Rainer Maria Rilke: conter suavemente a morte



Da correspondência entre o adolescente Franz Xaver Kappus e Rainer Maria Rilke ficaram as cartas-respostas do segundo, chamadas Cartas a um jovem poeta que ganharam reedição pela Biblioteca Azul / Globo Livros. Sem ver as missivas originais pode-se especular sobre a letra delicada e estilizada desenhada pela mão do poeta, tão ocupada em estratagemas de cortesia e formalidades.

Basicamente, entre 1903 e 1908, o tcheco escreve ao “jovem poeta”, da Suécia, de Roma, de Paris ou Pisa. Reúne nesta série de cartas as temáticas de seu gosto, rilkianas, da solidão como “apoio”, como “casa”, da vida e da morte, como correntes inextrincáveis de mistério e do transe poético. Rilke aconselha a seu admirador sobre a busca primitiva, podemos assim dizer, o estilo próprio, a voz emancipada de influências. Um despertar de seu mundo interior e da relação de sensibilidade com o mundo, condições esperadas do poeta.

“Para essas duas tarefas [amor e morte], que carregamos e transmitimos secretamente sem esclarecer, nunca se achará uma regra comum baseada em um acordo”.

Como ensaiado tantas outras vezes, Rilke fala do rito criativo com terminologias médicas, de saúde, de tratamento, como se um psicólogo interessado em tratar uma obsessão, a insanidade estética: “Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural”.

Rilke seduzia as princesas e os condes. Sendo pobre, viaja em trens pela Europa hospedando-se em castelos; ocupava suas dependências naturalmente, sem empecilhos. Era uma alma doce; um guru, talvez pensassem outros. Com diz em suas cartas, em suas coisas particulares sempre incluía um exemplar da Bíblia e literatura de um escritor dinamarquês da época – Jan Peter Jacobsen.

Em seu último ano de vida (1926) padecia de leucemia e mesmo com sua saúde debilitada se susteve durante um tempo em balneários. Mas, há fatalidades; enquanto andava colhendo rosas para uma amiga (o presente do amigo requintado e sensível) se furou com os espinhos.

O incidente, pequeno, foi o suficiente para uma infecção generalizada que só complicou mais ainda seu câncer de sangue. Contudo, há quem diga, sem grande exagero, que morreu pelo furo de uma rosa, como a personagem de um conto de Gabriel García Márquez. O solitário Rilke e a rosa assassina. Um cadáver refinado. Na flor encontrou esse final, essa “morte própria” de que fala o seu alter ego Malte Laurids Brigge.

“O belo não é / Senão o início do terrível”, escreveu na primeira das Elegias de Duíno – outra obra sua reeditada pela Biblioteca Azul / Globo Livros com a tradução mais conhecida no Brasil, a da poeta Dora Ferreira da Silva. O belo como transcendental, como limiar em que auto-transcende, para o qual se inclina o eu poético.



Escreve na oitava de Elegias: “Orientados sempre para a criação, / nela vemos apenas o reflexo do que é livre, / diante de nós obscurecido”. 

“O outro” não deixa de ser uma aparição do fenômeno, mas é também uma comunidade espiritual onde pode o poeta banhar-se, restaurar-se, abastecer-se. Inclusive consigo mesmo. Rilke encontra essa distância que apareceu como ruptura na passagem da infância para a consciência, à maturidade, onde o tempo se faz fugitivo e eu se desintegra da paisagem, tal como confessa a Franz Xaver Kappus.

A criação, como o leitor perceberá, é um dos temas centrais das Cartas: “Também no homem a maternidade, ao que me parece, é corporal e espiritual; sua produção também é um modo de dar à luz, quando ele cria a partir da plenitude de seu íntimo está dando à luz”.  

Mas o irmanar-se entre Franz e Rainer Maria vem marcado pela solidão – a união de duas solidões que meio se conhecem, que saúdam, que se respeitam; “Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita”.

Rilke se dirige com jovialidade a Franz, oferecendo resposta a problemas da juventude. Anos depois comporia o “Réquiem para o poeta Wolf von Kalckreuth”, outro jovem poeta (tinha contato com muitos poetas jovens do continente), mas este também era suicida. Sua resposta post-mortem então é feita de forma atormentada e de um denso lamento, inquisitivo, irrevogável. Para Rilke, a juventude era algo comovedor e algo revelador, tão triste, como um grande naufrágio.

O poeta viajava só na época do transporte elegante, século de trens e barcos (substituídos depois por aviões e ônibus). Passeava absorto por jardins de palácios, centro europeus e meditava sobre a beleza dos cachos de rosas, sanguíneas rosas de juventude e sobre a verdade radical da morte escreveu:

“conter a morte suavemente, toda a morte / mesmo antes que a vida” 


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