Narcos, Cidade de Deus e o fracasso da guerra às drogas
Por Rafael Kafka
Narcos e Cidade de Deus são as leituras que faço no presente momento, uma no
campo audiovisual e outra no campo literário (ainda não vi o famoso filme do
cinema nacional) e representam bem o meu gosto por uma estética mais
existencial e social que no presente momento de minha vida se mostra mais
exacerbada, mesmo há anos já sendo uma considerável influência ideológica em
meu ser. Muito influenciado por Antonio Candido, cada vez mais me convenço de o
texto literário ser algo infestado pelas questões sociais que são vistas como
relevantes pelo escritor. Sinto-me à vontade para ampliar tal noção para o
texto audiovisual, em especial séries e filmes.
Ainda assim, devo
reconhecer que as séries em geral são fechadas em um dado nicho social de forma
mais compacta que as obras literárias, que em seu desenrolar o escritor deixam
transpassar, de maneira tangencial, muitos aspectos de vivências socialmente
construídas. Nas séries, o social sempre me parece diluído demais, para não
falar inexistente. Quando surge, esse espaço é geralmente o ambiente doméstico
e familiar ou mesmo o local de trabalho, como em House. Seinfeld, ao se
assumir um show sobre nada, revela profunda metalinguagem (algo comum dentro
dos episódios da sitcom, considerada por muitos a melhor de todos os tempos),
pois o nada em questão é tudo o que se revela à crônica do cotidiano dos
membros de sua classe. O que está lá fora não vem ao caso por simplesmente não
tocar a vida do quarteto protagonista.
Quando as séries
se propõem a explorar o social de forma mais clara e aprofundada, elas ganham
um colorido a mais a meus olhos. Foi o que ocorreu com Mad Men, que tão bem explorou as questões existenciais de nossa
modernidade líquida ao mesmo tempo que deu destaque ao surgimento de
importantes pautas sociais como o movimento negro e o feminismo.
Narcos segue uma linha similar, mas com
temática bastante diferente e usando um ritmo de narrativa bem mais frenético
do que a série que narra a história de Don Draper, lembrando por demais o
segundo Tropa de Elite, também
dirigido por José Padilha, o qual tenta mostrar um complexo panorama social
envolvendo o crime organizado e a corrupção presente no alto escalão do poder
de nosso país. Em Narcos, temos a
presença de Steve Murph, que assim como o Capitão Nascimento de Tropa... acredita na nobreza da missão a
que foi encarregado. Mudando-se para a Colômbia para poder lutar diretamente
contra os narcotraficantes que assolam cidades como Miami, o policial americano
começa a se deparar com as mazelas que tiram a beleza de sua profissão, como a
corrupção policial e a tortura para obter informações dos suspeitos. Tal fato
causa-lhe um choque profundo, enquanto em Nascimento causaria um obscuro, pelo
menos até ele perceber ser a sua luta algo inútil diante de tantos fatores
escondidos a influenciar no aumento do poder do tráfico nas comunidades.
Steve também se
mostra o narrador de uma história que sempre que possível exibirá as versões
reais dos personagens os quais compõem a trama da série. Logo no começo do
primeiro episódio e no decorrer de outros momentos, o realismo mágico será
citado como algo presente na cultura latina pelo fato de a realidade e a ficção
estarem o tempo todo a se misturar. Escobar com todo o seu atrevimento e poder
revela-se como uma lenda dentro do mundo do crime, atingindo forte apelo
popular mesmo com sua crueldade no modo de tratar inimigos e até mesmo aliados.
Alguns gestos do criminoso interpretado por Wagner Moura, que mais uma vez
mostra sua versatilidade interpretativa, são algo inacreditáveis demais, como
explodir um avião com mais de cem pessoas para matar um inimigo político ou
construir uma prisão só para si para fugir do alcance das autoridades políticas
do país.
Assim, Narcos foca mais nas questões políticas
que marcaram a caçada a Pablo. Entendemos de forma bem clara o modo como ele
criou e desfez alianças e como a política interna e externa da Colômbia se viu
em péssimos lençóis por conta das atividades do narcotraficante. Penso que um
complemento interessante para a leitura da série é o romance de Paulo Lins
citado no começo por mim. Não que eu tenha feito a escolha por ele baseado
neste motivo, mas a leitura concomitante de duas grandes narrativas acabou me
causando um impacto muito profundo por revelar grande quantidade de nuances de
um programa profundo em nossa sociedade que nos afeta demais.
Cidade de Deus mostra a ausência do
Estado das comunidades. Este só se mostra na forma de policiais mal pagos, que
muitas vezes enveredam para o campo da corrupção, maltratando de forma dupla a
população que ali habita e sobrevive. Além do descaso das autoridades em levar
o mínimo para que haja dignidade para aquelas pessoas, elas precisam lidar com
a violência de uma guerra sem sentido e aparentemente sem fim. Nesse sentido, o
romance de Lins se mostra como uma espécie de romance de tese, no meio termo
dos escritos de um Saramago e um Kundera ou do que era defendido pelos
naturalistas.
Como os dois
primeiros, as condutas existenciais de moradores, bandidos e policiais são
exploradas pelo narrador em uma profunda minúcia historiográfica a valorizar o
processo existencial conturbado de cada ser envolvido na trama. Todavia, este
narrador não se dá o trabalho de fazer digressões em cima do que é narrado,
deixando os fatos falarem por si sós em sua crueldade nua. Como os escritores
naturalistas, Lins dá uma grande importância ao espaço social da favela como
pano de fundo vivo do caos urbano e social marcado pela morte; todavia, este
espaço não é visto como determinante (no sentido determinista mais pleno) dos
atos e condutas humanos ali presentes. É a síntese entre coletividade e
individualidade marcada pela geografia de um local dominado pela ausência do
Estado de bem-estar social que se utiliza de sua força para manter a população
negra e pobre em seu fosso que protagoniza o romance como entidade a marcar
profundamente os seres que habitam Cidade de Deus.
Destarte, tanto Narcos como Cidade de Deus revelam o fracasso da política de guerra às drogas.
O presidente da Colômbia nos tempos de Escobar cedeu à pressão do traficante em
sua caçada sangrenta quando pessoas ligadas a membros do alto escalão da
política nacional se veem sequestradas e mortas pelo traficante. Paulo Lins
mostra em seu romance com forte teor etnográfico como milhares de pessoas todos
os dias morrem por conta da política de combate às drogas com o uso de um
discurso bélico, sem que o Estado se comprometa a levar a elas o mínimo
necessário em educação, cultura, segurança e etc.
Muitos acreditam
que regular um mercado de drogas que tiraria o poder de traficantes é incorrer
em risco para a saúde pública como se ele já não existisse por conta da
proibição. Cada vez mais sinto que é mais fácil usar da repressão no ambiente
dominado pela população pobre do que levar o debate a esse nível de
complexidade e ao das políticas públicas. Decididamente, não seria vantajoso
levar arte e cultura a uma massa afundada em medo e desespero, que nem se
importa com o fechamento de um ministério da cultura, por exemplo. Afinal quem
precisa disso quando se tem a fome no estômago e as balas sobre a cabeça? Quem
precisa disso quando cultura e educação, como direitos humanos, foram
sistematicamente negados e parecem ser conceitos agora desconhecidos daqueles
povos excluídos?
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