Uma visita guiada ao Ulysses, de James Joyce
Por Pedro
Fernandes
Quantos
livros nascem a partir de uma só obra literária? Muitos. Tantos quantas forem
as possibilidades de leitura e o desvelamento de situações, temas, forças,
sentidos produzidos pela criação e apreendidos pelo leitor crítico. Em alguns
casos, o enigma de uma obra, por mais que seja explorado – e muitas vezes até
de forma repetitiva como se averigua em muitos dos trabalhos acadêmicos sobre
escritores que chamaria aqui de obsessão de um público leitor –, permanece
adormecido durante largo tempo. Muitas vezes é preciso que alguém distanciado
desse endeusamento que acomete até o mais frio dos críticos pela figura do
escritor ou pela sua obra, afinal a empatia de natureza pessoal tem se firmado
como um critério de sustentação da escolha do estudioso por determinado livro e
autor, para que uma leitura realmente criadora dê novo fôlego à obra em
questão.
Sim, a
tarefa do crítico não é a de tornar palpável aquilo que o leitor comum não
consegue compreender sobre um livro ou um escritor, mas ressignificá-lo aos olhos
desse leitor. Também não é apenas construir volteios ao redor de uma obra, mas
aprofundar-se nela. Nesse procedimento, evidentemente, é um gasto de
competência perder-se na elaboração de uma visão mirabolante sobre o que se lê.
Costumo pensar que os críticos que se põem a elaborar teses as mais complexas,
sobretudo do ponto de vista de construção linguística sobre uma obra ou
escritor usurpam o lugar deles e não cumprem com uma de suas funções: tornar
acessível sua compreensão e construir vias de acesso à obra ou ao escritor
estudados. É preciso ver que o trabalho do leitor crítico muito se confunde com
o trabalho do professor: sua tarefa não é ser um complicador, mas um
facilitador, alguém que constrói e suscita no leitor médio possibilidades de
reflexão e descoberta dos meandros da criação.
Se muitas
são as leituras que uma obra literária é capaz de produzir, poucas são as que
suscitam no leitor crítico a necessidade de compreensão sobre os enigmas que
nelas encerram. Com exceção dos textos mais antigos que, à medida que o tempo
os encerram numa conjuntura contextual, cobram a renovação de suas forças de
significados, poucas são as obras contemporâneas (desde o advento do romance)
que inauguraram a necessidade constante de que se cunhem estratégias de
reflexão geral sobre seu organismo e funcionamento. Depois do advento do
romance mais afastado da conjuntura histórica e social, o que mais se tem visto
são experimentações gratuitas e fajutas com a linguagem. Sem ser demasiadamente
criterioso é possível dizer que se contam nos dedos de uma mão nomes que terão
alcançado introduzir nesse território da criação ficcional algo que servirá aí
um novo tour de force para a criação
literária.
Entre esses
poucos sempre será lembrada a ousadia de James Joyce, o irlandês que não
inventou a roda para a narrativa, mas alcançou dar vitalidade a uma série de
recursos experimentados de forma diversa por alguns escritores que o
antecederam ou mesmo que lhe foram contemporâneos e com isso tornou-se centro
de um sistema com ramificações diversas. De modo que, mesmo quem nunca leu uma
obra como o Ulysses, pela qual sempre
o irlandês será lembrado, refugia-se ou resguarda-se na consideração desde
sempre levantada sobre a dificuldade do romance. Ulysses tornou-se símbolo das obras intransponíveis, intragáveis,
de acesso apenas aos mais ousados; isso é quase um consenso universal porque é visível
em toda parte.
A ideia
desse romance como o mais difícil ganhou contornos de lenda e os que o
atravessaram se vangloriam com os louros da fama de ousados, tal qual o
escritor galgou depois da publicação do livro. Poucos, entretanto, são os que,
de fato leram a obra; poucos ainda os que guardem interesse em lê-la. E muitos
estão na reserva de quando poderão
lê-lo. O romance de Joyce estabeleceu-se – não para sempre – como o desafio que
qualquer leitor pode assumir de si para si na sua trajetória. Eu estou nessa
reserva: não o li e sou um dos que guardam esse desafio para um dia. Vez ou
outra, como agora, contemplo a lombada da edição que dorme na estante e me
pergunto quando assumirei a coragem que me falta para despertar essa fera. Mas,
guardo comigo uma certeza: o Ulysses
não é um monstro. Pode ser intragável. Mas não é difícil. Como também não é
fácil. Um leitor que diz a segunda sentença é tão medíocre quanto o que diz a
primeira.
Sei que não
cabe comparação coerente pela dimensão adquirida pela obra em todos os círculos
literários mundo afora, mas entremos no território das aproximações e
semelhanças, para associar esse lugar
que uma legião de leitores agora ocupam em relação ao romance à situação de
quando ouvia repetida vezes na minha adolescência que a obra de Machado de
Assis era muito difícil ou o que ouvi durante minha graduação em Letras que
Guimarães Rosa é muito difícil e ao lê-los pela primeira vez fiquei procurando
por esse lugar do inacessível e o muito que consegui foi desacreditar dos que
assim pensam e desconfiar daqueles que acreditam o contrário. São obras que
exigem do leitor, cobram dele uma intensa dedicação, um esforço intelectual que
está além da mera ideia de ser objeto de entretenimento; quer do leitor sua
energia para alcançar a vida que merecem e, claro, enquanto não se revela em
sua totalidade, serão eternamente motivos para ocupar a vida de muitos,
sobretudo dos que necessitam não levar desaforo para casa.
Mas talvez
tenha sido a prevalência da ideia do difícil o que me levou ao contato com o
texto de Caetano Galindo – desde já uma saída para os que estão entre o
interesse e o desinteresse por Ulysses
porque se propõe, fazer o que o bom crítico faz, pegar o leitor pela mão e
inseri-lo no rico universo de uma obra. O autor sagrou-se um dos tradutores
mais respeitados no Brasil depois de aventurar-se na ideia de que o leitor
brasileiro precisava de uma nova leitura da obra máxima de Joyce e tratou de
oferecer-nos uma nova tradução. A ousadia de Galindo, não ficou aí. Basta olhar
que depois do romance de Joyce, ele tem se dado ao trabalho de tornar pública –
a tradução é sim um exercício dessa natureza, reafirmo – outras obras
enfaixadas pelo mesmo epíteto da do irlandês, como Graça infinita, de David Forster Wallace.
E, porque
antes de um tradutor, Galindo parece um leitor destemido e interessado, como se
um psicólogo, a enterrar determinadas fobias dos leitores, exercita-se não
apenas num trabalho de revelação da obra sem a necessidade de reforçar o mito
da potência indecifrável. Esse Sim, eu
digo sim. Uma visita guiada ao Ulysses
de James Joyce é exemplo disso à medida que busca se diferenciar das
leituras que até o presente mais reforçaram o enigma que o revelaram ou mais
estiveram interessadas em compor uma espécie de mapa original da criação dessa
obra. Ao se diferenciar do mesmo, o
tradutor nos oferece outros ângulos, outras chaves de acesso para, como o
título enuncia, uma visita ao Ulysses.
Seu trabalho
de leitor destemido atenta contra outra fobia – essa revelada como um mal dele
próprio – a do spoiler. E porque é
impossível livrar-se dele quando se fala
de uma obra, traz antecipações sobre a narrativa para o leitor que ainda não
leu o Ulysses. O que não é, de
maneira alguma – ao menos para leitores como eu que não têm essa fobia – um
deslize do trabalho de tentar podar ao máximo essas revelações. Noto que se cumpre
aqui, indiretamente, dada sua revelação sobre a fobia ao spoiler, a desmistificação desse elemento como um inimigo do revelar
o poder de significação de uma obra. Isso, porque há uma série de outras questões
que só lendo a obra levará o leitor a compreender, como os mecanismos de
funcionamento e construção da narrativa, um dos primordiais, creio, em livros
como o Joyce. O livro em questão é a partilha de uma experiência de leitura –
algo que se assemelha ao jeito de ser da boa crítica; é o registro de uma
constatação: qualquer um pode seduzir-se ou deixar-se seduzir por uma obra do
porte que é o Ulysses e sem grandes
traumas.
Ao fazer a
obra-máxima do escritor irlandês popular não deixa de reafirmá-la como uma obra
que não é para amadores; Ulysses é para
iniciados na obra de Joyce. A constatação é a de como se dissesse que, quem vai
ao seu universo literário pela primeira vez através desse romance, corre o
risco de odiá-lo definitivamente. Essa preocupação do tradutor é possivelmente
a marca para a realização de Sim, eu digo
sim: servir de iniciação ou atalho para uma das partes mais sofisticadas do
universo joyciano. Isso se deixa reforçar quando apresenta como o escritor
aproveitou temas, situações, figuras dos textos que antecedem o seu romance
mais lembrado, embora, claro está, que os livros iniciais desse autor não
significam escadas de acesso à obra tratada no guia. Joyce tratou de, como todo
grande escritor, elaborar um universo literário polivalente e com
singularidades cabíveis a apenas numa determinada obra. Assim, se há elementos
de Dublinenses, Um retrato do artista quando jovem e Exilados que são recuperados no Ulysses
não significa que aqui são produtos de um rascunho mas construção dos chamados
fios, as retomadas, que constituem todas relações em todo um projeto literário.
Compreender essas linhas é uma das estratégias para estabelecer o lugar que a
obra ocupa nesse universo da criação.
Ainda no
início de seu itinerário pelo romance – quando Galindo constrói os alicerces
para suas buscas, que não são eivadas de um academicismo mas não são mera
elucubrações impressionistas porque está sempre amparada pelas bases do próprio
texto que lê – fica esclarecido que o Ulysses
“demanda que os leitores se entreguem a ele e trabalhem com ele”. O que se vê é
justamente esse exercício em Sim, eu digo
sim. Desde o título. Este “sim” é uma senha de entrega do leitor-Galindo ao
universo complexo, porque calcado no mínimo detalhe, elaborado por James Joyce.
O autor faz o que poderia causar enfado nos leitores se as observações tecidas
nesse guia fossem tornadas notas explicativas no romance. E, ao contrário da sua
recomendação de que este, como um guia deve servir para o leitor durante ou
depois a leitura do Ulysses, ouso
dizer que esta pode ser uma obra de encorajamento
ao desafio maior; aos leitores menos abaláveis pelas eventuais revelações de Sim... podem ter não como um guia, mas
uma introdução ao romance. É preferível assim para se pensar que este é um
trabalho que pode ser indispensável aos que já passaram pelo universo da obra, passarão
acompanhados do livro de Galindo ou entrarão nela a partir de suas
considerações. O que só amplia a importância do trabalho do tradutor,
evidentemente.
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