‘Pawn Sacrifice’: outro olhar sobre a vida e a personalidade do prodígio norte-americano do xadrez

Por Maria Vaz



O cinema biográfico nunca é feito de forma linear: há sempre pequenas subtilezas deixadas à sensibilidade de quem assiste. Não poderia ter sido diferente na película que retrata a vida de um dos maiores prodígios norte-americanos do xadrez, Bobby Fischer.

O filme começa na infância de Fischer, em uma festa dada pela mãe de Bobby aos seus amigos comunistas. A mãe de Fischer era uma mulher com vida política activa, bem como todo o envolvente gosto pelos convívios boémios que faziam com que ele se perdesse ensimesmado na solidão. Foi daí, do silêncio e da fuga às confusões sociais que se davam na sua casa, que germinou a paixão de Fischer pelo xadrez: encontrou um tabuleiro perdido no quarto e, rapidamente, começou a jogar sozinho. A partir de então, ganhava todos os jogos que disputava e se, por algum motivo excepcional, perdesse não poderia o jogo ficar por ali, havendo uma revidação de desforra.

A sua mãe, inicialmente, resolveu levá-lo a um psiquiatra para que lhe estabelecesse um diagnóstico, mas rapidamente mudou de ideia e resolveu levá-lo a um profissional do xadrez que, após ganhar a partida a muito custo, lhe disse que deveria continuar a jogar. Pouco tempo depois, Fischer resolveu dedicar-se ao jogo de forma exclusiva, com o objectivo de se tornar campeão mundial.

A personalidade do jovem jogador de xadrez foi afectada, sobretudo, por não saber quem era o seu pai, que inexistia biológica e afectivamente, e por ver (e ouvir) a sua mãe em constantes relacionamentos, mais sexuais do que amorosos, marcados pela diversidade e a consequente instabilidade da vida familiar. Talvez o espírito de fuga o tenha levado ao mundo do comportamento obsessivo-compulsivo em uma actividade que, depois, acabou por lhe garantir  a fama. Desse modo, a revolta, relativamente à inexistência de uma figura paterna e ao comportamento da mãe, fez com que adquirisse raiva de tudo aquilo que lhe trouxesse a sua lembrança. Assim, como o filme se desenrola em pleno auge da Guerra Fria (e sendo a sua mãe comunista), ele resolveu traçar o objectivo de jogar contra os russos e, assim, ser campeão mundial da modalidade.

Analisando o filme de forma mais profunda, podemos chegar facilmente à conclusão de que a origem dos seus comportamentos obsessivo-compulsivos se encontravam imbricados na relação fria e doentia que tinha com a mãe: além de o relegar à solidão, a mãe dizia-lhe para mentir sempre que alguém lhe perguntasse por ela na rua, por medo que punissem as suas convicções políticas. Nessa linha de pensamento, também podemos chegar à conclusão de que Fischer foi uma criança que cresceu em um clima de instabilidade e insegurança, o que acabou, mais tarde, por lhe gerar desconfiança em relação a tudo, bem como síndrome de perseguição.  

Por tudo isso, cedo disse à mãe que não queria que ela vivesse na mesma casa que ele, queixando-se de que o barulho que ela fazia enquanto tinha relações sexuais com estranhos o desconcentrava, motivo pelo qual começou a dormir no clube de xadrez. Dormiu lá até a mãe se mudar definitivamente para a Califórnia, altura em que começou a viver só com a irmã mais velha, que era a sua única referência afectiva no mundo, muito embora não tivessem muito convívio directo com ela, devido às suas tendências ao isolamento (talvez como forma de autoprotecção de um ego mais frágil do que aquela aparência de campeão ostentava).

Quando Fischer defrontou os russos, percebeu que seria impossível ganhar-lhes, motivo pelo qual desistiu do campeonato e ainda prestou declarações no sentido de que se tratava de um complô colectivo para que ele não conseguisse ganhar, uma vez que o feito seria probabilisticamente impossível. Afirmou, assim, que desistiria do xadrez por achar que as regras do jogo tinham sido corrompidas.

Passados uns tempos, foi convencido, por um advogado e um padre, a regressar ao xadrez e a defrontar os russos, de novo, que estavam de passagem pela Califórnia. Com algumas reticências , resolveu aceitar a proposta. Mal chegou à Califórnia tentou, fracassadamente, ligar à mãe e enviou-lhe uma carta para que ela não fosse assistir aos seus jogos, porque o desconcentraria. Nesta altura Fischer já era adulto mas, dado o seu isolamento social, só nessa altura resolveu perder a virgindade com uma miúda não muito inteligente, mas simpática e sexualmente desinibida que conhecera no hotel em que ficara hospedado, perto da praia.

Após a disputa, perdeu de novo contra os russos mas, como não conseguia lidar com essa frustração  (talvez por lhe activar sentimentos, conscientes ou inconscientes, da rejeição que sofreu da mãe), continuou a dizer que era o melhor do mundo, naquilo que aos menos atentos poderia parecer a mais rude forma de arrogância ou sentimento de superioridade intelectual. Na verdade, no meu entendimento, isso  é apenas um mecanismo de autoprotecção emocional em que se avulta um ego construído para a aparência que, na maioria das vezes, é bem mais frágil do que aquilo que todos possam equacionar.

No fundo, até a constante necessidade de superação de si mesmo não passa, no meu entendimento, de uma forma de provar à mãe o seu valor. Não é que as pessoas tenham que provar valores ou capacidade de gerar  desvalores a quem quer que seja. Mas, normalmente (e não digo que não hajam excepções, porque a vida não é a preto e branco) as pessoas que querem vencer a todo o custo, donas de uma vontade indomável e, por isso, dotados de uma fonte inesgotável de energia anímica, querem provar algo a alguém. A maioria das vezes esse alguém é um dos progenitores. Todavia, pode ser que essa necessidade de ‘provar algo’ esteja relacionada ou seja substituída por alguém que amam ou amaram (de quem sofreram uma rejeição – e aí talvez se avulte alguma rebeldia existencial) ou da sociedade em geral, para se sentirem especiais. Talvez a única diferença entre alguém que queira provar a sua capacidade de superação de forma unidireccionada de alguém que o faz de forma multidireccionada é que, no primeiro caso existe maior probabilidade de encontrarmos a origem da vontade na rejeição, enquanto que, no segundo caso, pode existir síndrome de inferioridade revestido de um ego de aparência ou um síndrome de superioridade em que as tendências tiranas do ego vêm normalmente acompanhadas daquelas ladainhas do senso comum, que todos conectam mentalmente a alguém preencher os requisitos generalizadamente aceites de ser ‘boa pessoa’.

Regressando à história de Bobby Fischer, encontramo-nos no momento do filme em que ele resolveu defrontar novamente os russos em um campeonato mundial que se encontrava a decorrer na Islândia. Contudo, ao ser surpreendido com câmaras e perguntas da imprensa norte-americana, no aeroporto, teve um ataque de pânico e fugiu para a sua antiga casa, entrando apenas em contacto com a irmã, a quem revelou, indirectamente, um estado mental nitidamente fragilizado e um surto psicótico acentuado.

Passados uns dias, o advogado que o acompanhava encontrou-o no seu apartamento e convenceu-o a ir mesmo para a Islândia defrontar o russo com quem sempre perdeu, até este ponto do desenrolar da história, Borys Spassky. No entanto, nas primeiras jogadas, Bobby tem um novo surto de desconcentração com o barulho da câmara que filmava o campeonato e que o fazia aceder a memórias de barulho da mãe, que o desconcentravam. Naquele momento, decidiu que desistiria do jogo se o seu adversário não aceitasse jogar na sala de ping pong, nos fundos do edifício, em que haveria silêncio. Após umas horas de indecisão, Boris Spassky teve, também, um ataque psicótico e demonstrou ter as mesmas manias e síndromes de perseguição de que Bobby sofria. Nessa altura, Boris entendeu que Bobby queria fugir dele e resolve aceitar jogar na sala dos fundos. Foi então que Bobby reverteu, quase impossivelmente, o resultado e acabou por iniciar estratégias nunca antes usadas no xadrez, tornando-se uma fonte de inspiração para todos os praticantes da modalidade. Conseguiu, assim, ser aplaudido em pé por Spassky e atingir o tão almejado objectivo de ser campeão mundial de xadrez.

A partir de então, decidiu abandonar as competições, muito embora tenha continuado a jogar obsessivamente. Resolveu, de igual modo, abdicar dos milhões que ganharia de prémio e, passados uns anos, quando a Guerra Fria terminou, foi preso por, supostamente, se ter tornado um vândalo. Mais tarde, acusou os Estados Unidos de o terem instrumentalizado e utilizado como troféu na ‘luta’ contra a ex-urss e o terem descartado e segregado quando perderam o interesse. Passado uns anos, conseguiu asilo na Islândia, onde continuou a criticar os Estados Unidos da América, enquanto todos o consideravam louco.

Em jeito de conclusão, podemos dizer que a vida de Bobby tem matéria-prima para várias dissertações psicanalíticas. No entanto, não consegui terminar de ver o filme sem me inquietar  filosoficamente acerca daquilo que a busca da verdade objectiva (o que quer que ela seja ou possa ser conjecturada em termos subjectivos) pode provocar, sobretudo quando existe um clima de instabilidade: no caso de Bobby provocou a loucura. Ou não. Não consegui deixar de pensar: o que é, afinal, a loucura? Instabilidade emocional que provocada por terceiros ou por falta de referentes afectivos? Ou serão apenas um conjunto de hipóteses abstractamente racionais, também provocadas pela desconfiança e instabilidade, geradas por um meio hostil? Talvez se devesse rever o conceito e o rótulo. Seria, assim, bom que as pessoas pensassem nisso e em todos os preconceitos que circundam a questão. Como bem diz a sabedoria popular, talvez “de loucos todos tenhamos um pouco”, sobretudo em situações análogas, que nada podem ter a ver com a genética, a genómica, a neurologia ou hereditariedade. Muitas vezes são questões puramente afectivas. Talvez a suposta ‘causa’ e ‘culpa’ da loucura se encontre no clima instável e hostil que o meio cria em torno da pessoa em situação vulnerável  e não na pessoa em si mesma (relativamente à ‘perigosidade’ a história é outra, mas fica para outras reflexões). Depois, aquele mesmo meio, em jeito de superioridade moral, intelectual e cheio de ‘chavões do senso comum’, ajuda a rotular e a fechar em sistemas segregatórios, de forma pseudo legitimada alguém que, ilegitimamente, queria segregar (se lá se, por vezes, de forma premeditada). Muitas vezes, o meio ajuda a difamar e a alimentar ciclos de hostilidade social, como se a difamação insustentada (de ‘louco’) fosse menos gravosa do que a pseudo instabilidade psicótica que o vulnerável sofre. Confesso que, neste ponto, a reflexão extravasou em muito o ‘filme’, mas não resisti à ideia de fomentar, em um tema tão tabu e rotulado como a loucura, o espírito crítico de quem lê.  

Voltando à conclusão da história de Fischer, entendo que se tornou notório que o desejo (movido por uma vontade indomável, em ser o melhor do mundo no xadrez), constituía uma mera forma de provocação da mãe (que ele achava que estaria do lado dos russos em tudo, pelo facto de ser comunista) e para lhe provar o seu valor e que conseguiria obter o que quisesse, em jeito de rebeldia ante a rejeição de que se sentia vítima, de forma consciente ou inconscientemente. Esta última afirmação torna-se notória pelo facto de, mal atingido o objectivo, ter desistido das competições e de todas as ambições que poderiam continuar a alimentar-lhe o ego. Mas não. Resignou-se a uma ‘vidinha’ sem ego e sem disputas, porque não tinha nada a provar a ele mesmo. E é incrível como essa energia anímica, com raízes na rejeição, é canalizada (seja intelectual ou sexualmente), para a obtenção de um desejo ou objectivo em que, na sua satisfação, perde completamente o sentido, porque é apenas uma forma executória de um ID em acção. 

***

Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler