Romances de Patrick Melrose, de Edward St. Aubyn

Por Pedro Fernandes



Sabe-se que St. Aubyn concluiu este ciclo de romances em 2012, quando as editoras resolveram publicá-lo num só volume; o projeto levou quase vinte anos para ser concluído: o primeiro volume foi publicado em 1992 e o último em 2011. No Brasil, talvez por uma razão mercadológica, a obra sai, provavelmente, em dois tomos: o primeiro com os títulos “Não importa”, “Más notícias” e “Alguma esperança”; o segundo deverá trazer “Mother’s milk” (O leite da mãe) e “At last” (O fim). Apesar de acompanhar toda uma vida – a da personagem que dá nome ao ciclo, projeção do próprio escritor – cada um dos romances zela pela objetividade e não se prende a ser um retrato pleno, se é que se pode falar em plenitude quando se fala sobre um, sobre essa figura capaz de despertar no leitor toda sorte de reações, sobretudo, as mais adversas. E foi, justamente por isso que, entre a alternativa de escrever três textos – um para cada livro – que poupei tempo para mergulhar na leitura das quase quinhentas páginas e tentar objetivamente dar conta de anotar algumas observações pertinentes para o leitor que ora tenha lido esses romances ora venha lê-los. Também foi uma estratégia de não deixar fazer com que o interesse por outras leituras pudesse me desviar da atenção para essa obra.

Não é o caso de ser uma narrativa enfadonha capaz de afastar o leitor na primeira oportunidade e fazê-lo tomar o rumo posterior ao de sua lista de leituras; ainda que algumas passagens soem um tanto repetidas – sobretudo em “Más notícias” – e isso possa causar certo enfado em quem lê, tomei esse registro como uma construção proposital para o tema recorrente nessa ocasião. Mais adiante voltarei a essa constatação a fim de melhor explicá-la. Por enquanto fiquemos com pelo menos três constatações mais gerais, ao meu ver indispensáveis ao corpo do livro e uma recorrente do estilo e da formação do próprio St. Aubyn.

Primeiro é o espírito observador do narrador e a variação do ponto de vista para elaboração do narrado; certamente uma tarefa emprestada do ofício de jornalista que se completa aqui com o registro objetivo do que narra, embora muitas vezes, se demore em desfiar determinado acontecimento como quem se certifica da importância que este tem para o enredo. Ainda nesse ínterim, é preciso sublinhar a condição fragmentária dada à narrativa como quem gostasse de representar a velocidade e a simultaneidade dos acontecimentos, exercício que o romance e outras artes miméticas terão praticado de diversa forma mas sempre estarão prejudicadas pela impossibilidade de reprodução dessa realidade. No caso de St. Aubyn, ele novamente recorre a outra condição do jornalismo, que é o mosaico narrativo, a disposição do fragmento com situações diversas que juntas dão ao leitor, a partir de sua organização mental, a ideia do simultâneo.

Segundo, a variedade estilística que dá a cada um dos romances sua individualidade, bem como a atmosfera de instantâneos em situações diversas da vida de Patrick Melrose. Assim, no primeiro romance, o escritor opta por uma linguagem mais atenta ao drama poético da existência, sobretudo porque esta é em parte administrada aos olhos da personagem na infância. Depois é o tom alucinatório, entre o drama de viver e uma revolta sobre a qual o jovem Patrick não consegue pensar sobre porque está sempre invadido pelas experiências mais diversas dos paraísos artificiais. Aqui St. Aubyn adota um discurso frenético, ainda que eivado de certo tônus poético mas afeito a expor o delírio, como se quem narrasse, por vezes, fosse o próprio Patrick. Nessa ocasião, o leitor parecerá está preso naqueles artifícios de linguagem comuns na literatura dos Beat. As experiências pelo submundo do sujeito são transformadas em experiências pelo lado mais escuro da linguagem. E, no terceiro livro, a narrativa se apresenta como se uma crônica social. O tom sarcástico com que trata pessoas e situações se reveste de certa voz do colunismo social, em grande parte mais interessada no valor do esnobismo que em simplesmente dizer a realidade.    

E, terceiro – a este todas as observações acima fazem-lhe jus –, a determinação de um acontecimento em torno do qual concentra a narrativa. Se St. Aubyn beberica da tradição do bildungsroman, não se filia a ela, quando muito, a subverte, porque está interessado em compor outra maneira de acompanhar o desenvolvimento de Patrick Melrose, sobretudo, sem se ater ao exercício de causa-consequência e observando a vida como uma construção marcada por pouco fato interessante e logo incapaz de preencher uma extensa quantidade de trabalho. Assim, “Não importa” é o registro da infância infeliz de Patrick Melrose, sempre tomado pelo medo terrível do pai e pelo deszelo da mãe, sempre afundada em futilidades, drogas e, em assuntos do filho, envolvida também pelo mesmo véu que corrói os nervos do pequeno. Escolhe, para tanto, um fim de semana de estadia em casa de Patrick de uns amigos de sua família – o fim de semana do primeiro abuso sexual que sofre do pai.

“Más notícias” é sobre a estadia que Patrick faz pelos mundos da droga. Mas St. Aubyn não se aventura em descrever todos os anos de mesmices entre a abstinência do vício, as aventuras para adquirir droga e os constantes instantes de lombra da personagem. Os que se apega tratar já são suficientes para dizer ao leitor sobre o vazio existencial, por assim dizer, que acomete a personagem. Novamente, são poucos dias, próximos de outro fim de semana, o período no qual se dão os acontecimentos da narrativa – o que devia ser o principal, o reencontro de Patrick com o pai depois de morto em Nova York.



E, “Alguma esperança”, assinala um momento de transição na vida da personagem principal: a possibilidade de se curar do vício; o desejo de tornar pública os desvarios do pai e a tentativa de desconstrução da memória de homem honrado que carrega entre os amigos. Sem fazer implicâncias entre uma situação e outra, isto é, entre a violência sofrida na infância e a vida de drogado que leva, Edward St. Aubyn prefere pensar sua personagem como um sujeito preso num cabedal de situações sobre as quais não há quase nenhum controle sobre elas. Não é caso de atribuir isso a um destino, mas ao desatino de viver. Psicologicamente e socialmente, confere, nunca estivemos sãos e, em grande parte, o que somos é um estrato de aparência, principalmente quando os indivíduos estão imersos noutra conjuntura social, a que mistura dinheiro, intelecto e poder.

Edward St. Aubyn constrói uma visão ampla sobre a total degradação das relações humanas; confere à sua narrativa o tom de constatação da tese defendida a certa altura do primeiro romance sobre uma abordagem não psicológica da identidade. O leitor observará isso ao perceber quais as perspectivas adotadas pelo autor na observação dessa sua personagem ou ainda no constante exercício do narrador em se dedicar dar vida ao espaço, construindo uma espécie de fusão entre a descrição e a narração. Assim, se dá, por exemplo, na descrição da primeira cena de abuso sexual de Patrick pelo pai; esta é uma das passagens mais delicadas e de uma força terrível. Assumindo a variabilidade dos pontos de vista constrói uma acentuada maneira de como a criança passa por essa humilhação sem se dá conta ao certo do que lhe acontece: ora a cena é vista pelo varão da cortina do quarto, ora por uma lagartixa que corre entre os arbustos da casa, para findar com a crença da criança de que havia sido esfaqueada pelas costas e o sangue tornado gosma que é limpado com papel higiênico.

De certa maneira, a atitude de contar a vida de Patrick Melrose, vida que se confunde com a do próprio escritor – mas, cujo desfecho do terceiro romance aponta para essa direção que aqui proponho –, é uma maneira desse narrador vingar-se da memória dilacerada pela condição vilã sofrida no passado. Afinal, de que outra maneira se pode passar um corretivo sobre o que nos aflige senão contando repetidamente ao outro pelo momento adverso pelo qual passamos. Descrente na capacidade do perdão, é pelo narrado que busca esgotar o assunto e, claro, trapacear o possível futuro de glória de quem lhe vitimou: “Sim, fadiga narrativa é o que eu busco. Se a cura pela fala é a nossa religião moderna, então a fadiga narrativa deve ser sua apoteose”, diz Patrick instantes depois de confessar para amigo Johnny sobre o seu passado com o pai.

Também é uma maneira de adiar a morte, num instante em que o suicídio silencioso e dramático se prolonga ante a impossibilidade de alcançar uma justiça sobre o passado ou de encontrar uma existência que se coloque na direção contrária da existência da gente comum – esta que é integralmente marcada pelo marasmo, pela repetição dos mesmos modelos morais, muitos desde sempre caquéticos e sem força alguma de servir a um preenchimento da existência do homem, pela hipocrisia, pela ganância, pela capacidade de manipulação e mando sobre os mais fracos. Contar e contar-se é uma possibilidade de desvelar o que em parte todos sabem que não é mas insistem em fingir que é – ou porque teme ou porque prefere manter um status quo que lhe diz respeito. Aubyn não terá esquecido da máxima shakespeariana de que o mundo é um palco; no das narrativas de Patrick Melrose, todos estão de máscaras, mesmo ele; precisará de perceber-se enquanto bufão ou personagem trágica, tragada por uma força da melancolia, para só então abrir-se enquanto alguém que se distingue do modo de vida dos que o rodeiam. 


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