Polifonia e sectarismo em A Brincadeira
Por Rafael Kafka
A Brincadeira, de Milan Kundera, é um romance construído de forma
bastante engenhosa e que se caracteriza por reunir alguns temas recorrentes na
obra do escritor tcheco. Temos presentes neste romance os jogos de amor, as
questões existenciais ligadas ao ego e à identidade e a crítica aos regimes
totalitários de esquerda que encabeçados pela União Soviética dificultaram
demais a vida dos habitantes do leste europeu.
A história gira em torno de
Ludvik, um homem que quando jovem pertenceu ao quadro Partido Comunista.
Todavia, em dado momento, ele faz uma brincadeira de aparência inocente e fútil
em uma carta enviada a uma antiga namorada. A peça consiste em citar uma frase
de Trotski, inimigo mortal dos comunistas stalinistas, o que é descoberto por
membros da comunidade acadêmica da qual Ludvik faz parte. Levado a juízo, é
expulso do partido e tem o direito de seguir os estudos negado, tornando-se uma
espécie de pária na sociedade tcheca.
O relato de Ludvik se dá anos
depois de isso ocorrer, quando ele se encontra na Morávia e está prestes a ter
um momento amoroso com Helena, moça que ao contrário dele ainda é uma
entusiasta do partido comunista. Essa moça e mais dois personagens, Kotkska e
Jarislav também assumirão o papel de narrador da história em algum momento. E é
isso que torna a história de Kundera interessante.
O uso da polifonia traz uma
série de problemas para o escritor. O principal é a necessidade de
convencimento do leitor no tocante à necessidade da presença das múltiplas
vozes dentro do romance. Muitas vezes, os vários narradores são apenas um,
diferenciados apenas por pontos de vistas que se complementam. No geral, a
escrita do romance não sofre mudança significativa e cada um dos narradores
parece uma cópia do outro. Kundera, mesmo em um romance de espera, consegue ser
habilidoso no uso da polifonia narrativa dando a cada narrador uma identidade
própria, marcada no modo como narra.
Assim, Ludvik possui uma
narrativa mais fluida e crítica ao sectarismo do partido comunista, que o levou
ao limbo social do qual saiu após muito esforço. Sua narrativa é cheia de fatos
entrelaçados e recorrências e o seu individualismo salta a cada página escrita.
Já Helena é dona de uma narrativa mais difusa que visa a passar seus estados de
alma perturbados e cheios de dúvida no tocante ao casamento ao qual está
prestes a trair. Jarislav assume um ar de folclorista que valoriza a música
popular como o elo a fortalecer os laços nacionais no novo regime e Kotska é o
cristão comunista perseguido por praticar clericalismo.
Cada um desses narradores possui
uma existência marcada em algum ponto pelo comunismo. Kotska, por exemplo, vê
na teoria marxista muitos ensinamentos cristãos transformados em teoria
política. Por isso, mesmo sendo partidário de um sistema político preconizador
do ateísmo, ele não se sente dividido entre um e outro: com seu ar de pregador
do evangelho, torna-se entusiasta do comunismo e vê nele a esperança de se
fazer a justiça entre os homens.
Mesmo com todos esses narradores
com identidades bem definidas, a história tem como foco central Ludvik. É ele
quem mais espaço de fala tem, bem como é objeto central de diversas outras
reflexões dos demais personagens. Percebemos em Ludvik um profundo sentimento
de revolta com o passado político de sua existência além de um constante desejo
de vingança. Em diversos momentos, evidencia-se que a crítica maior de Ludvik
ao comunismo é o sectarismo presente nos corpos políticos que o compõem. Em
suas análises do ocorrido consigo, vemos uma certa despersonalização daqueles
que defenderam a tese marxista naquele momento histórico. Tal despersonalização
é denunciada por Ludvik como uma perda de identidade pessoal, uma perda da
opinião própria de cada um. Dentro do corpo do partido, quem adentrasse deveria
assumir o que era defendido como posição oficial do mesmo, não ousando jamais contrariar
tal posição. Aos poucos, percebemos que uma teoria política cujo fito maior era
a derrubada de uma sociedade de classes cheia de injustiças e desigualdade se
torna uma espécie de religião sem Deus, abandonando o seu caráter dialético e
tornando-se puro dogmatismo.
Isso se evidencia de forma bem
interessante no solilóquio de Kotska, quando este aceita uma punição injusta
dada pelo partido a ele. A obediência cega à entidade e a crença em um ser
superior e mesclam e ele aceita a pena com estoicismo, pois nada mais resta
fazer, exceto aceitar os desígnios do universo. Porém, no momento em que o nome
de um intelectual mal visto pelos stalinistas é citado e gera a condenação
absurda a Ludwik, já temos uma clara noção desse sectarismo.
A dimensão dele se torna mais
evidente se pensarmos em dados citados por Terry Eagleton em seu Marxismo e Crítica Literária. Na URRS,
certos autores, Kafka inclusive, eram proibidos. O motivo era o fato de não
haver neles um culto ao comunismo e ao Estado comunista. Obras como O Processo poderiam ser facilmente
vistas como uma crítica a um Estado gigante que esmagasse o cidadão que deveria
ser por ele atendido. A repressão comunista se baseava no princípio quase
religioso de respeito ao pensamento socialista, anulando assim qualquer
possibilidade de debate político salutar. Um autor de qualquer forma artística
só tinha o direito de exprimir uma opinião se fosse para elogiar e fortalecer o
regime soviético.
Maiakóvski e seu suicídio são
exemplos bem claros dos danos causados por esse sectarismo. A sua morte se
justifica pela perda do sentido na existência. De repente, todos os hinos de
louvor àquilo que era visto como o paraíso sem Deus na Terra passou a ser
notado como uma grande farsa a tirar do mundo qualquer caráter lógico. Só
restando o absurdo e a desilusão, o poeta da revolução teve de se matar. Gesto
similar ocorre com o colega de Ludvik nos tempos de trabalho forçado, que mesmo
mal tratado por todos defende o partido com unhas e dentes, julgando sua pena
absurda justa. O seu suicídio revela a traição sentida na carne, tão atroz para
ser contemplada que só deixa a morte como alternativa.
Podemos ver então em Kundera uma crítica ferrenha do socialismo real como algo que matou a individualidade de
seus membros. Alguns cometeram essa morte de forma voluntária e assistida;
outros foram mortos por tentarem fugir dessas amarras e lutar contra o regime.
Vale ressaltar, porém, que a crítica de Kundera se aplica a outros regimes
totalitários, dependendo da interpretação de seus leitores. No Brasil, até hoje
vemos ecos do pensamento defensor da ditadura militar, com pessoas defendendo
quase em uníssono os motivos que supostamente basearam nosso estado de exceção.
A realidade de Kundera foi a da ditadura de esquerda, mas sempre é importante
que condenemos todo e qualquer regime totalitário que anule a liberdade de
pensamento e de ação das pessoas, atentando contra os direitos humanos.
Nesse sentido, A Brincadeira é uma interessante
denúncia do sectarismo, do ato de fazer ideias políticas se tornarem ideias
prontas. Lembro-me de que Mário de Andrade destrói o seu desvairismo no mesmo
texto em que o inicia. O motivo citado pelo escritor paulista foi o objetivo de
não ter seguidores. Um seguidor não vê seu mestre como uma criatura viva e sim
como um ídolo. Suas ideias correm sério risco de se tornarem dogma e o seguidor
perde a noção de intelectualidade livre, vivendo de acordo com uma
interpretação fechada do que foi proferido.
De certa forma, a preocupação de
Mário ganha eco nas palavras de Kundera. Não importa se um regime é criado com
o intuito de defender a moral e os bons costumes ou de defender a justiça
social, no momento em que o contraditório não é aceito, em que o pensamento se
torna uma doutrina religiosa sem Deus, passamos a correr riscos de ter nossa
liberdade ceifada.
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