Viver, beber e escrever
Por Ulises Culebro
O poeta John
Berryman seguia uma estrita dieta constituída de um litro diário de uísque
enquanto escrevia na década de 1960 seus poemas de The dream songs. Em seus anos em Cuba, Hemingway chegava a beber 16
daiquiris numa sentada, um recorde só superado pelos 18 uísques que parecem
ter levado à tumba Dylan Thomas. Some-se (ou melhor, subtraia-se) os licores em
questão nalgumas dessas ocasiões e as longas conversas que também as acompanham
e só assim terão uma ideia aproximada das proezas desses titãs da bebida.
Em Viagem ao redor da garrafa, Olivia Laing
se dedicou a seguir o rastro de seis dos muitos escritores estadunidenses
marcados pela bebida; dos oito prêmios Nobel de Literatura (homens) que teve os
Estados Unidos, cinco eram alcoólatras. Ajudada pelos lugares onde viveram e
beberam John Cheever, F. Scott Fitzgerald, Hemingway, Raymond Carver, Tennessee
Williams e John Berryman, a autora traça um mapa topográfico do alcoolismo na
literatura.
O Viagem ao redor da garrafa do título é o
nome em chave do bar móvel (e do bourbon
que contém) ao qual Brick, o beberrão de Gata
em teto de zinco quente, diz que vai, quando seu pai lhe pergunta aonde
vai. Laing tenta dar uma resposta através do livro a uma questão mais complexa:
Por que os escritores (em especial) bebem?
Razões para beber
Tennessee Williams |
Obviamente
que ninguém conhece com certeza os motivos, embora para Tennessee Williams um
homem beba por duas razões: “1. Está morto de medo de alguma coisa. 2. Não pode
enfrentar a verdade de alguma coisa”. Medo, vingança e autocompaixão eram os
sentimentos que no seu caso devia acalmar com ingestões desse cariz: “Dois
uísques no bar. Três bebidas pela manhã. Um daiquiri no Dirty Dick’s, três
taças de vinho para o almoço e três para o jantar. Além de duas pastilhas de
Seconal (um barbitúrico), de momento, e um tranquilizante verde cujo nome não
sei e um amarelo que creio que se chama reserpina ou algo assim”.
Hemingway
chegava a cantar louvores ao álcool, que havia tomado desde os quinze anos e
era uma das coisas que lhe haviam “proporcionado mais prazer” na vida. Sobre o
lado profissional do assunto, dizia: “Quando você trabalha duro todo dia com a
cabeça e sabe que tem que trabalhar de novo no dia seguinte, que outra coisa
senão o uísque pode mudar suas ideias e fazer que se movam num plano
diferente?”
Hemingway,
bebedor de resistência formidável, chateava-se que seu amigo F. Scott
Fitzgerald perdia os papéis só com um copo do seu alcoolismo já avançado. O
autor de O grande Gatsby confessava
ao seu editor a dupla tragédia do escritor submisso a uma garrafa: “Bebi demais
e isso sem dúvida está me acabando. Por outro lado, sem bebida não sei se
poderia haver sobrevivido esta vez”. O álcool como freio e ao mesmo tempo como
motor. Um paradoxo cruel.
Imaginação e ansiedade
John Cheever |
John Cheever
acertou vislumbrar que talvez contar histórias esteja relacionado “de alguma
forma confusa e misteriosa” – destaca Olivia Laing – com o desejo de beber. “O
escritor cultiva, estende e aumenta a imaginação”, diz. “À medida que aumenta
sua imaginação, também faz sua capacidade para sentir ansiedade”, e daí
entregar-se à bebida é só um passo.
Embora
Hemingway reprovasse Scott Fitzgerald sua baixa tolerância ao álcool, sua
fortaleza não o eximia padecer os graves transtornos que ocasiona o consumo excessivo
de bebida. A caótica estrutura das últimas obras de Williams pode dever-se a
danos cerebrais causados pela bebedeira. O conto “O nadador”, de John Cheever,
avança aos tropicões, mas bem ao ritmo dos apagões próprios de um alcoolizado,
seguramente porque quem o escreveu tinha que ir às pressas numa tenda de
licores quando sua família não havia saído de casa à hora de seu primeiro trago
matutino.
Muitos fios
unem as vidas dos seis escritores cujos passos são reconstruídos por Laing,
assim como os de outros amigos do álcool e da literatura. Cheever e Carver
secando um bar quando eram professores em Iowa, Berryman na cabeceira da cama
de Dylan Thomas depois de seu colapso etílico, Fitzgerald e Hemingway – ambos
atormentados pela insônia – levantando o copo juntos na Paris dos anos 1920;
Williams, Faulkner, Capote e Hemingway unidos no gosto pelo Carousel Bar de
Nova Orleans.
Pais suicidas
Ernest Hemingway |
Berryman
compartilhou outro feito crucial com Hemingway. Os pais de ambos se suicidaram
com um tiro e eles seguiram seu exemplo, se bem que o poeta e professor não se
valeu de uma arma mas se jogou de uma ponte em Minneapolis. Cheever foi
perseguido durante toda a vida pela imagem de seu pai com uma garrafa de
cerveja na mão ameaçando jogar-se do alto de uma montanha russa.
Laing,
vítima também de um caso de alcoolismo na família, rastreia outras
características comuns aos escritores de Viagem
ao redor da garrafa e cita entre eles “um casal de progenitores totalmente
freudiano: uma mãe autoritária e um pai débil”, desprezo por si mesmo e “certa sensação
de inaptidão”, “conflitos e insatisfação sobre sua sexualidade” e vingança de
suas origens humildes na maioria dos casos.
Tudo isso
deriva, segundo a escritora e crítica literária, em suicídios ou mortes “relacionadas
com a vida dura e aziaga que levaram”. Os protagonistas desse grupo tentaram
deixar o álcool, “com mais ou menos esforços, mas apenas dois deles
conseguiram, já em idade avançada, desintoxicar-se” – refere-se precisamente
aos colegas de Iowa.
Depois de
passar os afazeres universitários a John Updike e de tomar um litro de uísque
no trajeto até Nova York, Cheever ingressou de má vontade no Centro Smithers de
reabilitação, por onde também passariam Truman Capote, e milagrosamente deixou
de beber para sempre. Quando, doente terminal de câncer, os médicos o
aconselharam retomar a bebida, mas preferiu manter-se sóbrio. Havia deixado
dito numa frase para os Alcoólicos Anônimos que “A bebida é para alguns de nós
um guia até a morte, uma maneira de suicidarmos”.
Uma
narrativa de sobriedade
Nos últimos
anos de sua vida publicou Falconer,
segundo a revista Time um dos cem
melhores romances da história. Nela narra a estadia na prisão e a fuga de
Farragut, um viciado em heroína preso por haver matado seu irmão. “Cheever converteu
a fuga de Farragut, a dependência e a prisão numa maneira de sublinhar e
impulsionar a sua”, escreve Laing.
Por sua vez,
Carver, preso na penúria econômica e de uma família que o asfixiava, havia
jogado a toalha de sua vida e começado a “beber a vida inteira como se fosse
uma ocupação”. Um médico lhe disse numa ocasião que um trago a mais podia acarretar-lhe
graves danos cerebrais; em resposta passou a noite “mamando brandy de uma garrafa como se fosse Pepsi”.
Depois de
várias tentativas falidas de desintoxicar-se, quando seu amigo publicou Falconer, Raymond Carver deixou sua
família e voltou às reuniões dos Alcóolicos Anônimos. Sua editora ofereceu então
um adiantamento de cinco mil dólares para um romance; caiu, quando soube da
notícia, numa grande bebedeira, mas quatro dias depois bebeu o último copo de
sua vida.
Do que estamos falando quando falamos de
amor é uma antologia famosa de contos, entre outras razões por sua aridez. O
próprio Carver explicou como ninguém até que ponto a vida, e no seu caso o
alcoolismo, acaba por dominar a literatura. “Esqueci a maioria do que me passou
na vida [...]. Talvez por isso se disse que minhas histórias não têm adornos,
que são austeras. [...] Quando tento recordar o entorno físico ou os elementos
de uma situação [...] ao menos estou completamente perdido. Assim que tenho de
inventá-lo à medida que avanço.
Méritos e desacertos
Marguerite Duras |
Viagem ao redor da garrafa tem vários
méritos, como revela ter sido o finalista do Prêmio Costa e ter sido escolhido
um dos finalistas de livro do ano pelo New
York Times e Time magazine: a
rapidez a facilidade com que se lê, a capacidade de observação da autora, o interesse
que o tema suscita entre os leitores os escritores de que fala.
Apesar
disso, constitui uma decepção que nem as vidas desgraçadas e fascinantes dos autores
sobre os quais fala consegue dissimular: por um lado porque não parece evidente
que exista algum vínculo entre a viagem da autora e seu propósito de “saber por
que os escritores bebem e que efeito tem este caldo de licores na própria literatura”;
por outro lado, porque a informação sobre eles provém de biografias facilmente
acessíveis e não traz nenhuma novidade. Finalmente, porque apesar do que sustém
a autora, “os escritores são, por sua própria natureza, quem descrevem melhor
que ninguém a aflição”, a negação própria do vício e a habilidade do escritor
com as palavras converte seu testemunho “uma massa inconsistente de materiais
que se movem desconsertadamente entre o relato honesto, ao automitificação e o
engano”.
Se há algo a
mais por detrás dos relatos sobre o álcool, Laing não encontra, e o que
estabelece é um vínculo entre o alcoolismo e uma infância desgraçada e o “sentimento
de que algo valioso se havia feito em pedaços” que soa mais que provável, assim
como as “pequenas fantasias de higiene, purificação, dissolução e morte” que
apareciam nos contos sobre álcool. A autora tampouco explica satisfatoriamente
por que escolhe estes seis escritores e não tantos outros que também foram
alcóolatras (William Faulkner, Truman Capote, Jean Rhys, Hart Crane, Marguerite
Duras, Edgar Allan Poe, Malcolm Lowry, Brendan Behan, Dylan Thomas – a lista é
enorme) nem se as funções que o álcool cumpriu na vida de cada um dos seus
biografados não foi distinta de caso em caso. A importância dos vínculos entre
literatura e alcoolismo obriga uma imersão no tema, mas este livro, independentemente
de seus méritos, não os leva em consideração.
Beberrões para todos os gostos*
Os muitos
escritores que tiveram apego ao álcool tinham suas bebidas preditas. Os mais ilustres
adeptos do vinho foram Omar Khayyām, Catulo, Rabelais, Montaigne, Onetti, entre
outros. O absinto fazia as delícias de Oscar Wilde, Charles Baudelaire ou Paul
Verlaine; Fernando Pessoa era um incondicional amante da cachaça, Malcolm Lowry,
do mescal. Dostoiévski honrava sua pátria com a vodca e Alexandre Dumas
preferiu dilapidar sua fortuna em champanhe.
O uísque teve
legiões; de James Joyce a Samuel Beckett, de Dylan Thomas a Raymond Chandler –
este último também um apaixonado pelo gim. No Brasil, Vinicius de Moraes, que
poderia entrar para essa extensa lista, dizia que o "O melhor amigo do
homem é o uísque; o uísque é o cachorro engarrafado". Tennessee
Williams era apaixonado pelo uísque e pelo Gin Fizz, preparado por seu barman
favorito de Nova Orleans; Cheever era mais amigo do gim, mas não fazia cara
feia para um livro de uísque; F. Scott Fitzgerald, que preferia também a bebida
branca, na crença de que era indetectável pela respiração.
Ainda dos
brasileiros é fácil citar a preferência de Paulo Leminski pelo vinho no começo
da noite e depois vodca; Lima Barreto pela cerveja; Jorge Amado, como bom
nordestino e brasileiro, pela cachaça.
Os escritores
estadunidenses sempre tiveram predileção em geral pelos coquetéis mais
sofisticados. Truman Capote gostava do Chave de fenda (à base de vodca e laranjada);
Faulkner pelo julep de hortelã; Kerouac pela marguerita; Dorothy Parker pela gin
Martini; e John Steinbeck pela Jack Rose que misturava calvados com grenadine.
Entre os bebedores
profissionais, Charles Bukowski tinha “uma amante eterna”: o uísque combinado
com a cerveja embora não desperdiçasse nenhuma ocasião de embebedar-se; quando
Bernard Pivot, o diretor e apresentador do popular espaço sobre livros da televisão
francesa Antena 2 Apostrophes, lhe
ofereceu uma taça de vinho branco em seu programa, o escritor decidiu que era preferível
tragar a garrafa inteira (se não foram duas). Muito se sabe do seu catecismo
sobre o álcool: “Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece
algo de bom, bebe-se para celebrar, e se nada acontece, bebe-se para que
aconteça qualquer coisa”.
Hemingway
bebia de tudo e em quantidades inconcebíveis: uísque, mojitos, daiquiris (como
Graham Greene e Alejo Carpentier) e, como no seu famoso Morte à tarde, absinto e champanhe. A preferida de Joseph Roth que
bebeu até à morte se chamava Suze a la mirabelle e consistia em conhaque com
aguardente. O chileno Roberto Bolaño gostava de desfrutar do Charro negro,
coquetel que aparece em dois de seus romances – Putas assassinas e Chamadas telefônicas
– e dos ingredientes tinha tequila, Coca-Cola e sumo de limão. Entre os espanhóis,
Gabriel García Márquez era fã do Añejo Highball, Vargas Llosa do Chilcano e
Cortázar da cubra libre.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livre para "Vivir, beber, escribir" publicado no El mundo; neste item, acrescentamos dados sobre escritores brasileiros que também ajustam-se aos casos examinados por Olivia Laing. O item "Méritos e desacertos" é de Patricio Pron de parte do texto "Que no has de beber" publicado no El País.
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