Hilda Hilst: a transgressão fundamental
Por Neiva
Dutra
"Ler é como
pensar, como rezar, como falar com um amigo, como expor ideias, como ouvir
música, como contemplar uma paisagem, como sair para dar um passeio pela
praia..." estas palavras, do escritor chileno Roberto Bolaño, sintonizam
perfeitamente com a apresentação de Hilda Hilst.
A escritora
brasileira, que nasceu em 21 de abril de 1930 e faleceu em 4 de fevereiro 2004,
foi traduzida para o francês e o inglês desde a década de setenta, ao italiano
e ao alemão desde a década de noventa, ao espanhol a partir de 2002. Viveu uma
existência marcada pela emoção, a solidão e o amor, manifestando-se a favor da
liberdade feminina em todos os âmbitos e no mais amplo sentido.
Hilda Hilst
é um dos protagonistas fundamentais da paisagem literária brasileira do século
XX, com mais de quarenta livros escritos em verso, prosa poética, dramaturgia e
crônica, publicados entre 1950 e 2003.
É uma
poetisa consciente de suas ações e de suas palavras; lúcida, culta, com um amor
fervoroso pela originalidade, registrando em sua obra um intenso trabalho de
linguagem e de musicalidade, em uma poesia marcada por questionamentos
metafísicos, mesclados a ocorrências cotidianas.
Em 1983, no
jornal Le Monde, Jorge Coli escreveu, sobre sua obra Da morte. Odes
mínimas: “trata-se da mais alta poesia”, e acrescentou, sobre todos os seus
livros: “todos revelam essa qualidade intensa dos grandes escritores”.
Corajosa,
livre, apaixonada pela vida, pelos seres humanos e os animais, Hilda Hilst
jamais teve pudores em tocar em temas que sempre foram considerados tabus, como
a morte, o sexo e Deus, com uma franqueza poucas vezes vista.
A partir de
1966 decidiu viver na Casa do Sol, a 11Km da cidade de Campinas, onde
atualmente se encontra o Instituto Hilda Hilst e que foi o local onde, nas décadas
de setenta e oitenta, viveram diversos artistas, dentre os quais a artista
plástica Olga Bilenky e o escritor Caio Fernando Abreu.
Em nenhuma
de suas antologias, Hilda Hilst incluiu seus primeiros versos – Presságio, de
1950, Balada de Alzira, de 1955 e Balada do festival, de 1956 – e
considerava como sendo sua melhor produção as obras publicadas a partir de
Roteiro do silêncio, de 1959.
Em 1967,
interrompeu sua produção poética e passou a dedicar-se a escrever peças de
teatro, tendo produzido oito peças entre 1967 e 1969, além de novelas.
Após se
dedicar quase inteiramente à dramaturgia, criando peças teatrais, movida pelo
desejo de comunicar-se com urgência, em um período no qual o país vivia tempos
de repressão, publicou em 1970 sua primeira obra em prosa: Fluxo-floema,
caracterizada pela inquietude metafísica e a criatividade literária.
Seus
primeiros textos em prosa são compostos com uma linguagem intensamente
trabalhada, com atenção semelhante àquela dedicada à criação de poemas e com
uma linguagem muito próxima da linguagem poética.
Retomou a
poesia em 1974, quando escreveu Júbilo, memória, noviciado da paixão.
Neste período, escreveu textos que são considerados verdadeiras obras-primas.
Em prosa, a
partir de então publicou Ficções (1977), Tu não te moves de
ti (1980) e A obscena senhora D (1982). Na poesia,
produziu Cantares de perda e predileção (1983) e Poemas
malditos, gozosos e devotos (1984), Sobre a tua grande
face (1986), Amavisse (1989), Alcoólicas (1990), Do
desejo (1992) e Cantares do sem nome e de partidas (1995).
Seus últimos
livros possuem características de extrema riqueza na combinação de sons e
palavras: estrofes irregulares, vocábulos raros, palavras e expressões
estrangeiras, paralelismos complexos, densidade no tratamento dos temas,
relacionada a um ritmo criado por rimas imperfeitas, rimas internas, versos
livres, brancos e longos, além de pausas em meio aos versos.
Dos
primeiros aos últimos livros de poesia, vai abandonando formas simples e
abrindo um espaço cada vez maior para estruturas complexas. Em toda a sua
trajetória, se revela que em quase todos os poemas existem pontos em comum: a
letra maiúscula no início de todos os versos, a ausência de títulos em algumas
obras e a numeração dos poemas.
Na
contracapa da obra Amavisse, de 1989, anuncia um “adeus à literatura
séria” e desenvolve uma escrita erótica, surgindo então O caderno rosa de
Lori Lamby (1990), Contos grotescos/Textos d'escárnio (1990)
e Cartas de um sedutor (1991) em prosa, e os poemas satíricos
de Bufólicas (1992).
Nestes
escritos, apenas levou ao extremo uma linguagem que já frequentava sua obra,
deixando claro o projeto de alcançar um número maior de leitores. Alcançou o
êxito pela via do escândalo, ao chocar um grande número de pessoas pelo teor de
obras como O caderno rosa. A transgressão, experiência extremamente
necessária para o ser humano, representou para Hilda Hilst não a negação da
proibição, mas sua ultrapassagem.
Por todas as
razões, ler Hilda Hilst é como submergir em um universo literário complexo, um
labirinto, semelhante à leitura de um palíndromo: sua obra, para ser
compreendida, exige um ir e vir - ler do início ao fim, em um primeiro
momento, e reler do final ao início – para compreender certas imagens e
temáticas, unir pontas soltas que sua obra deixa em suspenso.
Por isso, é
preciso dispor-se a lê-la para entrar em contato com a dinâmica da vida, com a
complexidade humana e a complexidade do texto, que se combinam em um
refinamento de sons, palavras e imagens:
Poesia
XXII
Não me
procures ali
Onde os
vivos visitam
Os chamados
mortos.
Procura-me
Dentro das
grandes águas
Nas praças
Num fogo
coração
Entre
cavalos, cães,
Nos
arrozais, no arroio
Ou junto aos
pássaros
Ou espelhada
Num outro
alguém,
Subindo um
duro caminho
Pedra,
semente, sal
Passos da
vida. Procura-me ali.
Viva.
(Da morte. Odes mínimas)
Ligações a esta post:
Comentários