excesso a presença das personagens, por exemplo. E a atitude do autor
é uma recusa global a uma cidade que representa um modo de relação contaminada
pelo capitalismo selvagem, modelo que seguramente é o favorável ao fragmento desde
sua condição de admirador do individualismo.
Isto é, a
recusa do autor ao sistema é o condiciona a construção de sua obra, que se
reflete na construção das suas personagens. O grande crítico estadunidense Alfred
Kazin destacou certava vez que não se tratava tanto da “vasta pauta de uma
cidade, mas de uma caprichosa absorção de monstruosidades”. Não é possível
sustentar essa afirmação de um modo tão contundente, mas não restará dúvidas de
que a recusa ao sistema condicionou severamente o comportamento e, sobretudo, o
aspecto com que Dos Passos trabalhou a criação das personagens, todas
encarregadas de passar a impressão de lonely
crowd para o seu leitor. Todas as personagens estão impregnadas por uma
sorte de desgraça coletiva. É relevante o feito de que se movam sob dois
referentes: o dinheiro e o desejo de ir a outro lugar; o primeiro, como ânsia
que liberta ou mata; o segundo, como evasão ansiada, como esperança de voltar
ao mundo de onde saíram para viver na cidade. De fato, a única personagem que não
pode avançar nem retroceder nem tem a menor expectativa de alcançar sequer
alguns dólares para subsistir sem mendigar é Bud Korpening, e por isso acaba se
jogando no rio.
Primeira edição de Manhattan transfer, de John Dos Passos |
Talvez seja
essa desgraça coletiva a que se refere Kazin quando fala da coleção de
monstruosidades. Mas, é melhor acreditar
que o que obriga a seguir esse tópico ou, para sermos mais precisos, seja a visualização
da debilidade do homem frente à seu próprio projeto de criação mais complexo.
Dos Passos é vigoroso escrevendo e isso o livro de um dos piores danos causados
pelo tema em questão que é a suavidade. As debilidades, do contrário, afetam
muitas das personagens – algumas patéticas até o extremo, como Anna – ritmo a
qual conduz para zonas de confusão que nunca são resolvidas. E depende, também em
excesso, de suas duas personagens principais, Ellen Thatcher e Jimmy Herf, nos
quais o leitor deve se fixar para construir uma linha de referência para o
narrador, embora sejam, digamos, um tanto mal elaboradas porque estão afetadas
em maior proporção que as demais. Isso, no entanto, não é um grande atrativo de
um romance que seja como for, não só está pleno de sequências esplêndidas desde
o início – veja a figura de Bill Thatcher contemplando o fogo de um edifício próximo
a si e o encontro com o que colocou fogo – bem como o esforço por levantar num
romance coletivo não cai apenas como uma promessa do esforço: estão aí todos os
meios empregados para isso, inclusive se formos a detalhes mais simples como a
questão ambiental com a presença de objetos, toda sorte de objetos, nas ruas,
nas casas, que são decisivos para realização de um look de época que permanece em suspenso, como se numa parábola de
leitura sempre atual.
O
impressionismo – veja o resultado admirável deste modo descritivo na cena do
acidente de Gus McNiel em seu carro de leiteiro –, o sentido da elipse – uma contribuição
decisiva para o novo ritmo narrativo – e a exibição de recursos – diálogos,
monólogos, descrições, pessoas e tempos verbais – acabam por criar uma, se não sólida
por inteiro, ampla e concluinte visão dessa multidão solitária que vive neste
deserto do homem que é a cidade moderna. Uma pavorosa falta de amor se espalha
sobre todas as personagens, sobre a cidade inteira, onde só o sucesso e o
dinheiro marcam a singularidade e onde a insegurança é o caldo de cultivo de milhões
de seres humanos. O poder de convicção desta visão se mostra forte no livro.
Há uma
conclusão que está além de Manhattan
transfer é onde queríamos chegar com essa leitura; a obra resiste bem ao
tempo, mas suas imperfeições (por poucas que sejam) ajudam a ver claramente
como o romance é uma espécie de ensaio geral do modo expressivo que John Don
Passos quer chegar e que chegará com Paralelo
42, 1919 e O grande capital, obras escritas entre 1930 e 1936 e que formam a
chama Trilogia USA, um dos trabalhos de ficção mais notáveis do romance
estadunidense do século XX.
O que
adquire sua plenitude na trilogia é a integração do âmbito social no âmbito pessoal
por meio de uma narração que carrega com perfeição o emprego da colagem. Há duas
seções recorrentes que são as denominadas camera
eye e Newspaper. A primeira é uma
espécie de escrita automática em seu aspecto extremo, mas perfeitamente
controlada, onde o que era as introduções lírico-realistas de Manhattan se transformam numa sorte de
vivências pessoais do narrador, uma intervenção direta do interior do maro em
que está se fazendo o relato. A outra é a definitiva inserção do jornalismo como
complemento contrastante do estritamente narrativo. Tudo isso unido pelas
complexas e vigorosas histórias das personagens trazidas a lume, configuram uma
grandiosa narrativa que, sem nenhum titubeio, tratam de realizar um retrato da
democracia estadunidense, em que o individual e o coletivo mostram-se como
formas para implantação de uma sociedade de massa sob o olhar desencantado, mas
não por isso menos imponente, do autor.
Com isso,
Dos Passos volta ao princípio do caminho estabelecido por Flaubert em A educação sentimental. A riqueza e a
fecundidade daquele ponto de partida alcança uma nova formulação que se
corresponde literariamente com um novo modo de vida. Tudo novo modo de vida
gera uma nova forma de expressão. A passagem de Manhattan transfer para Trilogia USA mostra admiravelmente o
trajeto que vai da concepção desse modo novo e sua plena realização.
* Este texto é uma versão livre publicada inicialmente na Revista de Libros.
Comentários