Sôbolos rios que vão, de António Lobo Antunes

Por Emma Rodríguez



Quando António Lobo Antunes participou da Guerra de Angola se dedicava a escrever cartas; cartas nas quais falava de muitas coisas e que nasciam de sua necessidade de comunicar que estava vivo. Para o escritor português os romances que escreve também partem desse desejo. O que faz é colocar-se junto do leitor e dizer-lhe: “estou aqui, contigo, diante deste mistério que não compreendemos, um mistério que nos ultrapassa e que, como dizia Lorca, nos faz viver”. Assim me contava numa conversa que mantivemos na época da publicação de O arquipélago da insónia. Agora, meu o retorno à sua obra se dá com Sôbolos rios que vão, um romance que seduz com aquela perseverança da memória, com os rumores de um passado que nunca desaparece, que se torna presente enquanto exista alguém que siga mantendo suas recordações.

Já ao iniciar a nova viagem estive consciente de que as atmosferas do velho casarão desse “arquipélago”, um casarão cheio de quadros fotográficos, mas vazio de vozes, gestos, das palavras que o habitaram; atmosferas que seguiam em mim com a força dessa literatura que se passa no fundo, com uma suave e imperceptível palpitação, até acabar convertendo-se numa espécie de fértil raiz. António Lobo Antunes volta às estâncias familiares de sua infância, sua infância de interior, mas desta vez a partir de uma circunstância excepcional, seu internamento num hospital, onde foi operado de um câncer há algum tempo, e onde percebeu a proximidade com a morte.

Da impressão de afrontar literariamente esse momento, de buscar a linguagem capaz de expressar suas emoções extremas, era algo essencial para este homem que exerceu a psiquiatria antes de dedicar-se inteiramente às letras e de se converter num explorador dessas pulsões e afetos que nos definem e irmanam na ampla viagem da humanidade, esses sentimentos permaneceram imutáveis e que nos fazem sentir que não mudamos nada enquanto ao nosso redor, fora da essência, os planetas têm seguido girando e se hão forjado sociedades cada vez mais complexas, evoluídas, altamente tecnológicas. “Mas seguimos perguntando-nos pelo sentido da vida e sentindo-nos desconcertados ante a morte”, recorro a outra frase do escritor, noutro encontro, dessa vez quando da publicação de Meu nome é legião, um livro de cariz diferente, menos biográfico, mais coletivo, em que dá voz aos humilhados, aos marginalizados, aos despossuídos. Um livro em que indaga sobre a violência, uma de suas obsessões, e chega a constatar de novo o quão só estamos, o quão pequenos somos ante a imensidão do mundo.

Mas voltemos a Sôbolos rios que vão; deixemo-nos arrastar por suas correntes, sabedores de que o território de António Lobo Antunes não é um território de fácil e cômodo acesso. Nadar em suas águas é como adentrar-se no oceano e sentir a estranheza do primeiro momento, esse frio que nos faz tremer e que nos impulsa a voltar à areia quente. Mas há que seguir avançando, avançando sem parar até o instante em que se chega a perceber a plenitude do contato com o mais profundo, o som da respiração, o azul do céu envolvente, o ritmo do movimento, o afastamento do ouvido e de tudo que não seja a sua própria voz. Vale a pena estar aí e ficar um tempo, como vale chamar à porta do escritor e sentir o privilégio de ser convidado a entrar.

É certo. Desloca um pouco a quem se aproxima dela pela primeira vez, porque é uma obra diferente, inclassificável às vezes, construída pela ruptura. É necessário acostumar-se à maneira de olhar do escritor, a esse tomar sair pela parte irracional, pelo que não pode ser ordenador nem domado. Neste romance, António Lobo Antunes viaja ao seu centro e se mostra nu, sincero, humilde, só e perdido ante a dor, o medo, a busca dessas palavras que, ainda não nascidas, ainda não ditas da mesma maneira nem nunca na mesma ordem de antes, ajudem a entender o que está passando. Como acontece em outros livros do escritor, como O arquipélago da insónia, tudo parece um delírio, um sonho, uma alucinação, um desvario. O homem no hospital é consciente da gravidade de sua situação, olha a chuva cair por detrás da janela e viaja ao passado, à infância, aos diferentes lugares da vida vivida. Quantos destinos, quantas identidades, quantos trajetos até à desembocadura, até chegar a perceber com lucidez o que foi, o que deixou de ser, aquele que se tornou.

A enfermidade, o câncer, é como “um ouriço de castanheiro” que se meteu dentro do corpo, como o ouriço que de pequeno torna-se em árvore. O mecanismo das recordações se coloca em marcha, igual ao relógio que se dá corda, é tudo associações, imagens sobrepostas. A vida em forma de camadas, de substratos de emoções, de sensações, de fragmentos. O homem que jaz na cama, às expensas dos profissionais que cuidam dele, não pode frear a dor, do mesmo modo que o menino não pode frear a bicicleta na primeira vez que seu tio ensinou a conduzi-la. E o cheiro do piso da enfermaria é igual ao da farmácia do povoado onde escutava contar histórias de lobos no inverno. E a enfermeira que se aproxima para apagar a luz do cômodo lhe faz lembrar sua mãe aproximando-se da porta de seu quarto para fazer o mesmo.

A escuridão aparece e o homem está só, igual quando pequeno ficava sozinho com seus medos. E aparecem os avós, o pai, toda essa gente que foi e que segue sendo no fundo de seu coração, como parte dele enquanto sua existência se prolonga. Todas as sensações voltam, se repetem, porque somos aquilo do que nos nutrimos, porque as primeiras experiências, as primeiras descobertas, os primeiros desejos, estão aí, no poço profundo, e emergem sempre, em situações similares.

“que misteriosa a vida, davam-lhe banho na selha da cozinha e o desconforto de estar nu à vista da empregada, pequeno, magro, submisso tal como na enfermaria pequeno, magro e submisso de novo”, sublinho este trecho comovedor.  “se a mãe encostasse a bochecha à dele, mesmo idosa, mesmo cega, a palavra filho a fazer sentido, não a palavra morte, enquanto ia caminhando com os rios sem nada que o estorvasse, acompanhado pelo pasodoble de um saxofone remoto, na direção do mar”, elejo esta outra passagem porque diz muito da maneira de narrar, de contar, de construir, do escritor. Um estilo de enorme plasticidade, não-linear, em desacordo com as sinalizações convencionais do texto, feito de interrogações em busca de respostas, de repetições que são como flashes de lucidez, à maneira de um poema. Um poema longuíssimo que cheio da potência das metáforas, de imagens, e ante o qual chegamos a perceber que tudo cobra sentido, que de alguma maneira se deu um pequeno milagre que nos conduz a um foco de luz capaz de iluminar traços de verdade que antes éramos incapazes de perceber.

Nesta ocasião a linguagem da poesia, do mais íntimo, se mistura com o frio vocabulário do hospital: das salas de cirurgias, de radiografias, sondas, soro, botijas de oxigênio, as receitas, análises, agulhas, diagnósticos, terapias. Uma mistura explosiva que funciona, enfrentados todos esses termos aos de outros dicionários, dicionários de sentimento, da natureza: veredas, árvores, perfume de eucaliptos, líquens e rochas do rio da infância... E o escritor impõe seus contrastes, seus ritmos, como quem dirige uma orquestra, um todo que nos faz girar, nos envolve e nos fascina.

O fluxo da memória de António Lobo Antunes é caudaloso e selvagem. E a melhor maneira de segui-lo é deixar-se levar pelo ritmo das ondas que se elevam e acabam sempre por cair, por essa prodigiosa melodia que se ascende e descende por sendas diversas, por pensamentos díspares, por uma sábia combinação de pausas e de silêncios. “Escrever é estrutura, por carne a um delírio”, volto a recuperar uma dessas falas em que me dizia que nunca partia de respostas, só de perguntas; que muitas vezes lhe parecia que estava caminhando por um sonho; que em ocasiões só tinha a impressão de que os livros estavam no ar, independentemente do autor que lhes desse forma; que a maior parte das vezes a escrita era uma ofício de paciência, mas que quando encontrava a palavra exata para expressar uma emoção, um sentimento, ele, que não era homem de lágrimas, não podia evitá-las.

Tampouco quem se aproxime de suas narrativas pode evitar as lágrimas. Lágrimas em certo sentido satisfatórias, refrescantes. No caso de Sôbolos rios que vão, ainda que partindo da dor, da enfermidade, não é a dureza do que se conta o que mais emociona. São os momentos de beleza que se alcançam, essa evocação do acontecido, nada sensível apesar de tingido com as cores da doçura e da melancolia, são forças de compreensão que se abrem em meio de uma memória ziguezagueante que em determinados momentos ganha espessura e bifurcações capazes de se tornar difíceis de decifrar. Não queiramos entender tudo, não busquemos argumentos. Acaso a vida tem um roteiro fixo? Acaso a memória responde como um guia?

“tentava dar nome às formas e não achava os nomes, estava e não estava acordado como quando parece compreendermos o sentido do mundo que no instante de o compreendermos se esfuma”, divaga o protagonista. “devolvam-me os pinheiros, a serra, a infância que trouxe para o hospital e me pertence”, emite seu grito mudo. Tudo sucede em seu interior, um longo monólogo que só escutam os mortos, os que se foram. Eles são mais reais que as visitas. Eles enviam mensagens reveladoras, acompanham-no por paisagens onde aprendeu a intuir o sublime, a descrever o desejo, a paulatina transformação do seu corpo, o despertar do sexo. O sorriso do jovem de dezesseis anos que foi e aí retorna.



Parece que não acontece nada no romance, mas na verdade se revelam muitas coisas nesse transcorrer da memória em que o protagonista manuseia em busca de si próprio. “Entenderás quando cresceres”, lhe diziam na infância. Parece que não acontece nada, mas dessa imersão sai a frota dos afetos que não ficaram esquecidos; as primeiras decepções, por exemplo, a do pai que engana sua mãe com a criada e a quem nunca voltará a gostar da mesma maneira de antes, os primeiros abandonos, o do tio querido que vai para a Espanha para trabalhar e nunca mais regressa. E as mortes dos mais queridos que não voltam do outro lado, do invisível. E as recordações desse primeiro amor que o abandonou e que segue como importante no traçado de sua biografia, de sua existência.

São os acontecimentos-chave na vida, mas além das circunstâncias de trabalho, dinheiro ou êxitos, aqueles que têm realmente um valor verdadeiro. Esses momentos capazes de iluminar tudo. “Tantos segredos e tanto assunto suspenso”, pensa o narrador enquanto recolhe os fragmentos de toda uma vida. “que coisa impossível de entender o tempo”, o escutamos dizer. “O quarto não mudou, as luzes permaneciam iguais, os enfermeiros ocupavam-se dele no ritmo do costume com as palavras do costume e no entanto a impressão de se achar no centro do que não sabia o que era e de que a vida dependia, sem nada que ver com a doença e tão apagado pelos anos que não lograva encontrá-lo, a chave capaz de girar na porta que conduzia a ele mesmo...”, seguimos.

Alheio à modismos, às listas de mais vendidos, António Lobo Antunes ergueu um particularíssimo território, seu oceano, título a título, encontro após encontro. É por isso que pode descer até esses fundos no que ainda é temor, vingança, o sentimento de indignação, de humilhação. Frente a uma sociedade que dá às costas ao que dói, que segue adiante sem deter-se ante os que sofrem, ele se atreve olhar de frente aos rostos da solidão e a atravessar com palavras a ponte até a morte. Pode fazer porque foi tocado com o dom da escrita e, sobretudo, porque aposta pela vida, pela vida consciente.

“O que de verdade me inquieta é a resignação. Esse momento em que alguém decide parar. Meu pai morreu no em que parou e se sentou numa cadeira olhando o mar. Algo dentro dele mudou. Penso nos esquimós que sentam no gelo e penso na maior parte da gente que está sentada no gelo. Essa gente morta sem saber. Que vidas tão mal empregadas! Somos casas com muitos quartos, mas só somos capazes de viver em dois ou três. Temos muito medo do que está dentro de nós”, recupero agora parte do que me disse o escritor numa conversa distante.

O que ele tinha medo, que medo pode ter um homem que não se senta no gelo?, lembro que lhe perguntei. E me respondeu que tinha medo da sua violência interior, uma violência que não soube que existia até ir para a guerra, quando se encontrou com tanta gente jovem e boa, mas com uma enorme capacidade de causar dano se fosse o caso. “Então aprendi que a maldade convive com a bondade. Aprendi a ser muito prudente na hora de emitir juízo sobre os outros”, disse. Foram palavras, apreciações que se prenderam em mim num momento em que percebia que estava rodeada de gente no gelo, ainda não era capaz de lhe dizer as palavras justas.

A literatura de António Lobo Antunes tem a capacidade de colocar essas palavras justas, iluminadoras, como recém-nascidas em suas mãos que juntas transformam sentidos. Seus livros são uma aposta pela vida, sim, uma intenção de percorrer todas esses quartos sobre os quais fala. “sua vida cheia de passados e não sabia qual deles o verdadeiro, memórias que se sobrepunham, recordações contraditórias, imagens que desconhecia e não sonhava pertencerem-lhe”,  lemos em Sôbolos rios que vão. Um romance em que novamente o escritor avança por estas instâncias sem medo de ir abrindo portas. Detrás dessas portas pode haver monstros ou demônios, mas também o sorriso franco do jovem de dezesseis anos com tudo por descobrir, capaz de transmitir o valor necessário para prosseguir o caminho, andando, avançando até o momento em que o rio abre os braços ao mar.

 * Este texto é uma versão livre para "Lobo Antunes, el hombre que no sienta en el hielo", de Lecturas submergidas. 

Comentários

GT disse…
O impacto da surpresa primeiro desconcerta.Leva a esconder o medo que se sente e nos faz esconder como se não sentíssemos o que sentimos e o abraço do olhar quisesse dizer tudo.

Hoje já é dia 1 de Setembro de 2016! CARTAS DA GUERRA
Comovida
Com o coração apertado
Com um sorriso de lágrimas
Vou
Vou inquieta
Vou

Santo António há 74 anos pegou num menino ao colo
O seu nome era também António
É esse o menino que permanece nos seus braços!

Não é possível referir um só livro.Todos juntos permitem-me falar com um livro, dois ou três. São eles o ELE que procuro e felizmente vou conseguindo sem patetices que a minha ignorância um dia há talvez duas décadas expressou.

Gostei do que li
não sei dizer...

GT










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