John Cheever

Por Javier Morales Ortiz




“Não dissimular nada, nem ocultar, escrever sobre as coisas mais próximas da nossa dor, a nossa felicidade; escrever sobre a minha falta de jeito com o sexo, o sofrimento de Tântalo, a magnitude de meu desalento – acreditar entrevê-lo em sonhos –, meu desespero. Escrever sobre os néscios sofrimentos da angústia, a renovação de nossas forças quando outras acabam; escrever sobre a penosa busca do eu, ameaçado por um estranho em vigília, um rosto apenas entrevisto pela janela de um trem; escrever sobre os continentes e o que povoa nossos sonhos, sobre o amor e a morte, o bem e o mal, o fim do mundo” (John Cheever)

A leitura é um belo diálogo com o presente e com o passado, com escritores que morreram há anos e com outros que compartilham conosco o confuso momento que temos vivido. Acumulamos leituras, incorporamos novos autores à nossa família literária, relevamos outros, nunca totalmente. Além de outras coisas, somos o que já lemos, o que lemos. E sei que hoje não seria o mesmo escritor, também a mesma pessoa, se em minha vida não se houvesse encontrado a obra de John Cheever.

Tinha vinte e poucos anos quando o li pela primeira vez. Conhecia-o, claro, mas naquela época minhas leituras da literatura estadunidense estavam noutro lado: Edgar Allan Poe, Herman Melville, William Faulkner, Don DeLillo, Paul Auster. Até que um dia conheci uma garota, grande leitora, de quem logo me tornei amigo. “Você tem que ler Cheever”, me disse. Estávamos em sua casa e, com grande cuidado, como se me entregasse uma joia frágil, preciosa, retirou de uma pequena estante abarrotada de livros os dois volumes dos Contos de Cheever – era uma velha edição, há muito esgotada.

Já em casa, deitado no sofá (uma de minhas posições favoritas para ler), comecei a folhear o livro, como alguém disposto a saborear um bom vinho. Primeiro li o prefácio escrito pelo próprio Cheever. “Estes contos remontam ao tempo de minha honorável dispensa do exército, o fim da Segunda Guerra Mundial. Estão em ordem cronológica, se não me falha a memória, e os textos mais embaraçosamente imaturos foram eliminados. Às vezes parecem histórias de um mundo há muito perdido, quando a cidade de Nova York estava impregnada de uma luz ribeirinha, quando se ouviam os quartetos de Benny Goodman no rádio da papelaria da esquina e quando quase todos usavam chapéu”. Li o primeiro conto do volume – “Adeus, meu irmão” –, uma história com reminiscências bíblicas, uma reinterpretação do mito de Caim e Abel. E, em seguida, me dei conta de que havia encontrado um tesouro, com uma paisagem que me acompanharia durante muito tempo, com uma nova porta que me levaria a um lugar desconhecido, mas onde poderia me sentir reconhecido como escritor e como irmão. E já não pude parar. Borges dizia que um bom livro é aquele capaz de lhe transformar. Não só um livro, também um conto.

Os primeiros contos de Cheever foram publicados em 1978, quando o autor tinha 68 anos. Como sublinha o escritor e crítico Rodrigo Fresán, “o Grande Livro Vermelho – em referência à sua capa já clássica – foi um autêntico acontecimento editorial, uma gloriosa exceção ao dito fitzgeraldiano de que não há segundos atos nas vidas estadunidenses. Diferentemente do que aconteceu com boa parte dos escritores de sua geração, que publicaram a melhor e mais importante parte de sua obra antes dos quarenta e cinco anos, Cheever viveu uma muito dura e obscura Idade Média marcada pelo rancor, o alcoolismo e problemas diversos; mas, o crepúsculo dos últimos cinco anos de sua vida foi marcado pelo fulgor e o calor de um grande, ardente e renascentista verão”.

Quantas vezes terei lido algumas de suas melhores histórias? O já citado “Adeus, meu irmão”, “O camponês de verão”, “A geometria do amor”, “Reencontro”, “O nadador”... Este último, talvez o seu mais conhecido – seja pela vibrante leitura que fez em 1977, seja pela adaptação para o cinema com o impressionante Burt Lancaster no papel de Ned. Em qualquer uma delas nos encontramos com uma prosa requintada, fulgurante, em que há sempre um céu por descrever. Uma prosa que, sob a superfície das palavras, esconde e disfarça um mundo, às vezes sinistro, um mundo de Martines, casamentos em crise, sonhos destruídos, férias familiares, piscinas e trens com destino a Nova York. 



Cheever tinha escrito mais de cento e cinquenta páginas de uma história sobre a subida ao céu e a descida aos infernos de um herói do subúrbio, o elegante e otimista Nerry Merril, quem decide regressar a nado à sua mansão atravessando as piscinas de seus vizinhos, como se fossem um rio imaginário, o rui Lucinda. Insatisfeito com o resultado do que havia escrito, decidiu converter o projeto de romance num conto que hoje é clássico. Com ecos d’A Divina Comédia, da Odisseia, nessa assombrosa história de ostracismo, Cheever, como seu admirado Fitzgerald, nos fala da passagem do tempo e das limitações impostas às nossas vidas, da passagem inexorável dos anos, da culpa e do castigo, da fragilidade de nossa existência, por muito seguros que estejamos de nós mesmos.

Nessa história, narrada em voz alta pelo próprio Cheever, a típica voz de fumante impenitente, de uma gravidade arrastada, quando o autor interrompe a leitura, ouvimos como respira, como se lhe faltasse ar; quando retoma a leitura, com rapidez, sem emoção, é como se tivesse pressa ou não se sentisse à vontade nesse papel de leitor ou de personagem pública. Embora saibamos que gostava desse recente protagonismo como recordaria mais tarde um de seus filhos. Cheever viveu a celebridade como uma prosa quase infantil.

Quando esse áudio foi gravado, Cheever havia deixado definitivamente a bebida, um vício que quase lhe mata, não só fisicamente. É lendária a bebedeira que compartilhou na famosa Escola de Escrita de Iowa junto a alguns de seus admiradores, o também escritor, professor e alcoólatra Raymond Carver. Esteve aí como professor convidado e em suas aulas se limitava a ler para os alunos seus contos e incentivava-os a escrever um diário.

“O mais maravilhoso da vida parece ser que quase desconhecemos nossas possibilidades de autodestruição. Talvez a desejemos, sonhemos com isso, mas nos dissuade um raio de luz, uma mudança de vento”, lemos num apontamento de seu próprio diário – prática que não apenas incentivou mas cultivou – de 1958. No caso do escritor, a dissuasão parece ter-lhe vindo não apenas pela bebida, mas por outro vício, o de poder se refugiar nas palavras. Outra entrada, esta de 1966, diz – “A morte de Fitzgerald me fez chorar, como me fez chorar a história da morte de Dylan Thomas. Esta noite não recordo o que aconteceu depois da cena” – e continua, “Ao pensar em Fitzgerald me vem que é larga a lista dos titãs literários que se autodestruíram, Hart Crane, Virginia Woolf, Hemingway, Lewis, Dylan Thomas, Faulkner... Alguns como Eliot e Cummings sobreviveram, mas são poucos. Irei findar nessa crucificação do romancista diligente? O escritor cultiva, propaga, eleva e infla sua imaginação, seguro de que é seu destino, sua utilidade, seu aporte ao conhecimento do bem e do mal. Ao inflar sua imaginação faz o mesmo com sua capacidade para a ansiedade e se converte inexoravelmente em vítima de fobias assustadoras que só se aliviam com doses mortais de heroína e álcool”.     

Mas, quando o escritor leu seu conto para o rádio era um homem que não havia se perdido para o que chamou de fobia assustadora. Havia sido capa da Newsweek por seu romance Falconer, considerado pela crítica como uma de suas melhores obras e, anos antes, em 1964, capa da Time, um presente reservado a poucos escritores ao longo da história da literatura estadunidense contemporânea. Não sabia ainda, mas no ano seguinte, em 1978, quando são publicados os Contos, ganhará o Prêmio Pulitzer; sua obra então será um êxito de vendas, de boas críticas e por fim poderá olhar de igual para igual para figuras como Saul Bellow, seu distante e eterno rival, e entrar definitivamente no parnaso das letras em seu país.

“Toda vez que leio uma resenha sobre Saul Bellow tenho náuseas. Como grande, selvagem e agitado que é este país e cheio de putas e boxeadores que está; e aqui estou eu, encalhado num velho rio no crepúsculo e na deterioração de um quarentão da administração”, acrescentou em seu diário em 1953.

A voz por baixo de sentenças como estas é também a voz de um homem profundamente religioso, puritano, atormentado por seus conflitos morais, contraditório pai de dois meninos e uma menina; a voz de alguém que se protege por trás de uma pose e tem ocultado durante muito tempo sua homossexualidade. Cheever, que se vangloriava de proceder de uma família de ascendência tradicional, fugia com frequência para os subúrbios e se adentrava na Nova York mais sórdida, na dos banheiros e dos garotos de programa. Até à maturidade manteve relações com um amante; uma relação fixa que o fez renovar sua fé na vida. Sua companheira, Mary, uma mulher inteligente e culta, procedente de uma família liberal, sempre suspeitou e quando um jornalista perguntou numa entrevista pelas infidelidades do seu companheiro, respondeu (cito de memória): “Sim, é verdade, era infiel, mas sempre voltou para casa no jantar”.

A voz que conta a odisseia do nadador Ned, sua queda, é a de um homem que começa a saborear o sucesso, depois de anos como escritor de segunda fila, com contos pensados para preencher os espaços deixados para publicidade, desejando que talvez um dia, alguém com gosto pela boa literatura, alguém que mate o tempo na sala de espera do dentista, por exemplo, o leria e veria algo de luz em suas palavras, uma sorte de redenção.

Embora tenha colaborado com vários meios, foi no New Yorker onde desenvolveu a maior parte de sua carreira como escritor, o meio que lhe permitiu viver da literatura, um ganho heroico para alguém que havia abandonado a escola com dezesseis anos. Cheever assegurava que o expulsaram. Realidade o não, o certo é que dessa experiência parece ter nascido seu primeiro conto, “Expelled”, que despertou o interesse do editor Malcolm Cowley, quem soube ver aí o gérmen de um grande escritor.

O conto foi publicado no The New Republic e, o mais importante, o escritor recebeu dinheiro em troca por isso. Neste conto vemos já os traços do melhor Cheever, filho de um pai fracassado e uma mãe autoritária e empreendedora (era ela quem usava calças em casa), amargurada pelo seu destino, pelo seu casamento, a que reinventava de mil maneiras a existência. O jovem John começou seu drama pessoal quando soube que havia sido gerado depois de uma bebedeira e era o fruto de uma gravidez não desejada, diferentemente de seu irmão mais velho, Ben, com quem o escritor teve, supostamente, sua primeira relação homossexual.

A literatura foi mesmo sua tábua de salvação, seu disfarce para afrontar os dissabores da vida. Numa entrada para seu diário, em 1948, anotou: “Não nasci numa verdadeira classe social e desde muito cedo tomei a decisão de infiltrar-me na classe média como um espião para poder atacar de uma posição vantajosa, só que as vezes me parece que esqueci da minha missão e tomo meus disfarces muito à sério”.



Cheever era um homem de múltiplas faces, como seus contos, o gênero no qual mostra o melhor do seu talento narrativo. O que não quer dizer que seus romances sejam inferiores. Falconer (onde encontramos inquietantes marcas autobiográficas numa singular descida aos infernos) marcou sua consagração como romancista, embora, particularmente, goste mais de Parece mesmo o paraíso, seu último título do gênero, porque mostra um lado mais esperançoso.

“Esta é uma história para se ler na cama, numa casa velha, numa noite de chuva. Os cães dormem e os cavalos de sela — Dombey e Trey — fazem-se ouvir nos estábulos do outro lado da rua suja, para lá do pomar. A chuva é suave e necessária, mas não desesperadamente. Os lençóis de água estão num nível satisfatório, o rio que corre perto está cheio, os jardins e os pomares — estamos num virar de estação — estão convenientemente irrigados. Quase todas as luzes estão apagadas na pequena aldeia perto da cascata onde, antigamente, o moinho produzia riscado de algodão”.

Assim começa esta fábula protagonizada por Lemuel Sears, um elegante ancião que de certa forma bem poderia ser o espelho no qual o próprio Cheever gostaria de ter se olhado, quem padecia já dos sintomas do câncer que acabaria sua vida. Quando acreditava que tudo estava perdido, Sears voltará a apaixonar-se e, como um Quixote, decide combater os que contaminam a lagoa de seu povoado. Apesar de ser seu testamento literário, e de certa forma de vida, creio que Parece mesmo o paraíso deve ser um dos primeiros romances contemporâneos que mostra a preocupação com o meio ambiente, como sua degradação está intrinsecamente ligada à própria degradação do homem. Se alguém soube descrever a paisagem, os entardeceres, a viagem das nuvens, esse alguém foi Cheever. Como não ia importar o que aconteceria com ele?

Mencionei seus diários em várias ocasiões. Há anos que me acompanham – formam parte de minha paisagem vital e literária. De vez em quando o pego, leio aleatoriamente alguns dos seus apontamentos. Que fez Cheever em tal ano? Como nascemos num mesmo dia (uma curiosa coincidência), às vezes me pergunto como era quando tinha minha idade. Sempre invejei seu estilo, a magnitude e profundidade de sua obra. Mas nunca sua vida.

* Tradução livre de "'Tienes que leer a John Cheever', me dijo" publicado em Letras Libres.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596