Big eyes, de Tim Burton - entre a bílis e o lugar emancipado da mulher
Por Alexandre Alves
Para um
antigo pensador grego, existem diferentes tipos de temperamentos que conduzem a
vida dos humanos. Há as pessoas sanguíneas, classificadas como instáveis e que
costumam mudar de comportamento com frequência e, por outro lado estão os seres
com temperamento melancólico, quem se identificam pela tristeza e reflexão. As pessoas
que têm um caráter fleumático estão sempre inseguras e trazem consigo um medo recorrente;
são, assim, as que mais sofrem devido sua condição ser a mais frágil ante um
mundo carregado de forças arbitrárias e racionais.
Neste silêncio
obrigado se encontram as almas que têm de sofrer uma série de adversidades
antes de descobrir seu valor e lugar no mundo ao ponto de enfrentar aquilo que
pouco a pouco lhe mata. Será que as pessoas com melhor coração são as que têm
de sacrificar-se pelas demais, despojando-se da própria felicidade? É uma
pergunta cara para respostas.
Como um
coração cheio de lágrimas e insegurança, a pintora Margaret Doris Hawkins se
dedicou a criar a imagens com uma singularidade que hoje não foi repetida. Seus
quadros têm algumas características que na década quando foram pintados, nos anos
1970, levaram a se transformar em objetos de culto. Ela pinta crianças – sempre
crianças – com olhos desproporcionais ao real e isso levou seu trabalho a ser
qualificado como big eyes. Mas, a
história por trás desse sucesso, e dos grandes olhos, é desgarradora.
É na
verdade, antes da história de uma pintora que galgou o sucesso com seu
trabalho, uma história de fraude. Comovedora ao ponto de levar o cineasta Tim Burton,
quem se encarregou de pedir a artista um retrato dele junto com sua companheira,
uma vez que, desde quando pequeno foi um fanático pelo universo artístico de
Margaret. Mais tarde decidiu retratar a história da artista no filme Big eyes (2014) em que ela é interpretada
por Amy Adams e Cristopher Waltz dá vida a Walter – a figura central na fraude.
Margaret
nasceu no Tennessee e desde jovem manifestou grande interesse pelo desenho;
estudou artes na sua cidade natal e concluiu seus estudos em Nova York. Durante
sua estadia na cidade dos grandes arranha-céus conheceu seu primeiro
companheiro, Frank Ulbrich. A relação sustentou-se bem durante algum tempo –
até tiveram uma filha, Jane.
Mas, dois
anos depois do casamento, tudo mudou subitamente. O caráter fleumático de
Margaret terá contribuído para que a única saída para o impasse tenha sido a de
fugir da relação. É quando vai – talvez numa ânsia por liberdade e por viver
além da aparência ou ainda, finalmente, alcançar uma existência mais autêntica –
San Francisco. Juntamente com a filha.
Este talvez
seja um dos instantes mais difíceis da extensa saga vivida pela pintora;
estamos numa época ainda de total submissão das mulheres aos homens e Margaret
é duplamente malquista, mesmo aos olhos de uma cidade aparentemente galgada no
centro de liberdade: é mulher e mãe solteira. É nessa circunstância de extrema
fragilidade e perseguida pelo companheiro de quem fugiu ao ponto de perder a
filha que ela, sem pensar duas vezes, aceita casar-se com um recém-conhecido,
Walter Keane. Ele é um suposto pintor que teria estudado nas escolas de arte
mais respeitadas da Europa – é um momento de interstício entre o drama deixado
para trás e outro porvir; isso porque ela acredita que finalmente terá
encontrado a possibilidade de dar vazão ao seu espírito criativo ao lado de
alguém de igual talento.
É quando se
multiplicam os horrores: a descoberta da Margaret sobre a real figura de Walter
e, de certa maneira, sua relação de cumplicidade com o companheiro em nome de
zelar pelo bem-estar da filha. Durante largo tempo, a pintora esteve submetida
a necessidade de pintar para um plagiador que construiu um nome e uma faras capazes
de enganar não apenas a ingênua pintora do Tennessee. Há viravoltas nessa
história toda que, apesar de tudo, o espectador não está diante de mais um acontecimento
real cujo desfecho foi trágico.
O que
continuou foi o sofrimento de uma artista que limitada de fortaleza espiritual –
e não será em vão sua conversão ao corpo das testemunhas de Jeová – a ponto de
manter largo tempo entregue a um lento suicídio; talvez o pior de todos, aquele
marcado pelo reconhecimento de outro que não dele mas seu. O afastamento de
Walter não terá sido o suficiente para a necessária libertação de Margaret –
esteve, mesmo distante, prisioneira de uma relação de submissão psicológica alimentada
por uma atração do oprimido pelo opressor.
Sua história se confunde com a lenta
história de construção do lugar da mulher na sociedade. Se por um lado, pode-se
pensar confortavelmente que sua condição é estreitada por uma imposição natural
dos humores, é preferível acrescentar ou mesmo sobrepor que não estamos diante
de uma situação conveniente ou confortável. Sobretudo, numa relação marcada servilismo
e por uma personagem alheia ao seu poder como interventora na suas próprias decisões.
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