As grandes ondas, de António Barahona (Parte II)
Por Pedro Belo Clara
Eis um facto agora
incontornável: a religiosidade da poesia, ou a poesia como veículo do e para o
Divino, está explícita no grosso dos poemas compilados neste livro. Daí aflora
o perfume místico que embeleza certos trabalhos e o carácter quase onírico que,
mais raramente, reveste outros. Mas ambos são, sem dúvida maior, os pilares
centrais que sustentam o poético habitáculo de António Barahona. Além disso, e de
modo mais subtil, pode depreender-se uma intenção de busca que em certos versos
surge admitida por meios mais abertos, aspecto esse que também se considerará
transversal aos demais1.
Falamos de poética
e naturalmente as razões do seu ofício, bem como diversas questões ou
ilustrações referentes à sua prática, não poderiam ocultar-se deste trabalho
cujas notas já lançadas serviram apenas o intuito de trazer da obscuridade
certos ângulos da face que ostenta.
No poema “As caves
do murmúrio”, que recebe uma breve referência a Mário Cesariny, encontramos nos
versos finais descrições que auxiliarão o leitor a entrar no mundo criativo do
poeta, bem como o processo pelo qual ele gira em torno de um sol provavelmente
chamado coração:
(…)
mil textos alinhados
de transcrição fonética da voz dos pássaros,
até compreender os seus significados.
(…)
instantes de harmonia,
falados em surdina, ao sabor da poética
do enigma das aves, que guia os meus passos.
Para que não
restem dúvidas quanto à sua proveniência, na óptica do autor, revela-se o
último verso de “O enigma das aves”, bastante esclarecedor, a nosso ver, da
razão derradeira: «Deus, Senhos das Caves». Algo que se corrobora na sexta
parte do já abordado “Verificações”, um poema bastante completo em sua
universalidade temática: «Quanto mais poético, mais simples e perto de Deus».
Sendo que a prática da arte em si visará a dita aproximação através de um
escarvar de superfície, de um mergulhar (relembremos o cariz de busca) no
imenso lago das aparências em nome do resgate do significado primeiro. Não se estranha,
assim, o amor de Barahona pelos símbolos e suas representações, algo de que a
Poesia, essa «gramática da nudez concisa», também não se expurga.
Mas um poeta2
será igualmente um escriba dos fenómenos do mundo e dos acontecimentos de
relevância social. Relativamente a este aspecto, encontramos alguns poemas de
menor idade onde, adoptando uma visão arguta e em tantas ocasiões irónica, o
autor expõe a sua abordagem ao assunto3.
Em “A Europa”,
assistimos primeiro a uma crítica aberta à conduta da União Europeia enquanto
uma comunidade económica esquecida dos mais fulcrais princípios teóricos dos
seus fundamentos, uma instituição que à data parecia responder somente, e de
modo tão ordeiro e fiel, aos intentos da Chanceler alemã Angela Merkel: «A
Europa da morte. / A Europa sem Deus. // São colónias da Alemanha / Portugal /
e restantes países europeus». Outro exemplo será “Os passos do coelho”, poema
onde de modo mordaz aborda a manifestação popular às portas do parlamento em
setembro de 2012, em plena era de crise económica e social. O próprio nome do
poema é uma referência ao primeiro-ministro de então, Pedro Passos Coelho.
Embora a criação poética
de Barahona adquira traços que o próprio considera, por vezes, passivos
(«transcrevo e não me atrevo a calar o estrépito», “Ditado sem
interferências”), é também na imagem poética que o autor se revê, despido das
maiores ilusões ou desejos próprios da vivência mundana. Como um criador diante
da própria criação, inevitavelmente nesta se imiscui, ainda que frise, a
momentos, essa «ciência de escrever, primeiro que tudo, para si próprio»
(“Caderno de apontamentos”). Trata-se de um acto não isento de dor («o sangue
pinga da caneta de tinta permanente», “Um grande silêncio”), mas tão natural ao
poeta quanto o seu respirar4.
Centrado em seu
paciente labor, pois há que ilustrar esse «diário dum recluso / em liberdade na
prisão do mundo» (“Epílogo”), vai tecendo o poeta as malhas do intricado ofício,
uma mera extensão da sua natureza mais íntima. É o que nos esclarece “Vida e
Poesia”:
Quando o poeta é praticante
não diz: isto é a minha vida
e isto a minha poesia;
mas, sim, afirma
isto sou eu:
vida e poesia sem dicotomia
O tempo, contudo,
eterno crítico por vezes benevolente, apresenta-se como o maior aliado à
maturação do processo: «Cavalgo o tigre, mas já não me esforço / por não cair
(…)» (“Cavalgar o tigre”). Mas a indissociabilidade de ambos, poeta e poesia, assim
como Homem e Deus, é facto que não tolera dúvida ou separação. A unidade faz o
homem com traços de verso e rima. É o próprio quem o admite em “Auto-retrato”:
Apenas um homem
com febre de versos:
minha sã imagem
nua até aos ossos.
Não se consegue
compor um trabalho assim sem invariavelmente captar as impressões deixadas pela
passagem temporal e por determinadas vivências existenciais. Agora que nos
aproximamos do fim, iremos destacar excertos de alguns poemas espalhados pelas
cristas destas grandes ondas, onde o poeta derrama ora o seu pesar, ora a sua
saudade (muitos referem, inclusive, poetas e amigos entretanto falecidos).
Primeiro, lembremos
o aviso lançado pelo próprio: «Memórias do poeta são abismos ascendentes»
(“Memórias do poeta”). Não obstante, os anos avançam sobre o homem, e a
inevitabilidade da morte torna-se uma certeza cada vez mais palpável: «A minha
juventude tanto envelheceu / que me perco de vista, já quase morto» (“O bolero
e o café campainhas” – anos cinqüenta/sessenta). Diante da evidência, é difícil
não voltar o rosto aos dias consumidos e, assim, finalmente observar a
quantidade massiva de imagens, de gestos, de toques, de sorrisos ou lágrimas
entretanto despedidos: «Já o passado pesa mais do que / pesadelos com olhos de
catástrofe» (“Já o passado pesa mais do que”).
Trata-se de um
livro rico e fiel à imagem do autor, este As grandes ondas. Afinal, tem a
responsabilidade de responder com mais de setenta poemas a mais de quarenta
anos de produção poética. É um livro de muitos discursos, sem dúvida, mesmo que
neles uma unidade possa ser deduzida, ainda que certos críticos prefiram
referir-se àquilo que chamam a “anarquia poética de António Barahona”. A busca
de Deus, o seu louvor e celebração são elementos, como vimos, centrais ao seu
trabalho, canalizados por poemas cujo aspecto visual por vezes quer lembrar
esses outros nascidos de séculos passados. A pontuação é recorrente, mas também
abordámos poemas onde o autor se decidiu por ocultá-la. O mesmo se passa com o
uso da rima, ainda que seja mais escassa. Certos aspectos formais evocam as
odes de outros tempos, mas principalmente é a decisão de manter determinadas
formas vocabulares que remete o leitor para uma linguagem escrita a que não
mais se recorre. O confronto com todos os elementos atrás referidos terá, sem
dúvida, neste um impacto curioso pela sua aprazível singularidade.
Visámos plantar,
fiéis ao intuito desta coluna, as sementes que considerámos necessárias para
que o nosso leitor habitual ou ocasional possa agora, por si, descobrir mais
sobre o autor e a obra proposta. Afinal, se sufocada for essa magia tão ímpar
ligada à descoberta do perfume de outras literaturas, estar-se-á a suprimir
talvez uma das maiores belezas que o processo de leitura permite desfrutar.
Por isso, estando
regado o canteiro, só podemos esperar, com a melhor das boas vontades, o momento
das flores desabrocharem no âmago de quem nos leu.
Notas:
1 No ponto décimo-quinto do texto que temos
vindo a citar nas notas de margem, confessa-se o seguinte: «(…) o estado de
poeta (…) só o ganho nalguns momentos em que procedo como instrumento de Deus.
– Quem é Deus? Estou sempre a fazer esta pergunta».
2 A respeito da dita figura, ler-se-á nos
pontos oitavo e décimo-terceiro as seguintes considerações: «Profetas e poetas
(…) são emissário de Deus na diversidade una do Espírito, que sopra quando e
onde quer, para que à espécie humana reste, após cada dilúvio, a possibilidade
de reunir o remanescente em redor do fogo» ; «O poeta é o único homem livre,
porque nem a própria liberdade o consegue aprisionar».
3 Apesar dos parâmetros descritos já não se
verificarem em toda a sua máxima expressão nos dias que correm, captam parte da
essência do clima vivido em 2011 e 2012, aquando do resgate financeiro de
Portugal por parte do Fundo Monetário Internacional e subsequentes cortes no
orçamento do estado, ordenados e pensões, e aumento e até criação de novos impostos.
Muitas destas medidas foram recebidas pela população sob fortes protestos às
portas da Assembleia da República.
4 A alínea final do texto a que nos temos
vindo a referir nestas anotações de margem, ilustra relativamente a este
assunto o sentimento do próprio autor: «E pergunto-me por que escrevo, do mesmo
modo que me pergunto por que respiro; e aproprio-me de tudo, a fim de
vislumbrar o Todo, na tentativa de converter em harmonia a dissonância do
mundo». Como se constata, a ligação ao Divino, ou pelo menos a sua tentativa,
encontra-se presente em cada gesto, em cada respirar.
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