Truman Capote: nem a literatura e nem o jornalismo se escrevem a sangue frio

Por Omar Nieto



Se a tão conhecida narrativa jornalística tem sua origem na crônica literária do século XIX, o termo romance de não-ficção cunhado por Truman Capote tem outra conotação: a intenção de acomodar feitos reais numa estrutura dramática que altere o menos possível a verdade proporcionada pela fonte real.

O mesmo Truman fez a distinção numa entrevista concedida a George Plimpton em 1966, quando se diferencia de escritores-jornalistas como John Hersey (autor da primeira grande crônica sobre a bomba atômica), Tom Wolfe, Norman Mailer, e mesmo Oscar Lewis quem em Os filhos de Sánchez explora a violência de uma família da zona de Tepito, na Cidade do México.

Sobre elas, disse Capote na referida entrevista: “O livro de Oscar Lewis é um documentário, um trabalho de edição das gravações, sem dúvidas, habilidoso e comovedor, mas não é um escrito criativo. Hiroshima (de John Hersey) é criativo – no sentido que Hersey não está descrevendo algo fora de um gravador editando-o –, mas não tem nada a ver com o que estamos falando; Hiroshima é uma peça de estrito jornalismo clássico. Se você se refere a James Breslin e Tom Wolfe, e todo esse grupo, eles não têm nada (ou não no sentido do jornalismo criativo que costumo usar). O romance de não-ficção não deve confundir-se com o romance documental.

A dita entrevista, realizada um ano depois da publicação de A sague frio, deixa ver que em Mailer e Wolfe a intenção sempre foi renovar o jornalismo, enquanto que em Capote foi transformar a literatura, para tanto criou uma forma híbrida. Mailer chamou essa possibilidade “romance como história” e Wolfe “novo jornalismo”. Na direção contrária, Capote batizou como “romance de não-ficção”. Ainda que os três buscam usar as técnicas da ficção para dar forma à realidade sem deformá-la, no caso de Capote a intenção foi, vale insistir, repensar a maneira como se fazia literatura. Como disse o escritor espanhol Antonio Cózar, no Novo Jornalismo de Wolfe as histórias se leem com interesse, mas não deixam pegada, “te transporta mas voltas intacto; não há transformação nem nas personagens nem nos leitores”. Em Capote, não forma de sair ileso. O escritor entendeu com perfeição o problema de trabalhar com dados verificáveis e tentou caminhar no sentido contrário aos seus contemporâneos, apesar de contar a irrestrita admiração de Mailer, quem o considerava “o escritor mais perfeito de minha geração. Não mudaria nem duas palavras de Bonequinha de luxo”. Mas o plano de Capote não era o plantado com esse romance.

Capote buscou, talvez, algo mais de acordo com sua própria vida. Nascido em Nova Orleans, o autor de A sangue frio teve uma infância infernal. Abandonado várias vezes por sua mãe, Lilie Mae, que havia sido Miss Alabama mas que não gozava de boa reputação, Truman se viu forçado a presenciar seus furtivos encontros amorosos com homens que não era Arch Persons, seu pai, que, por sua vez também não era boa peça: irresponsável, vigarista e alcoólatra. Antes de engravidar, Lilie Mae havia se inscrito num curso de administração, mas a gravidez a fez renunciar de seus sonhos. Persons lhe pediu que abortasse, mas ela se negou. E no dia 30 de setembro de 1924, nasceu Truman Streckfus Persons, mas sua infância não seria nada luminosa.

Arch e Lillie viviam em hotéis e pela noite. Antes de sair de casa deixavam trancado o pequeno Truman. “Era um pesadelo diário. Tinha medo de que nunca voltariam. Recordo minha infância como um estado permanente de tensão e medo”, confessou o escritor numa entrevista. “Minha mãe me trancou e jamais consegui sair”, acrescentou. Quando os pais de Truman se divorciaram, Arch assegurou que Lillie havia tido pelo menos 29 relações extraconjugais. Cada vez que sua mãe saía com seus amigos, Truman pensava que o levaria consigo e assim o ritual do abandono se repetia sempre. “Ao fim de três ou quatro dias, voltava. E eu plantava os olhos nesse tempo no meio da estrada, vendo como seu Buick negro se fazia cada vez mais pequeno”. O grau de solidão foi tanto que uma vez bebeu um frasco inteiro de perfume que sua mãe esqueceu. Sua vida só mudou quando José García Capote, filho de um coronel espanhol, conheceu Lillie Mae em Nova Orleans e moraram juntos – foi dele que o escritor herdou o sobrenome para Truman.

Não é exagero pensar que por essa razão Capote sentia um passado em comum com Perry Smith, o assassino da família Clutter, vítimas de A sangue frio. Ambos compartilharam uma vida de abandono e maus-tratos. “É como se Perry e eu houvéssemos crescido na mesma casa, mas eu saí pela porta da frente e ele pela porta de trás”. Como se não bastasse, o outro assassino, Richard Eugene Hickock, também partilhava dessa visão de mundo. As últimas palavras que pronunciou antes de ser executado no dia 14 de abril de 1965 foram: “Só quero dizer que não lhes guardo rancor. Me enviam para um mundo melhor do que esse foi para mim”.

Primeira edição de A sangue frio.

Impossível fazer jornalismo puro com isso. É evidente que o interesse por retratar a vida dos assassinos em toda sua complexidade está mais próxima da literatura que da ética do jornalismo. Isso porque na literatura não há bons e maus. A sociedade inteira é a expressão da condição humana. E justamente para adentrar nela, Capote dotou suas personagens de profundidade. “Eu passei seis anos escrevendo A sangue frio e não só conhecia as pessoas sobre as quais escrevia, mas as conhecia melhor do que conheci qualquer outra”, se referiu numa entrevista. E não só isso: Capote esteve durante esse tempo ruminando conversas sem o ofício de registrá-las em notas. Seus amigos diziam que era possível ler para ele qualquer coisa e ele era capaz de transcrever com “92 por cento de acertos”.

Em 31 de dezembro de 1965, o jornalista Harry Gilroy, do The New York Times, lhe perguntou como havia conseguido aquele efeito literário sobre uma investigação eminentemente jornalística. Truman lhe disse que havia tido que mudar de visão.

Abandonou a comodidade de sua vida de glamour e celebridade para interessar-se no que pensava profundamente a sociedade estadunidense dos anos cinquenta. Preocupou-se em ver que os escritores se fechavam à esfera privada. Antes de A sangue frio “estava muito obcecado com minha própria imaginação”, disse a Gilroy. Então decidiu “viver mais no mundo em que a outra gente vive”. Obcecou-se com a diversidade dos detalhes, suas implicações e arestas. E o fez enquanto levava mais tempo do que o programado para fins de estrito jornalismo. “Aconteça o que o acontecer devo seguir com o livro. Suponho que soará pretencioso, mas me sinto na obrigação de escrevê-lo, ainda quando os materiais que junto me deixam cada vez mais exausto e paralisado para não dizer horrorizado. Cada noite tenho pesadelos”.

Tal foi sua paixão que um dos encontros com Perry Smith na Prisão Lansing, teve um colapso nervoso. De regresso ao hotel, perdeu a capacidade de distinguir as pessoas à sua volta. “Tudo era real por excesso de realidade”, anotou em seu diário. Sem dúvidas, a experiência levou-o a refletir na ideia de “realidade refletida”, um dos ingredientes fundamentais da poética do realismo capotiano. “Toda arte consta de detalhes selecionados, parte imaginários, ou como no caso de A sangue frio, uma destilação da realidade”, diz Eduardo Lago, professor de Literatura Contemporânea no Sarah Lawrence College de Nova York.

Truman Capote, Robert Blake e Scott Wilson  em Holcomb, cenário do crime de A sangue frio e da adaptação da obra para o cinema no final da década de 1960.

Daí que o efeito de profundidade que Capote deu ao povoado de Holcomb, a Perry e a Hickock, escapava ao imediatismo do jornalismo para adentrar-se mais ao literário. Assim se lê em Conversas com Capote, de 1985: “Não escolhi esse tema porque me interessava muito. Foi porque queria escrever o que eu denominava um romance real, um livro que se lesse exatamente igual a um romance, só que cada palavra dele fosse rigorosamente certa... Dediquei-me àquele crime obscuro naquela parte remota do Kansas porque me deu a impressão de que, se o seguisse desde o começo teria os ingredientes necessários para levar adiante o que seria uma razão técnica”.

Em outras palavras, Capote viu naquele terrível caso, “um experimento literário cujo tema elegi... porque convinha a meus propósitos literários”. Mas A sangue frio não foi a primeira obra de não-ficção que teve essa intenção. Nove anos antes, na Argentina, por exemplo, Rodolfo Walsh a partir de uma profunda investigação jornalística escreveu uma obra com as mais precisas técnicas literárias. Isto é, outro híbrido. Operação massacre, publicada partes no jornal Mayoría, em 1957, narra a forma como cinco pessoas são fuziladas a sangue frio pelo regime militar. Walsh foi chamado “o anti-Borges” por sua intenção de desnudar a sociedade argentina, atitude distante da do autor de O Aleph, ainda que Ricardo Piglia o situe com Borges, Kafka e Brecht.

Ao analisar a forma como Operação massacre está contada, Piglia encontra a chave de por que os autores de não-ficção não são só investigadores e jornalismo em estado puro. No livro do argentino, diz o escritor, “Walsh faz ver de que maneira podemos mostrar o que parece quase impossível de dizer... O estilo seria esse movimento até outra forma de enunciação, uma tomada de distância sobre a palavra original”. Mas ainda, a operação “política” de Walsh, consiste segundo Piglia, em “introduzir uma nova perspectiva – um enquadramento – que permite ver de modo diferente o real”. Algo muito parecido com o planejado por Capote.

O escritor Emmanuel Carrère conseguiu também em O adversário, um livro de não-ficção em que conta a história de Jean-Claude Romand, suposto médico francês que em 9 de janeiro de 1993 assassinou sua esposa, seus dois filhos pequenos e em seguida seus pais, crime que levou à convulsão a opinião pública europeia. Carrère, quem já tinha, como Capote, uma sólida carreira literária dentro da ficção com cinco livros publicados e um prêmio literário, se interessou pelo caso e o narrou como no “famoso exemplo de Truman Capote”.

Numa entrevista com o editor e jornalista peruano Diego Salazar, Carrère arremeteu contra a literatura só de imaginação – tão em voga contemporaneamente – questionando a forma como a crítica enfrente a leitura de um livro deste tipo. Carrère assegura que “parece que há gente que não está disposta a entender que se pode escrever algo que seja verdade, que há muita gente que faze conexão direta entre literatura e romance, que considera que a literatura só pode ser ficção”. Em seguida, lembra que uma colega sua lhe perguntou quanto tempo havia levado na investigação de um tsunami relatado num de seus livros. Surpreso, Carrère lhe disse que não era recriação ou invenção, que ele havia estado aí com sua esposa e seus filhos quando aconteceu.

Da mesma maneira, quando em outubro de 2015, foi dado o Prêmio Nobel a Svetlana Alexievich, no mundo desatou uma polêmica: dar o maior galardão literário a uma jornalista de formação? Em seguida surgiram as opiniões categóricas de quem ama os gêneros puros e muitas foram as falas do teor em que se assinala o “absurdo de dar um Nobel a Svetlana” ou “a Academia Sueca confunde o empirismo com a ficção”, atitude purista que não tem cabimento mais em pleno século XXI.

Numa entrevista, Svetlana disse estar consciente de que com obras como Vozes de Tchernóbil havia criado um novo gênero literário, o romance de vozes, por haver entrevista mais de 500 pessoas ao longo de 10 anos. “Gostaria de pensar que isso é um novo gênero. Não é uma simples narração e, ainda sendo tudo não-ficção, está mais próximo da literatura que de outra coisa”. E concordo. Sigo pensando que os limites genéricos na arte cada vez mais serão simples e menos reconhecíveis e esse será o aporte do novo milênio.

Capote foi o melhor exemplo dele. Mas isso não se consegue a sangue frio. Dez anos depois de haver publicado em setembro e outubro de 1965 os primeiros quatro capítulos de A sangue frio, com o título de “Annals of crime – in cold blood”, Capote tentou traçar a mesma rota com “Handcarver coffins: a nonfiction account of na american crime”, onde narra outro crime ocorrido num povoado do oeste dos Estados Unidos, mas já não teve o efeito do anterior; talvez porque de todas suas obras só A sangue frio o havia permitido regressar à infância. “Ninguém saberá jamais como esse livro me esvaziou”, disse numa entrevista. “Se pode dizer que me assassinou. Antes de começá-lo era uma pessoa relativamente estável. Depois, algo mudou em mim para sempre”.

Capote contribuiu na formação de um gênero híbrido não só quanto à sua solidificação. É provável que uma encruzilhada de gêneros lhe havia representado a possibilidade de abordar os dois infernos que via: o de uma sociedade ideal que começava a cair em pedaços, e o de sua própria vida, que formava parte dessa mesma decadência. Estou seguro que nem o romance ficcional nem o sentido fugaz do jornalismo haveriam sido capazes de apagar esses rastros, porque a pureza não tem sentido num mundo atroz. E é que nem o jornalismo nem a literatura pode apresentar-se como entes etéreos ou supérfluos, menos ainda escrever-se a sangue frio.

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* Este texto é uma versão livre para "Capote: ni literatura ni periodismo se escribem a sangue fría".

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