Os primeiros contos de Truman Capote
Por Rafael Narbona
Sócrates
atribuía sua sabedoria a um daimon ou
divindade menor, que lhe inspirava em suas indagações e disputas dialéticas.
Truman Capote também afirmava que um “demônio interior” lhe possuía desde
criança, instigando-lhe a escrever. Filho de uma mãe alcoólatra e instável,
nunca conheceu o sossego de um lar fixo. Sua infância e primeira adolescência
se caracterizaram por uma existência nômade e traumática, semelhante a de Perry
Smith, um dos assassinos de A sangue frio.
Baixinho,
espevitado e frágil – a escrita o salvou da loucura que devastou a mente de sua
mãe, mas não do álcool e das drogas. Familiarizado com o sofrimento desde
criança, sempre se identificou com as personagens marginais: negros, pobres,
desempregados, velhos, doentes. Sua empatia com seus pares se acentuou ainda
mais quando tomou consciência sobre a homossexualidade, algo inaceitável no
interior do Sul estadunidense, fortemente marcado pelo puritanismo e o racismo.
Capote
declarou muitas vezes que sua vocação literária se manifestou aos oito anos de
idade e que aos onze já escrevia contos, mas até agora não havíamos conhecido,
nem podido comprovar que não mentia. Os contos guardados na Biblioteca Pública
de Nova York, espalhados entre as trinta e nove caixas de papelão onde estão parte
de seus papéis, revelam que a precocidade do autor não era um mito, mas algo
real.
E não são
contos quaisquer; eles explicam a surpreendente maturidade de seu primeiro
romance, Outras vozes outros lugares,
publicado em 1948, quando tinha só vinte e três anos. Como era previsível, os
contos não estão à altura das criações literárias posteriores, mas destacam,
por sua prosa limpa, poética, cuidadosamente elaborada, longe de qualquer
afetação ou retórica banal. E, algo que não escapará dos olhos do leitor – em
todos eles palpita o medo, a solidão e o abandono.
Capote,
deslumbrante nos círculos sociais e literários, nunca conseguiu curar as
feridas psíquicas de sua infância. Sua mãe quis abortar e quando desejava
divertir-se o trancava num quarto de hotel, às vezes quando tinha só dois anos
de idade. Aos vinte e quatro parecia um menino frágil, de voz aguda e
estridente. Os catorze contos reunidos em Primeiros
contos de Truman Capote (tradução de Clóvis Marques) retraçam um esboço da
ingenuidade e vulnerabilidade desse menino.
Ainda não é
um todo sincero como se notará no estilo que desenvolve para a escrita de A sangue frio, primeiro porque talvez
tivesse a certeza, já àquela altura, de que a literatura é outra coisa e não
uma paixão confessional, segundo porque ainda vive muito perto as dores da
tragédia de ser uma criança presa num corpo débil de um adolescente. Mas Capote
está em todos os contos. É o jovem mendigo de “Despedida”, humilhado e
maltrapilho; é a menina que quase afogo em “A Loja do Moinho”; a estudante
aplicada que rouba suas colegas em “Hilda”, chamando a atenção de um modo
autodestrutivo; é a pequena Lillie em “Senhorita Belle Rankin”, que furta enormes
cestas de flores para presentear aos meninos negros; é Grace, a adolescente
abandonada pelo homem que ama em “Se eu te esquecer”.
“Sentiu como
se talvez tivesse nascido para ser solitária, exatamente como certas pessoas
nascem cegas ou surdas”, lemos em “A mariposa no fogo”; noutro lugar um dos
narradores desse livro afirma que “a morte é uma amante grotesca”. Em “Isto é
para Jamie”, aparece mais uma vez a ânsia por afeto de um menino esquecido. Em
“Lucy”, uma criada negra esboça o retrato ideal de uma mãe, com uma
inteligência natural e uma profunda compreensão e compaixão por tudo o que
existe. As famílias desfeitas, o suicídio e a fuga circulam por todo o resto
dos contos.
Estudante
não tão aplicado, Capote se identifica com a criança que fantasia com aventuras
inverossímeis em “Onde o mundo começa”, fugindo da rotina escolar. Primeiros contos é uma prece atendida, o
despertar de uma vocação literária perfilada como o único caminho da salvação.
Não são contos perfeitos. Mas também não merecem ser rebaixados à mera
arqueologia de uma formação literária.
Cada página
do livro se aprecia a pegada inconfundível de um escritor brilhante, sedutor e hipersensível.
Escrever é ora um dom ora uma fatalidade; no caso de Capote, filho dos dois.
Filho também do abandono e da solidão. À margem da literatura, ele só concebe
um paraíso: a paisagem. Seja a do Sul, com colinas de ervas sussurrantes, ou a
dos arranha-céus que resplandecem na noite como “sentinelas de um mundo muito
antigo”. Sua obra ora publicada revela o nascer do gênio; nos faz recordar uma
frase de Ernesto Sábato: “os deuses não escrevem; a literatura é um galho da
infelicidade”.
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