O trem azul do destino da poesia de Demétrio Diniz
Por Márcio de Lima Dantas
1.
O livro
Haveres (Natal: Barriguda, 2004), terceiro do poeta Demétrio Vieira Diniz,
atesta e faz saber o delineamento de uma singular dicção. Engenho e arte que
latejavam na compleição expressional e semântica da fatura dos poemas do livro
anterior, Passarás, irrompem numa constelação de imagens no qual se mesclam
domínio da arquitetura do verso com uma detida reflexão marcada por uma
temperança bem estoicamente sertaneja.
O denso e precioso prefácio do também poeta Leontino Filho, retalhando o livro
em nacos de exegética profundidade, e com arguto conhecimento de categorias da
teoria da literatura, alcança a requintada estampa do livro, detendo-se em cada
poema, numa atitude amorosa de leitor afeito à poesia de qualidade; o crítico,
apaixonado por seu objeto, engendrou um ensaio cujas fronteiras recendem o
suave perfume das chapadas florescidas da mais autêntica poesia.
Poesia resultado de um indivíduo que é uma espécie de arquivista, subserviente
à deusa Mnemósine, retirando preciosas fotografias da infindável coleção de
imagens retidas no acervo da memória. Contudo, os retratos pregados nos álbuns
de uma determinada família não detêm a sépia de um específico contorno
individual ou de um grupo, atinentes a um espaço e a um tempo, mas alcançam uma
dimensão mais abrangente, universalizando-se como mônada problematizadora de
situações comuns a todos os sencientes. O simples resguarda no seu imo
essencialidades despercebidas ante a fúria de Cronos, com suas passadas longas;
de outra parte, os fatigantes e tediosos trabalhos requeridos pela
sobrevivência nos fazem transpirar em excesso, escorrendo o suor para os olhos,
turvando a vista de sal e sombras.
O poeta advindo das terras do sertão atinge sua maturidade como escritor ao
desenvolver uma língua poética própria, resultado de uma série de
procedimentos. Selecionei alguns fios que entretecem a bela tapeçaria riscada
de um bordado feito por linhas extremamente simples, compondo paisagens líricas
cuja leveza nos engana se vistas pelo direito; porém, ao olharmos pelo avesso,
atestaremos um emaranhado de fios possuidores de condições ontológicas
integrantes desde sempre de uma condição trágica inerente a todos os seres.
2.
Vamos, primeiro, à forma. Com efeito, o poeta logrou êxito ao eliminar parte da
pontuação gramatical, sobretudo elidindo as necessárias vírgulas nos finais das
frases poéticas. Acontece que não houve prejuízo na cadência engendradora de um
ritmo prosaico, visto que os versos são envolvidos por uma aura de sóbria
suavidade, assim como se narrassem descompromissadamente uma rememoração. A
sintaxe resultante, trazendo no seu interior a tessitura fônica, martela uma
cadência tão bem distribuída no espaço da página, sequenciando as imagens, que
em nada perde na consecução de um eventual sentido, pois os cortes são justo
nas pausas nas quais há uma unidade semântica. Com efeito, a medida semântica é
o tamanho do verso, quer seja curto ou longo. Ora, se a pausa semântica
coincide com o corte arbitrário da frase, que, na verdade, é o que dá, até
certo ponto, a compleição de “poesia” a um texto artístico, o ritmo do poema
eclode com naturalidade, dispensando os tradicionais procedimentos usados nos
textos poéticos, tais como o metro, a rima, as pausas, as cesuras, as estrofes.
Desse modo, o discurso segue escorreito, fortemente coloquial e com certa
elevação impressa pelo ritmo. As frases poéticas de uma grande simplicidade
buscam sempre o comparativo com algo concreto, palpável, remetendo ao caráter
fotográfico do que se evoca, formatando na cabeça do leitor uma ambiência
clara, revelando o apreço do poeta pelas coisas advindas do factual ou do que a
sabedoria popular carbonizou numa linguagem que é bem peculiar ás gentes do
sertão. Penso que o sertanejo, via de regra, desenvolveu uma maneira mais crua,
sintética, por vezes sarcástica e com forte pendor a uma trágica aquiescência,
de encerrar na linguagem de maneira precisa aquilo vivenciado ou certos
arranjos que a vida organiza (há uma miríade de provérbios que retrata nossa
afirmativa).
3.
No que
concerne ao que chamarei aqui de “conteúdo”, ou seja, os topoi, os núcleos
ideativos nos quais a poesia lírica se detém para apresentar, o poeta retoma o
mesmo procedimento usado no livro anterior, e que se caracteriza sobremaneira
por um forte pendor a reconstruir fatos e imagens depositados nos recônditos da
memória. A infância permanece como traço indelével, buscando plasmar-se em
palavra poética, quem sabe, numa tentativa de se fazer dinâmica e mais
estática, assim como se quisesse emoldurar o que ainda punge e lateja seu
débito, sua purga. Houve quem dissesse que transformar alguém ou uma
experiência em fato estético é matá-lo.
Em síntese, aqui para nosso estudo, nos deteremos sobre tão somente três
recorrências: a noção de destino, da cor azul e a imagem do trem.
Há quem diga, não sei se tem valor etnográfico, que as gentes habitantes do
interior, das terras áridas do sertão, detêm com mais intensidade um senso
fatalista do existir, manifestando-se numa espécie de sábia indiferença para
com as vicissitudes ou num curvado estoicismo ante o trágico. Aceitação
iconificada na ancestral sentença “o que acontece é o que tem de acontecer”.
Daqui, para chegar a uma espécie de consciência de que tudo é impermanente, de
que tudo muda, consoante uma lógica detentora de relativa autonomia das coisas,
sucumbidas ante os embates com as forças ferozes de Saturno e a sempre fiel e atroz
infantaria das Parcas, não é necessário dar um passo muito largo. Qual atitude
de monge budista, atestando os teares do tempo a refazer pacientemente a
dramática tapeçaria do existir (vide os poemas "Acrobata", "Calungas", "Lair", "Salete", "Herança", "Dádiva", "Manduca", "Teco-teco"), o poeta se compraz em descrever
ou apresentar fenômenos ou eventos extraídos dos recônditos monturos da
memória.
Agora vamos à cor azul. É consabido que essa cor, tida como a mais etérea, a
mais imaterial de todas, se opõe às tonalidades vermelhas, amarelas ou ocres,
que se relacionem à terra, à matéria, ao que fomos acostumados a sentir e
nominar como “o real concreto”. Ora, o azul é a comarca do irreal ou, melhor
dizendo, da imaginação, de tudo o que diz respeito ao abstrato; é um aceiro que
conduz à transformação da realidade em imaginário. É bom lembrar que a abóbada
celeste, o infinito, é azul, opondo-se às tonalidades pardacentas, evocadoras
das cores da terra, rivalizando com elas. Céu e terra desde sempre se opõem nas
tantas mitologias; configuram-se como estrutura invariante do imaginário de
quase todos os povos ao longo da História.
Atino que no contexto da poesia de Demétrio Diniz a cor azul vai dizer da
necessidade de uma transmutação, por meio do discurso poético, do real que se
apresenta ou do factual vivenciado (e que insiste em emergir buliçoso da
memória), numa tentativa que, se não logra a superação ou a negação, pelo menos
reelabora-o com os filtros da mímeses, arrastando consigo as intactas vazantes
férteis de escuro paul que uma mente artística consegue tornar dúctil,
engendrando imagens de despótica voltagem poética, posto que formatada em uma
linguagem extremamente simples, não menos sofisticada.
Com efeito, eis uma ruma de poemas nos quais estão presentes o que acabamos de
dizer: "Azulão", "Dilma", "Passagem", "Teço-teco", "Estória de mavé gepê".
Sim, também
gostaria de lembrar que as três imagens aqui apontados têm vez que se encontram
entretecidas num só poema. Basta ver o poema “Azulão”, no qual o autor
entrecruza o topos do destino (...aceitou seu destino com inocência bovina.)
com a cor azul (...no fundo de um azul eterno.)
4.
Gostaria de
encerrar com o terceiro topos obsessivo do poeta. Falo do trem ("Calungas", "Acrobata", "Joaquim", "Trem fantasma", "Fagulhas") como imagem e como metáfora da
condição humana e de suas arquitraves sustentadoras do efêmero, onde todos são
passageiros, personagens, vítimas e cúmplices do que sucede no decorrer dos
dias insossos e obrigatórios, pois estamos submetidos a todo um conjunto de
imagens evocadoras de algo que independe de nós: os trilhos da estrada de
ferro, o itinerário constante, o embarque na plataforma, a despedida quando
alguém viaja, os horários precisos, enfim todo o cone semântico do trem remete
àquilo que funciona sem nossa vontade ou participação, conduzindo-nos a um
raciocínio que implica pensar acerca da ideia de destino, incitando o leitor a
se deixar quebrantar pelas chispas da imaginação, representada desde sempre, no
imaginário, pela cor azul e suas nuanças.
É bom repetir que a temática do destino é recorrente numa boa parte dos poemas,
estando plenos de aforismos e tiradas pertencentes ao patrimônio da sabedoria
popular, podendo ser resumidos, por exemplo, aqui: A vida, nesse tempo, a gente
aceitava do jeito que era. Verso de caráter sentencioso, evoca o epigrama da
tradição grega. Vejamos a simbologia do trem:
[...] a rede
de estrada de ferro vai afirmar-se como uma imagem do Princípio Cósmico
impessoal, impondo sua lei e seu ritmo inexoráveis aos conteúdos psíquicos
particulares e autônomos, tais como o Ego e os complexos. (CHEVALIER, Jean
& GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos, 7ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1993).
Com efeito,
a metáfora do trem não passa de uma imagem que traz à tona o poder inexorável
das forças da Vida, senhora autônoma e implacável, que faz valer seu jugo e
mando. Agora, andando por veredas mais simples, eu diria, arriscando uma
hermenêutica, assuntando uma interpretação, que os crescidos com a presença de
uma estação de trem em sua cidade (também vale para os rios), dificilmente não
detém no espírito uma simbologia que lança seus concêntricos anéis de
significantes na direção de um comportamento que se compraz em aceitar o
sentido trágico da vida, manifestado por meio de um recatado fatalismo, assim
como se fosse uma aura que a tudo circundasse; é como se as imagens atinentes
ao trem ou ao rio configurassem uma espécie de efeito terapêutico, que, a pouco
e pouco, vão sedimentando uma coisa parecida com a resignação, com a aceitação
do que nos constitui como seres que deambulam no mundo.
Terminando, eu diria: eis a poesia devidamente curtida pelo carbureto do tempo,
marchetada por uma sóbria melancolia, plena de pudores, guardada pelo que a
vida assinalou como responsável por manter acesa a frágua do fogão a lenha da
casa da memória, e que se alembram pelo gosto e pela necessidade de narrar.
Isso tudo gera uma leitura que tomba seus signos nas paradas águas escuras do
passado, provocando o borbulhar de toda uma constelação de significantes
adormecidos, baldeando o que Cronos lançou às terras longínquas do olvido.
***
Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
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