Pär Lagerkvist



Nem todos os escritores escrevem pelas mesmas causas, nem por idênticas razões; para alguns, escrever significa uma via de escape ante tanta asfixia e tanto excesso de realidade. Como disse o especialista da desesperança, Émile M. Cioran: “coloco-me as correntes da ilusão porque tanto excesso de realidade me dá náusea”.

As obras de Pär Lagerkvist são, nesse sentido, um verdadeiro enigma, uma insondável esperança sobre a arte de dizer o indizível, um trânsito necessário entre a vivência (o real) e a ficção. Escrever, para ele, é uma prática que comporta, de certa maneira, um ritual cerimoniático parecido em muitos casos com o ato sagrado; escrever tem certo parentesco com uma liturgia particular onde o factível do mundo circundante ou a objetividade empírica do dado, é submetida à permanente catarse.

Por essa razão, o escritor Prêmio Nobel de Literatura, é considerado um daqueles autores altamente originais; sua obra mostra um interesse pela realidade social e política e, além de tudo, pelos problemas do bem e do mal nos seres humanos. Filho de agricultor, Lagerkvist nasceu em Växjö, um pequeno povoado da região de Småland na Suécia, em 1891 e estudou na Universidade de Uppsala. Herdou de seus pais as profundas convicções religiosas, simples e inquestionáveis, da fé luterana.

Seus primeiros trabalhos, entre os quais se encontram Människor, Två sagor om livet e Ordkonst och bildkonst, assim como numerosos poemas, foram publicados a partir de 1912. No ano seguinte, mudou-se para Paris, cidade onde conheceu o expressionismo, amplo movimento literário e pictórico do primeiro quarto do século XX que o influenciaria profundamente na composição de sua obra.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Pär Fabien Lagerkvist viveu na Dinamarca, onde em 1917 escreveu sua primeira obra de teatro, "Sista människan", e dois anos mais tarde se converteu em crítico teatral de um jornal de Estocolmo. Foi o período favorável ao desenvolvimento de um certo espírito em desencanto sobre o homem e sua história, face aos acontecimentos trágicos que varreram a Europa. Talvez por isso, sua obra poética, construído nesse período de conturbação, tenha sido marcada por essa nuance do desencanto. 

Tematicamente e estruturalmente, entretanto, esse é um início de carreira autêntico: sua poesia teve uma profunda influência em toda a produção do gênero em seu país. Tanto que o seu retorno a Suécia mereceu-lhe a eleição para a tradicionalíssima e fechada Academia Sueca em 1940, fator primordial para que viesse receber, onze anos depois, o Prêmio Nobel de Literatura. 

Sua obra denuncia a brutalidade e a violência do mundo contemporâneo, em ocasiões com um plano de fundo religioso que pode estar tingido do mesmo pessimismo pela tragédia da Primeira Guerra Mundial, como em Angústia – uma antologia de poemas considerada precursora do modernismo na poesia sueca ou em Caos. A partir de 1920 o escritor reduz o tom pessimista nos seus escritos: O eterno sorriso, O caminho para a felicidade do homem, O convidado da realidade – seu título mais autobiográfico – são alguns exemplos.



Em O eterno sorriso, o escritor critica duramente o materialismo humano que é aqui protagonizado pela morte, a qual a narrativa dá uma grande importância visto que trata como algo natural e corriqueiro. Essa obra confirma o destaque de Lagerkvski na literatura sueca e confirma-se prontamente uma reabertura no cânone literário de seu país.

Durante as duas décadas seguintes esteve muito preocupado com o surgimento dos movimentos totalitaristas na Europa. E buscou traduzir seu enfrentamento com o nazismo, por exemplo, com um conjunto de obras valentes que mais tarde seriam incensadas pela crítica; são O carrasco e O anão. Este último é, na opinião de muitos críticos seu melhor romance, superior inclusive Barrabás, obra que ficou mais reconhecida por ter sido publicada no ano em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e porque recebeu uma adaptação de sucesso para o cinema.

Com ação situada numa corte do Renascimento, O anão é tanto um estudo realista como um esboço simbólico da questão que mais preocupou o romancista e poeta sueco: a eterna luta entre o humano e o bestial, o conflito supra-histórico entre o bem e o mal. Sobre o fundo magistralmente construído da Itália artista e guerreira, a de quando começa a gestar-se a modernidade, o protagonista escreve a crônica dos erros e depravação da natureza humana.

A ansiedade produzida pela falta de sentido da vida e o pessimismo sobre o futuro de nossa espécie alcançam nas páginas de O anão sua mais alta cota. O valor do romance alegórico no qual apoia-se, inclusive parte de seu valor literário, na perspectiva da intra-historia, permite alinhavar aos feitos históricos os acontecimentos biográficos individuais. Embora as personagens sejam entes de ficção, a construção de caracteres se apoia na realidade, de modo que os materiais que as compõem, generais ou específicos, são produtos da observação do autor.

O anão trata com significação profunda os ambientes descritos e o constante conflito entre o amor e o ódio, que definem as relações entre as personagens femininas e masculinas. Como a técnica musical que inspirou a Aldous Huxley, o contraponto. Pär Lagerkvist relata alternativa e intermitentemente as vivências particulares do anão e os homens que o destino uniu. São histórias fragmentadas que se entrecruzam. Apesar dos distintos caminhos de cada um, sua existência tem pontos de concomitância que reforçam a unidade da obra.



Suas reiteradas alusões a diferentes tradições, sua obsessiva teatralidade e sua força expressionista situa este romance na série de obras do movimento de renovação do romance que incorporava as ideias de fim do século.

O carrasco expõe com admirável força o papel simbólico que desempenha o executor da pena capital tanto na Idade Média como na época contemporânea. Trata-se de uma verdadeira obra mestra da literatura europeia da primeira metade do século. Sobre esta obra caiu um profundo e lapidar esquecimento. Mas sem ela provavelmente uma parte importante da literatura contemporânea não existiria da maneira que existe; é clara sua influência na maioria dos textos de Thomas Bernhard, Peter Handke, Robert Schneider, e muitos outros escritores hoje publicamente reconhecidos.

Dentre as causas que motivaram o distanciamento público desse livro, talvez um deles seja a dureza pessoal da narrativa Pär Lagerkvist, construída com um estilo que combina a paixão e a raiva, demonstra uma sensibilidade tão pouco frequente que envolve sem cessar todas suas páginas, demandando essa mesma e inteligente condição do leitor – que este seja capaz de enfrentar-se com a profunda ambição de totalidade que a contundência das obras desse escritor demanda. Mas, sem dúvidas, dentre as razões que motivaram o silêncio sobre sua escrita destaca-se, acima de todos, sua denúncia de outro silêncio, dessa forma de esquecimento coletivo em que se pretendia assentar a convivência entre vencedores e vencidos da Primeira Guerra Mundial, não apenas desterrando, mas também justificando as atrocidades cometidas pelos povos na guerra.

A culpabilidade coletiva denunciada por Pär Lagerkvist em relação à barbárie nacional-socialista é a ideia essencial que subjaz neste romance, seja na narração medieval de lendas populares, seja no ataque direto e implacável a uma nação inteira num texto tão carregado de significado como é O carrasco. Essa implicação entre vida e literatura é uma das constantes na obra do escritor e de forma clarificadora explica a profundidade final de sua reflexão literária.

A debilitação dos limites entre ficção e realidade em O carrasco afeta a criação das personagens. O próprio objetivo da obra que tenta refletir sobre uma realidade trágica vivida, busca a convicção do leitor, embora não possa evitar um certo maniqueísmo. Não é fácil determinar quais são os verdadeiros protagonistas e quais são as personagens secundárias, elas são de eleição do leitor.

Mas, além de sua capacidade para iniciar caminhos novos, O carrasco reúne a maior parte das características que constituem o estilo literário de Pär Fabien Lagerkvsit – um estilo que dá forma a uma invejável faculdade narradora: seu tempo rítmico e musical, sua qualidade metafórica e a força de sua imaginação plástica, a presença constante da natureza e sua utilização simbólica como elemento decisivo capaz de descrever, em sua exterioridade, conflitos interiores.

Em O carrasco o medo é o justifica a existência de mundos autárquicos, fechados e asfixiantes, o que prova a exasperação, a covardia ou a violência injustificada, o espanto, a falta de esperança ou a crença num destino obscuro que só pode chegar ao seu fim na morte. Enquanto tanto sua sombra vai deixando profundas veredas, penetra e participa da vida de seus protagonistas de forma tão ativo que determina ou não sua desgraça. E Pär Lagerkvist dispõe tudo conforme sua palavra, uma dramaturgia expressionista que reclama sua natureza lírica e dramática, descarregando no leitor toda sua força emocional. A clássica transformação do herói se torna aqui em transformação do leitor, que como no momento em que culmina o reconhecimento do carrasco, o protagonista, tudo fica imóvel e o leitor não sente já nada mais, cai também imóvel.

A inteligente combinação de realidade e ficção, fazem dos elementos constitutivos de sua poética narrativa uma arma literária de uma riqueza expressiva deslumbrante e rigorosa, capaz de imobilizar um leitor que, impressionado, contém o alento até chegar às últimas páginas, com a mesma dedicação com que iniciou um caminho difícil e laborioso mas inesquecível.

Depois da Segunda Guerra Mundial Pär Lagerkvist voltou à sua temática religiosa com o romance que lhe deu fama mundial – Barrabás. Traduzida em vários idiomas e levada ao cinema em 1962.

Os êxitos comerciais de filmes como Os Vikings, Estranha compulsão, com Orson Welles, ou Vinte mil léguas submarinas determinaram que, quatro anos mais tarde, o produtor Dino de Laurentiis pedisse ao diretor Richard Fleischer que se ficasse à frente da adaptação do livro de Pär Fabien Lagerkvist; o roteiro foi elaborado por Christopher Fry (pseudônimo de Christopher Harris), roterista de Ben-Hur. No início, Laurentiis havia pensado no recentemente malogrado Federico Fellini para dirigir este filme, mas este recusou a oferta, possivelmente pelo fato de que já em 1953 o cineasta sueco Alf Sjöberg havia feito una adaptação cinematográfica da obra em questão. Richard Fleischer, filho do produtor Max Fleischer, começou este longa tendo uma grande vantagem sobre Sjöberg: um pressuposto, diga-se, bastante elevado – a possibilidade de rodar o filme em cores.

A primeira cena realizada com a adaptação de Barrabás foi a da crucificação, realizada em Roccastrado, lugarejo a duzentos quilômetros de Roma. Era 15 de fevereiro de 1961. O cineasta aproveitou esse dia porque era de um eclipse solar – efeito determinante para uma cena de enorme beleza cinematográfica. Outras cenas bastante destacadas pela crítica são os combates de gladiadores na arena de Verona, para cuja realização se utilizaram de 300 combatentes e 10 mil figurantes. Barrabás veio a lume no ano seguinte e logo tornou-se uma das superproduções épicas possíveis de se enquadrar entre os chamados filmes colossais.

Barrabás trata, no fundo, de sair do estado de animalidade selvagem em que estivemos submetidos desde épocas imemoriais; trata-se exatamente de achar o caminho tortuoso e difícil da redenção que pode nos levar obviamente à loucura ou à morte, mas também, pode nos conduzir à emancipação de nossas pulsões vitais existencialmente mais elevadas e sublimes. A partir dos anos 1960, Pär Lagerkvist continuou com obras de temática religiosa como A sibila, A morte de Aharsverus.

Tanto em Cantos do coração como em suas criações teatrais como O homem sem alma ou Deixe viver o homem são bons exemplos em que se percebe o mesmo interesse do escritor com sua obra, desde sua estreia em 1912 até o fim da sua vida: um profundo desejo de confraternização universal do homem. O escritor morreu no dia 11 de julho de 1974.


Comentários

Unknown disse…
Parabéns pelo trabalho

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