Salim Miguel
Um silêncio
que se constrói em torno de uma obra cujo interesse não se deixa contaminar
pela sede do mercado não pode servir de parâmetro para dizer que um escritor e
uma obra são menores; em grande parte, é esta uma clara displicência, primeiro
dos seus contemporâneos, depois dos leitores sempre mais suscetíveis a
encontrar e ficar restrito ao que lhe é oferecido como produto de primeira
qualidade no dobrar de uma esquina. Muitos já terão reparado reiteradas vezes
que o mal está não no escritor ou obra que se escondem mas naqueles que de
algum tempo passaram a controlar e determinar o que tem se firmado como padrão
de leitura. Nesse território de displicências ganha o leitor que não se deixa
levar pelo que o mercado lhe impõe e busca de alguma maneira reconhecer o que
está fora desse eixo; sim, porque fora dele, ainda se concentra boa parte do
que podemos chamar de boa literatura.
Assim se
passa com a obra de Salim Miguel. Despreocupado em atender a demanda castradora
do mercado e interessado em construir uma obra que significasse para a cena da
qual fez parte, terá conseguido elaborar um importante projeto literário que
merece ser descoberto pelos leitores. A afirmativa não é vazia: o escritor tem,
pelos livros que escreveu, grande força para construir – felizmente ou infelizmente
– o que comumente se chama sobrevida. Felizmente porque a boa obra é justamente
esta que ultrapassa a existência física de quem a escreveu; e infelizmente porque
o reconhecimento em vida não é apenas um agrado necessário ao escritor e sim a confirmação
sobre os motivos que o levaram à elaboração de sua obra e um de certa maneira um teste de resistência se ele é, de fato, um bom escritor, ou fogo de palha.
Em Salim,
essa sobrevida nascerá porque além do conjunto de obra que deixou, ficaram algumas
centelhas bem capaz de brotar com a lembrança, ainda que tímida desse mercado quando da passagem de sua morte;
o futuro poderá retirá-lo do silêncio que fez parte em vida, embora não se possa esquecer
de que a possível escolha do escritor tenha contribuído significativamente para
a construção de seu talento literário, marcado por alguns momentos importantes (e de reconhecimento) como quando recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras,
pelo conjunto de sua obra, ou o de Melhor Romance da Associação Paulista dos
Críticos de Arte por ocasião da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo (o
atual prêmio Zaffari-Bourbon) ou o de Melhor Romance pela União Brasileira de Escritores.
Isto é, não é nenhum silêncio surdo o que paira em torno da obra de Salim
Miguel; lugares importantes reconheceram o brio de seu trabalho.
O escritor
pertence ao grupo dos escritores não situados no território de origem, tal como
Clarice Lispector ou Franz Kafka, que fortemente marcados pela força expressiva
de outra língua e a possibilidade de renovação do idioma e consequentemente da
sua literatura, construíram uma obra singular e universal. No caso de Salim,
ele chegou ao Brasil aos três anos, quando a família veio de Kfarssourun, no
Líbano; desembarcaram no Rio de Janeiro em 1927 e viveram
na então capital do Brasil por um ano. Depois se fixaram em Santa Catarina,
onde Salim cresceu, fez seus estudos, construiu sua carreira literária e morreu
no dia 22 de abril de 2016.
*
"Comecei a
escrever antes de aprender a escrever. Naquela época, fim dos anos 20, começo
dos 30, depois das estripulias diárias, a criançada se reunia ora na frente da
casa de um, ora na frente da casa de outro, e cada um relatava como é que tinha
sido o seu dia. As correrias, as brigas. Hoje, nós brigávamos; amanhã, éramos
grandes amigos. Então, eu cortava uma folha de papel-embrulho da loja de meu
pai, recortava palavras ou letras, juntava alguns rascunhos meus. Linhas na
horizontal, na vertical, em círculos. E lia aquilo pra eles. Lia não, porque eu
não sabia ler. Inventava que estava lendo. Ali estava surgindo, ao mesmo tempo,
o jornalista e o escritor. Então meu pai, me vendo grudado em tudo que era
papel impresso, vendo aqueles signos mágicos me fascinarem, me perguntou: “O
que pretendes fazer na vida?”. Sem titubear, respondi: “Ler e escrever”. Minha
mãe, que era uma mulher sensível, disse: “Não vai ser fácil”. E meu pai: “Fácil
não vai ser, mas se ele persistir, conseguirá”. Então, uma palavra que me
acompanha toda a vida é “persistir”."
O depoimento de Salim sobre seu contato com a leitura e a escrita é muito pertinente; reafirma que a arte ou o artístico é em grande parte técnica, mas é algo que persiste o artista desde berço, como se uma condição inerente. Infâncias e exercícios de fantasia à parte, aquilo que lhe perseguiu a vida toda, começou a despontar sinais da gesta ainda na década de 1940 e durante toda sua vida esteve nele imerso porque sempre foi muito
ligado ao universo das letras, desde quando começou a constituir-se leitor
quando, aos oito anos, caiu de amores por O
tronco do ipê, um romance de José de Alencar; como escritor, apareceu pela
primeira vez quando começou a publicar textos em jornais de Florianópolis –
isso deu-lhe experiência para o jornalismo, área da qual fez parte elaborando fotorreportagens
para a revista Manchete e construindo
entrevistas com importantes figuras da literatura brasileira, como a que fez
com o poeta Carlos Drummond de Andrade para o jornal O Estado; escreveu crítica literária para o Jornal do Brasil, foi roteirista, em parceria com sua mulher, Eglê
Malheiros, de peças como o primeiro longa-metragem produzido em Santa Catarina,
O preço da ilusão; foi editor,
redator, dono de livraria; esteve à frente de cargos burocráticos como a
Editora da Universidade Federal de Santa Catarina a Fundação Cultural Franklin
Cascaes.
Salim e sua companheira Eglê. Arquivo do escritor. |
Salim foi um
dos precursores do movimento modernista em Santa Catarina; em 1948, por
influência dos ventos de 1922, fundou a Revista Sul, responsável por sustentar os jovens escritores do Círculo de Arte
Moderna – foi assim que ficaram conhecidos pela primeira vez os que mais tarde
passaram a se chamar Grupo Sul, círculo que iniciou oficialmente um ano antes quando
da apresentação de peças teatrais. Ao contrário de muitas revistas que nasceram
no torvelinho da Semana de 22, esta ficou atividade durante cerca de dez anos e
serviu de intercâmbio a escritores de diversas partes do Brasil e de fora, constituindo-se
numa das mais importantes publicações do país. O grupo do qual Salim fez parte
era bastante heterogêneo – tinha escritores, atores, artistas plásticos, todos
interessados em subverter alguns dos valores ainda vigentes nas vagas produções
intelectuais da provinciana Santa Catarina.
Em 1948, Salim
publicou o primeiro livro, Velhice e
outros contos, obra que reuniria desde o título uma de suas obsessões, o tema da velhice, esquadrinhado de forma diversa
numa e noutra das mais de trinta obras. Além do tema, o escritor dedicou muito
interesse a forma como a memória participa na construção expressiva da narrativa,
como bem explorou num de seus livros mais conhecidos, Nur na escuridão (de 1999); a particularidade desse romance está
num narrador que tece uma trama marcadamente autobiográfica. “Como uma espécie
de alter-ego do escritor, traça a gênese de sua atividade e discute com o
leitor as estratégias discursivas de recuperação da memória, com idas e vindas
no tempo, obedecendo ao fluir das lembranças, procurando-as, misturando-as às
referências literárias, adiantando ou retardando tempos, alternando espaços”,
observa a professora Maria Zilda Ferreira Cury.
Como muitos
do seu tempo, Salim teve sua vida marcada pelos males da ditadura. Após o golpe de 1964, o escritor foi preso
juntamente com sua companheira; a vivência do trauma de cerceamento da
liberdade, mesmo que tenha sempre concordado não pertencer a nenhum partido
político embora nunca tenha se negado a dizer que fosse “subversor” tal como o
acusaram, serviu de base para a escrita do livro Primeiro de abril. Salim ficou por quase dois meses na prisão.
Mais tarde contou como esse foi escrito e o trabalho que desafogo da injustiça que lhe cometeram: "Fiquei 48
dias preso. Fui preso em 2 de abril e solto em 20 de maio. Fiquei no alojamento
do Quartel da Polícia Militar de Florianópolis. A Eglê me mandou um caderno e
um lápis — lá não podia entrar caneta, era uma arma muito perigosa. Então, fui
fazendo anotações a respeito das minhas reações e das reações das 60 pessoas
que estavam comigo. Só que deixei aquilo dormir por exatos 30 anos. Não queria
dar meu depoimento com rancor ou com mágoa. Queria dar um depoimento isento.
Como foram aqueles 48 dias, como é que cada um de nós reagiu. Só que tentei
escrever na primeira pessoa. E era “eu” demais. Na terceira, me dava um
distanciamento que eu não queria. Então, o livro todo é narrado na segunda
pessoa (...) ele se chama Primeiro de abril: narrativas na cadeia.
Ao mesmo tempo em que não há nada ali que não seja real, essas narrativas são
ficcionalmente trabalhadas".
No período
que o casal esteve reencontrado, foram viver no Rio de Janeiro, mas ficaram
pouco tempo – sobreviveram com Eglê trabalhando na revisão e tradução de livros
e Salim escrevendo para a imprensa – foi quando começou sua relação com a Manchete e o Jornal do Brasil. Os dois voltariam para Santa Catarina em 1979.
O jovem Salim. Arquivo do escritor. |
Além dos três
livros citados, o leitor pode conhecer a obra de Salim a partir de Mare Nostrum, um dos seus últimos romances;
publicado em 2004, a narrativa é construída à maneira de um jogo de montar – são
histórias de personagens que vivem próximos ao mar na Cachoeira do Bom Jesus, Florianópolis.
Na obra, diversas vozes e histórias se
intercalam e compõem um denso mosaico que reanima uma das forças da literatura
brasileira modernista: a dialética entre tradição e modernidade pelo contraste
do rural e antigo com o contemporâneo e urbano.
Outro título
de destaque é o romance A vida breve de
Sezefredo das Neves, poeta. Publicado em 1987, a narrativa é sobre um grupo
de jovens intelectuais que ensaia uma nova literatura; nesse contexto, que
muito lembra as raízes literárias do próprio Salim, o narrador detém-se na
história do mais talentoso poeta de uma geração que se torna um homem de
negócios totalmente indiferente à arte; misto de recriação de nomes como
Rimbaud, esta obra é o retrato, além desse protótipo do sujeito pouco afeito ao
lugar dos literatos, um registro sobre a geração perdida.
José Saramago e Salim Miguel. Foto de Paulo Sérgio Miguel. Arquivo do escritor. |
O penúltimo
livro que escreveu foi Reinvenção da
infância, descrito como um testemunho sobre a forte subjetividade da experiência
do universo das crianças. Situada entre duas cidades recorrentes no universo
ficcional de Salim, Biguaçu e Florianópolis, a obra conta as experiências de um
menino estrangeiro que precisa se adaptar à cidade e à própria infância. A obra
é fortemente marcada por uma das capacidades mais marcantes da narrativa
contemporânea – a objetividade; Falamos de um escritor que afirmou que gostava
de haver escrito uma obra como Pedro
Páramo, de Juan Rulfo.
Já seu
último trabalho, dedicou-se por explorar aquilo que ainda não havia experimentado
como escritor: em 2015, voltou a um projeto que havia iniciado em 2012, e
findou o que chamou de novela policial com uma trama situada em Brasília e que
reúne personagens de várias partes do Brasil; como todo texto do gênero,
acontece um assassinato e de então um mistério para se descobrir quem é o culpado.
Há evidentemente
um extenso universo que se esconde e precisa da atenção dos leitores para
revelá-lo. Que a riqueza desse trabalho, está claro, ninguém haverá de negar, sobretudo
a produção literária do instante de sua maturidade – a que veio com a publicação e também retorno de Salim
ao universo da escrita romanesca pós-década de 1980 com a publicação de Voz submersa. Resta dizer, mãos à obra!
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras copiamos uma galeria de imagens raras sobre o escritor Salim Miguel.
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