Pedro Páramo, de Juan Rulfo
Por Sérgio Pitol
O romance Pedro Páramo, do jovem autor Juan Rulfo,
em dez anos depois de sua aparição já é considerado uma obra clássica da
narrativa contemporânea mexicana e desfruta de um renome que ultrapassa
amplamente as fronteiras dos territórios de língua espanhola na América. Hoje,
apaziguados os ecos das polêmicas que suscitou quando da sua publicação, este
romance é considerado um marco na criação literária no México, que finaliza o período
da literatura dedicada à problemática do indianismo e inaugura uma nova época.
O mundo que nos apresenta Juan Rulfo, cuja peculiaridade se deve ao modo como o
próprio autor o molda, é o mundo de um
ser quase desconhecido que vive à margem da civilização, excluído da sociedade
moderna; um homem que vemos diariamente, mas dele apenas sabemos o que nos
dizem os tratados sociológicos; um homem cujos costumes e vida são investigados
e descritos pelos antropólogos: o índio mexicano.
Na literatura, este homem sempre
aparece ante nós como uma personagem de papel que atua numa espaço artificial
cheio de elementos de um folclore de palha, já que se tentava fazer dele um
guia e um símbolo de uma determinada problemática social ou política todavia sempre alheia ao seu universo. Nas obras do primeiro período pós-revolucionário, a
vida cotidiana deste homem, e o significado desta, estavam escondidos ou
falseados já que se tentava fazê-los encaixar entre um marco artificialmente
realista.
E o mundo de Juan Rulfo, esse que o autor exibe ante nós no volume de
contos Chão em chamas e no romance Pedro Páramo, nos é oferecido dotado da
realidade da poesia. Rulfo não tem intenção ou, menos ainda, de explicar a
psicologia de suas protagonistas; apenas as descreve, recupera furtivamente
alguns momentos fugidios, constrói fragmentos de diálogos, apresenta todo este mundo servindo-se
dos elementos que somente conhece a fundo.
E não se
trata apenas de uma dicção carregada de potencialidade visual que o autor
reproduz minuciosamente e lavra de modo tal que, dentro da uma irrealidade
estilística, tudo se torna real nos registros da escrita, mas também das características
mais gerais, mais abstratas que determinam estas formas elementares de vida: a
magia, as alucinações, os rituais antigos que começam a reviver dentro das personagens;
a espiritualidade remota, arraigada secretamente nos rincões mais ocultos do
espírito, se vislumbra de repente transformada em mitos, fantasmagorias e
visões espectrais. Cria-se então uma zona intermédia entre o “ser” e “não ser”,
na qual se movem estas personagens atormentadas por suas manias e obsessões,
sempre poderosas como os elementos do universo: os homens “lavrados” de modo
uniforme, ávidos de sangue, atormentados pela ânsia de possuir seja uma mulher,
seja uma terra; pela obsessão da solidão ou pela ferida de um velho rancor
nunca cicatrizada. Sobretudo por isso, pelo rancor. “Você conhece Pedro Páramo?”
– pergunta um de seus filhos. “Um rancor vivo” – responde o outro. “É, segundo
eu sei, a pura maldade” – constata um terceiro.
Inicialmente,
Juan Rulfo desejava escrever um longo romance sobre as regiões do oeste – o estado
de Jalisco – no qual Pedro Páramo seria
apenas um fragmento. Essa passagem foi pensada como um capítulo dedicado ao coronelismo, em que, através das vozes fragmentadas que havia conhecido,
vislumbraria um retrato do dono e soberano de Comala. Logo foi crescendo, se tornou
mais compacto e denso, até que se converteu num romance completo. Sua trama é
bastante simples: Juan Preciado, a pedido de sua mãe, expresso por esta no
leito de morte, chega a Comala para conhecer seu pai, quem havia sido suprimido
de sua memória: “O esquecimento que nos manteve, meu filho, cobra-se caro”.
Uma vez
chegado ao lugar, vê o povoado em escombros, abandonado por todos, seus habitantes
ou morreram ou emigraram. À medida que Juan Preciado deambula pelas ruas e
reconhece os lugares tantas vezes descritos por sua mãe – “Eu imaginava ver
aquilo através das memórias de minha mãe; de sua nostalgia, entre retalhos de
suspiros. [...] Trago os olhos com os quais ela olhou estas coisas, porque me
deu olhos para ver” – começa a ouvir vozes, murmúrios, ruídos, cantos remotos,
choros, ecos do passado que progressivamente revelam as cenas das violações,
roubos, relações incestuosas, enganos e abusos até que o narrador morre de
espanto nos braços de uma velha mendiga com quem o sepultariam numa cova comum,
e ali, unidos para sempre com a terra, com essa terra de Comala, onde
inclusive, “as frutas mais doces, laranjas e ameixas, têm um sabor ácido”,
chega a conhecer a história de Pedro Páramo, um senhor feudal que exerce o
poder com um chicote e mediante a usurpação: o cacique desta terra. Sua história
é a história coletiva de um povo subjugado por um senhor que submete tudo sob o
seu mando.
Em Comala a
vida gira ao redor de dois eixos, dois polos que organizam as paixões e regem a
existência dos habitantes do povoado: o coronel e o padre. Ambos de igual modo
violentos, duros, desprovidos de escrúpulos, parecem sintetizar em si mesmos o
vazio, a esterilidade, o marasmo do espírito dos habitantes do povoado, o que
torna seu sofrimento ainda mais doloroso.
E é Pedro
Páramo (seu nome já significa uma terra vazia, um deserto estéril), igual a
Henry Sutpen de Faulkner, o que dedicou sua vida inteira a criar um patrimônio,
a acumular o poder absoluto que subjuga todos ao seu mando. Atua cautelosamente
no momento em que o exército revolucionário se aproxima de Comala e também é
capaz de aproveitar os antagonismos entre os bandos opostos. Impõe sua vontade servindo-se
de um punhal e da forca, e sempre sente uma forte necessidade de ter um testemunho
de seus atos. Esse testemunho não pode ser outro senão uma mulher, uma tal de
Susana San Juan, com a qual sempre se banha no rio, nus os dois, quando eram
crianças.
Essa mesma Susana San Juan é a que tempo depois abandonaria Comala para
sempre e cuja relação com seu pai está marcada pelas sequelas do incesto. Quando,
por fim, decide viver com Pedro Páramo, sob o mesmo teto, seu cérebro já está
carcomido pela loucura irrevogável e total que a impede de participar de sua
vida, só a de submeter-se às vontades do coronel, ser essa testemunha ansiada, que suas “proezas”,
sua crueldade e seus triunfos reclamavam: por isso mesmo, ela é a única pessoa
que exerce sobre ele uma forte influência emotiva; é a única mulher que ele não
gosta de dominar, e sua morte significará o ocaso do coronel e a ruína de todo
o povoado de Comala.
Semelhante a Henry Sutpen, o principal protagonista do
romance Absalão! Absalão!, de Faulkner,
Pedro Páramo recorrerá a todos os meios possíveis para aumentar seu patrimônio e,
como o protagonista faulkneriano, conhecerá a desilusão, o sem-sentido da existência,
demasiado dinâmica frente a absoluta passividade do ambiente que o rodeia, e
finalmente se deixará vencer por todo esse tédio, verá toda sua vida convertida
em ruína e morrerá estúpida e trivialmente.
Falo de
passividade do mundo de Juan Rulfo, já que é um dos motivos mais intensamente palpáveis
tanto nos contos de Chão em chamas,
como em Pedro Páramo. As concepções de
tempo e de espaço elaboradas pela cultura contemporânea não alcançam adaptar-se
ao romance de Rulfo. Nele o espaço é sempre um lugar em que tudo parece estar
parado num estado permanente de espera por algo que não chega e nunca chegará. O
tempo se quebra, se desfaz, o conceito mesmo resulta desconhecido, as personagens
permanecem imóveis quando avançam no espaço e dentro do tempo, que não é nosso
tempo nem tampouco nosso espaço; são como aparições, sombras que deambulam
incerta e misteriosamente por entre a névoa de uma paisagem que, como por arte
de magia, revela ante nossos olhos e reflete algumas esferas de nossa
sensibilidade, e o faz de modo muito mais verdadeiro do que poderia fazer a
grande maioria dos romances de corte realista.
As personagens
sucedem umas após outras em tateios; dificilmente encontraríamos em seus atos alguma
continuidade, suas ações de ontem não têm sentido algum, os feitos que marcaram
e determinaram a vida delas dentro da narração são apenas recordáveis; a
própria linguagem se torna incerta, vacilante dentro de sua transparência: “não
posso assegurar-lhe”, “talvez”, “não estou convencido” são expressões que com
mais frequência usadas por estes homens quando começam a contar alguma história
ou tentam responder alguma pergunta.
Uma visão
fatalista da História, a revelação de alguma zona da realidade mexicana,
crítica do coronelismo de suas consequências, as trevas que envolvem o espírito
do homem, a imagem de uma solidão desértica: tudo isso e muitas outras coisas estão
nestas páginas de estrutura tão complexa que revivem a magia do povoado
torturado. Magia resgatada das cinzas e ressuscitada pela força redentora da
poesia de Juan Rulfo.
* Este texto é uma tradução para “Juan Rulfo: Pedro Páramo”, publicado na revista La Palabra.
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