Jaroslav Hašek
Jaroslav Hašek
foi um homem que demonstrou pouca coerência ao longo de sua curta vida. Até
1911, sem haver chegado aos 30 anos, fingiu sua própria morte; quando, recém
convertido no escritor mais popular da então Tchecoslováquia, morreu de
verdade, em 1923; seus conterrâneos não acreditaram, pensaram que estava
fazendo outra de suas piadas. Já havia tentado suicidar-se atirando-se ao rio
do alto de uma ponte de Praga e já havia passado uma temporada no manicômio, dado como morto outra vez quando foi para a guerra, tudo de grande proveito para sua literatura, mas nada útil para sua vida de
fanfarrão e beberrão.
As aventuras do bom soldado Švejk é sua
obra-prima; serviu nas mais diversas variações do tipo "o que se dá para fazer com uma obra literária": de inspiração para filmes, séries para televisão,
quadrinhos, óperas, musicais etc. Na Europa central e do leste, o soldado Švejk,
o mais idiota e imbecil de seu regimento, é uma personagem célebre como o Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes, ao lado do qual muitos veem a falta cordialidade,
a ilogicidade, o idealismo e a itinerância como pontos de relação. Não seria o
caso de se questionar sobre a importância que a cultura espanhola teve até o século
XVIII na Boemia tcheca que deu origem ao Império Austro-Húngaro? Fica ao
interesse dos curiosos buscar responder a pergunta e o romance de Hašek pode
lhe servir como ponto de partida ou um dos elementos favoráveis à confirmação da
tese.
A obra tem
boa presença no cenário literário nacional; foi traduzida há dois anos e
publicada pela Alfaguara Brasil. Já o começo da narrativa dá ao leitor a
perfeita ideia de como se seguirão essas desventuras.
A criada de Švejk – ele ainda não se alistou no exército – lhe comunica que Ferdinand
foi assassinado. Švejk responde que só conhece dois Ferdinands, o criado de uma
farmácia e o que recolhe cocô de cachorro, e nem lhe passa pela cabeça –
estamos em 1914 – que sua empregada fala é do atentado que matou Ferdinand de
Áustria, em Sarajevo, acontecimento-estopim para a Primeira Guerra Mundial.
Nesse
começo, o leitor é também informado que Švejk ganha a vida vendendo cães. Aí começam
as perturbadoras coincidências entre a personagem e seu criador, que também viveu
durante um tempo vendendo cachorros, perdidos ou roubados, e falsificando suas
características para ganhar mais dinheiro. Noutro momento, Hašek escreveu sobre animais numa revista de temática do gênero, mas descobriram
que as raras e curiosas espécies sobre as quais falava com rigoroso detalhismo
eram suas mais completas invenções.
Hašek, como Švejk,
combateu durante a Primeira Guerra Mundial, e de sua experiência extraiu personagens
e detalhes que incorporou ao muito satírico livro, que ri do militarismo e
contempla a guerra como um contínuo despropósito.
Hašek teve uma prolongada
estadia bélica e, no fim, foi prisioneiro dos russos e vagou por vários campos
de detenção. Já então, além dos textos para revista sobre animais, havia
exposto suas ideias como anarquista e nacionalista. Não se sabe ao certo até
hoje como se arranjou nos anos do horror, mas acabou nomeado – ao término da
Revolução Soviética – comissário do Exército Vermelho e casando-se com uma russa.
Se a primeira
situação foi um tanto problemática para ele, a segunda, digamos, que não: Hašek
estava casado desde 1910; sua companheira era a escritora tcheca
Jarmila Mayerová e com ela teve um filho. Mas, esse casamento, no real sentido do termo, foi breve,
pelo mal comportamento de Hašek; agora, quando se casou novamente na Rússia, ele
ainda não havia se divorciado da primeira companheira; logo, converteu-se em
bígamo.
Os pais de
Jarmila haviam feito o impossível para a separação dos dois e a proteção de sua
filha, já que Hašek, além de tentar se matar afogado, passar pelo manicômio e não
sair dos bares, havia fundado um partido caricatureso que era usado para sacanear
dos demais partidos e havia terminado as eleições de 1911 com um resultado vergonhoso.
As linhas mestras de seu ideário ficaram registradas no livro História do Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites Moderados (tradução livre), cujo título é o mesmo que Hašek
deu ao seu partido.
Não é fácil
imaginar que o escritor, que teve dois irmãos, tenha sido filho de um modesto
professor de Matemática. Ou talvez sim. Talvez a ordenada e precisa mentalidade
do pai tenha influenciado, pela sua condição contrária, na divertida e
trapalhada forma como viveu Hašek. O matemático, por sua vez, partilhava de
algumas das situações do filho – seja a precariedade econômica em que vivia,
seja as constantes mudanças de domicílio e morreu quando Jaroslav era uma
criança, de uma embriaguez desproporcional com licores.
Hašek não
deu com nenhuma sorte desde sua juventude. Não concluiu os estudos, furtou um
diploma na escola comercial, foi desajeitado boticário, esquentou a bunda numa
cadeira como bancário e se entregou de vez à vagabundagem como um viajante sem
ofício nem benefício. Mas, dotado, desde sempre de um talento sarcástico, o
mesmo que o consagrou e o mesmo que lhe permitiu sobreviver, traduziu esse cabedal
de peripécias através da escrita; começou publicando contos em vários jornais e
todos tiveram sempre boa acolhida.
Quando
voltou da guerra e da Rússia com sua segunda companheira, seu país já era outro
e então dedicou-se freneticamente à escrita. É quando nascem As aventuras, obra que não chegou a ser integralmente concluída,
mas lhe deu fama, dinheiro e uma cadeira na posteridade. O plano era que a
narrativa ganhasse forma em seis volumes, mas chegou apenas ao quarto. Gordo demais,
foi atacado por uma insuficiência cardíaca que acabou sua vida. Em 1923, tinha
só 39 anos. O quarto volume foi concluído pelo amigo Karel Vanek, quem ainda cometeu
a audácia de escrever o quinto e o sexto – para desagrado de muitos. Mas, em vida
e obra, não se pode acusar o escritor de desinteressante.
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